"Com Deus não se brinca" diz famoso golpista brasileiro

"Com Deus não se brinca" diz famoso golpista brasileiro

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:51

Um golpista talentoso. Um psicopata. Um gênio do crime. Um mentiroso compulsivo. Um exibicionista em busca de fama rápida. O 171 do glamour. O maior picareta do Brasil.

As opiniões sobre Marcelo Nascimento da Rocha são quase tão numerosas quanto as 16 identidades falsas que ele assumiu ao longo de sua carreira no crime. Marcelo já foi policial de grupo de elite, guitarrista dos Engenheiros do Hawaii, olheiro da seleção, campeão de jiu-jítsu, repórter da MTV, produtor do Domingão do Faustão, líder do PCC etc.

De real em seu currículo, constam um lucrativo e arriscado emprego como piloto do narcotráfico, uma série de roubos de avião e uma longa ficha de golpes como estelionatário, como vender motos do exército, vagas em uma faculdade de direito e impressoras apreendidas pela Receita Federal que nunca seriam entregues.

Mas a mentira mais cinematográfica de Marcelo foi se passar por Henrique Constantino, filho do dono da Gol Linhas Aéreas, no Recifolia, o Carnaval fora de época da capital pernambucana, em 2001. Durante quatro dias, Marcelo foi paparicado por ricos e famosos (ele garante ter transado com duas celebridades), entrevistado por Amaury Jr., fotografado para colunas sociais. De quebra, pilotou um helicóptero e um jato particular cedidos por empresários que se tornaram íntimos do executivo da Gol em questão de minutos. Foi preso no Rio de Janeiro pela polícia federal, depois de transportar no tal jatinho os globais Marcos Frota, Carolina Dieckmann e Ricardo Macchi.

Foi a farsa da Gol que deu fama a Marcelo. Ele virou vilão em matérias da imprensa e herói em diversas comunidades da internet. E sua história foi contada no livro VIPs – Histórias reais de um mentiroso, de Mariana Caltabiano, grande sucesso editorial, com mais de 50 mil exemplares vendidos.

Agora, dez anos depois do mítico Recifolia, os golpes de Marcelo vão ganhar revival em grande estilo, envoltos em nomes de grife. No dia 25 de março, chega aos cinemas VIPs, ficção livremente inspirada na história de Marcelo, com produção da O2, de Fernando Meirelles, direção de Toniko Melo, roteiro de Braulio Mantovani e Wagner Moura no papel principal. Em abril, será a vez de VIPs – Histórias reais de um mentiroso, documentário assinado, como o livro, por Mariana Caltabiano. Nesse meio-tempo, será lançado também Fábrica de monstros, romance que marca a estreia de Marcelo como escritor – uma das atividades que ele pretende adotar, desta vez sem farsa, quando sair da prisão.

Adotando o discurso-padrão dos presos regenerados, ele garante que pretende pagar sua dívida com a Justiça e abandonar de vez o crime. “A prova maior de que estou me ressocializando é que eu não quis mais fugir”, ele diz, com a autoridade de quem já liderou uma rebelião em Bangu e depois escapou do presídio carioca de “segurança máxima”. Aos 36 anos, ele anuncia que quer usar seu poder de convencimento para o bem – escrevendo livros, ministrando palestras, cuidando dos negócios que adquiriu em Cuiabá com o dinheiro de VIPs, a biografia e o filme, ao lado de sua namorada. E que tal uma carreira na política? “Aí não. Eu tenho meus limites morais.”

Você se lembra da primeira vez que contou uma mentira para se dar bem?

Eu tinha uns 10, 11 anos. Eu ganhei uma advertência por mau comportamento e dei um jeito de falsificar a assinatura da minha mãe. Não tive nenhum sucesso porque acabei deixando esse bilhete cair no pé dela na hora de sair de casa. “Nossa, o que é isso? Essa aqui não é minha assinatura.”

Então o primeiro golpe não colou?

Não. Mas não foi exatamente um golpe. Existe uma linha tênue que separa a mentira do golpe. A mentira em geral é algo que você conta para esconder algum fato que pode te prejudicar. Como quando você pede para sua secretária dizer que você não está no escritório. O golpe de fato é aquele que você planeja, que você executa, em que você busca obter algum lucro.

Qual foi a primeira mentira que deu certo?

O pai de um amigo meu era sócio de uma grande empresa de ônibus, e eu usava isso para viajar quando tinha uns 14 anos. Eu dizia que era sobrinho do dono e acabava não pagando a passagem. Eu nunca gostei de ficar em casa, sempre dava um jeito de viajar. Eu acredito que boa parte dos conhecimentos que adquiri na vida foi através de viagens, conhecendo pessoas, lugares.

Seu pai morreu quando você ainda era adolescente. Esse Seu desejo de sair de casa tem algo a ver com isso?

Nunca tive esse intuito de fugir de casa, de deixar um bilhete dizendo “não volto mais”. Eu via na TV uma matéria sobre um lugar e batia a vontade de conhecer. Minha mãe sabia que eu ia voltar depois de uma semana. Desde muito cedo, ela aprendeu a ser mera espectadora das minhas façanhas. Já meu pai não. Ele ia atrás, pegava ônibus, avião para me encontrar. E me falava: “Você escolhe a vida que você quer, o que você está fazendo é errado e pode te prejudicar no futuro”. Minha família sempre foi voltada para a valorização dos princípios. Tive uma infância tranquila em Maringá [PR] e depois em Curitiba. Praticava esportes, tirava boas notas, meu único problema era mau comportamento.

Você tinha alguma sensação de prazer quando conseguia enganar alguém?

Olha. Eu vi uma reportagem na TV em que um, entre aspas, “renomado psiquiatra” dizia que eu tinha uma doença, uma sensação de orgasmo quando acertava um golpe. Umas coisas baixas pro nível de pessoa que ele julga ser. Mas eu acho que ele é mais louco do que eu. Eu penso o seguinte: se você é um jogador de futebol e faz um gol, que sensação você vai ter? Satisfação, prazer. Não é diferente comigo. Eu ficava satisfeito quando um golpe dava certo, porque era esse meu objetivo. E comemorava fazendo festa. Aí vem um beócio me dizer que sou psicopata porque eu me satisfazia depois de ganhar dinheiro com um golpe. Será que ele não se satisfaz quando recebe por uma consulta?

Mas o problema não é justamente não diferenciar o legal do ilegal?

Sempre tive noção de que estava fazendo algo errado e que uma hora iria pagar por isso. Mas nunca tirei de quem não tinha. As pessoas se restabeleceram e espero que isso tenha servido de aprendizado para elas. Porque eu estou pagando aqui pela aula que eu dei. Todas as coisas que eu fiz na vida – salvo aquelas que fiz só para me divertir – foram muito bem calculadas. Eu sempre fui perfeccionista nas minhas empreitadas criminosas, nunca admiti erro. Talvez por isso eu tenha sido tão alvejado.

Em que sentido?

Alvejado pela mídia. As pessoas dizendo: “Ele é superinteligente e fez coisas que ninguém faz”. O que eu faço qualquer um faz, basta querer. O que eu tenho de anormal em relação a algumas pessoas é o poder de persuasão. Meu plano agora é terminar de pagar minha dívida com a sociedade e ministrar palestras para usar esse poder de forma positiva. Aos olhos de Deus quero ser uma pessoa boa. Pelo menos nunca atentei contra a vida de ninguém, nunca machuquei, nunca matei. E espero ter ensinado a algumas pessoas que a ganância não leva a lugar nenhum.

A sua ganância?

Não, a ganância das pessoas. O alicerce dos meus golpes sempre foi a ganância dos outros. Essa é a principal arma que o estelionatário tem. Se uma pessoa não for ambiciosa, ela nunca vai cair num golpe. Ninguém oferece para uma pessoa duas moedas para ela te devolver só uma. Se acontecer com você, desconfie. É estelionato.

No livro VIPs, você disse que iria cumprir sua dívida com a sociedade e depois ter uma vida normal. Mas depois você fugiu da prisão e foi pego num pequeno golpe. Por que as pessoas deveriam acreditar desta vez?

Olha, essa história foi numa situação um pouco diferente do que é meu cotidiano. Fui atender ao pedido de um amigo que, como eu, estava foragido. A sobrinha dele estava doente e o sonho dela era ter um notebook. Eu estava com meu kit, que é como a gente chama o pacote com identidade falsa, cartão falso. Fui comprar o computador e acabei sendo preso. Não tomei os cuidados que normalmente tomaria. Na verdade, já estava de saco cheio daquela vida.

De fugas?

É. Não é bacana viver fugindo. Eu perdi muito do crescimento do meu filho, do contato com minha família. Agora quero ficar tranquilo. Financeiramente, não preciso mais da vida do crime. O dinheiro dos livros, do filme… isso me dá o conforto de sair para fazer o meu projeto.

E o dinheiro do crime?

Procurei me desfazer de tudo. Torrei antes de entrar aqui. Com festas, doações. Parti do princípio de que minha vida iria começar do zero.

E sua ideia é ganhar dinheiro como escritor, como palestrante?

Sim. E comprei uma distribuidora de bebidas, um salão de beleza e um bar em Cuiabá, que minha namorada está administrando. Quero ser uma pessoa que você possa abordar na rua e falar: “E aí, Marcelo? Tudo bem?”. E eu possa me sentar com você para bater um papo sem a preocupação de ser cercado pela polícia federal.

Você já pensou em ser político?

Não, eu tenho meus limites morais [risos].     “O alicerce dos meus golpes sempre foi a ganância dos outros”

Você tem algum arrependimento?

Eu me arrependo de ter transportado drogas para o narcotráfico. Tenho a consciência pesada por saber que elas fizeram mal a muitas pessoas. O que eu tento fazer ao máximo para me redimir é apoiar pessoas para sair do vício. Há poucas semanas eu dei dinheiro para internar em uma clínica de reabilitação uma menina conhecida de um amigo de cela.

Você se enxerga como um Robin Hood, é isso?

Não. Sou mais um Lex Luthor do bem [risos].

Você encarnou diversos personagens na sua carreira de estelionatário. Você acha que sua atividade tem algum parentesco com a profissão de ator?

Não, acho que não. Tem uma coisa em comum: um dos grandes segredos de um golpista está na dicção. Acho que é algo pouco valorizado pelo ser humano. Vou demonstrar nas minhas palestras que isso é fundamental para convencer as pessoas de que você sabe o que está fazendo. Mas tem algo muito diferente do ator: eu nunca seria capaz de representar alguém que eu não poderia ser. Tem casos de estelionatários que falsificam uma carteira do Conselho Regional de Medicina e saem por aí operando pessoas. Isso é um absurdo, você está brincando com a vida de um ser humano. Nunca tentei entrar em uma área que não conhecia a fundo. Sempre me preparei muito para cada golpe.

E como era essa preparação?

Eu pesquisava muito, conversava ao vivo ou por telefone, usava a internet. Da mesma forma que a internet facilitou o combate ao crime ela também ajudou o criminoso a se aprimorar.

Você tinha que saber de tudo para tentar convencer as pessoas…

Sim. Mas você também tem que estar sempre muito atento e ser sempre rápido. Desde criança, eu tinha um raciocínio muito acelerado. Eu não dou tempo para a pessoa pensar. Vou te dar um exemplo: se eu tivesse uma empresa e fosse entrevistar alguém para uma vaga, eu começaria perguntando bem baixinho: “Qual é seu nome e de onde você veio?”. Se a pessoa responde “hã?”, já não serve para trabalhar comigo. A pessoa tem que ter dinamismo, atenção, sagacidade.

Dê um exemplo.

Desde que eu entrei aqui nesta sala, eu identifiquei o que pertence ao meu cotidiano e o que não pertence. Você tem que entrar num lugar e já saber quantas pessoas estão ali, o que elas estão vestindo, ficar atento ao que a pessoa vai falar, até para saber o que ela quer ouvir.

Existe um segredo para identificar o ponto fraco da pessoa?

Existe, mas não posso falar. Seria como ensinar o pulo do gato.

Quando eu cheguei aqui para entrevistá-lo, o que você observou?

Um exemplo: vi que você usa All Star. Quem usa esses tênis? Pessoas despojadas, relax. Se um cara não está nem aí pro vestuário, ele não tá nem aí com outras coisas, então você já começa falando de futebol, essas coisas. É diferente de você entrar numa sala e ver um cara de terno Armani e relógio Rolex, você vai ter que se aprofundar nos assuntos. Outro exemplo: eu vi que você tem sobrenome árabe. E os árabes são bons negociantes, difíceis de enganar.

Agora você está tentando falar o que eu gostaria de ouvir…

Não, estou falando sério. Eu evitava dar golpes em árabes. Brincava com os companheiros: “O cara é Salim, deixa pra lá que vai dar problema”.

Essa capacidade de persuasão foi um talento que você desenvolveu ao longo do tempo?

Cara, eu devo ter nascido com isso, porque eu não me lembro de ter estudado… Eu acho que foi o dom maior que Deus me deu. Até por isso eu não mexo com religião.

Não foi sua mãe que perguntou pra você por que não monta uma igreja?

Foi ela, mas várias outras pessoas também. Não faço por quê? Porque sei que daria certo. É muito fácil você pegar um aleijado e falar pra ele assim: “Cara, fé em Deus que você vai melhorar”. Porque Deus é a única coisa em que a gente tem que acreditar. Eu não brinco com as coisas de Deus, com a fé das pessoas.

Você é religioso?

Sou católico, fui batizado, mas não sou praticante.

Vamos falar de Seu caso mais famoso, o da gol. Foi golpe ou mentira?

Foi uma brincadeira que cresceu. Não foi golpe. Não planejei aquilo, não lesei ninguém. Fui ao Recifolia para relaxar. O fato de me passar por filho do dono da Gol começou com uma brincadeira que nem foi minha. Foi um amigo que tava comigo no camarote. Como as pessoas não olhavam pra gente, ele chegou para umas modelos e comentou: “Aquele cara ali é o filho do dono da Gol”.

Mas você não tinha ligado antes pro camarote dizendo que era da Gol?

É verdade, mas eu disse que era diretor, só para conseguir uns abadás.  

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