"Em outras religiões em que não há celibato há mais pedófilos", afirma cardeal Saraiva Martins

"Em outras religiões em que não há celibato há mais pedófilos", afirma cardeal Saraiva Martins

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 3:25

Está em Roma desde os 17 anos e é o único português a ter chegado aos cargos mais importantes da hierarquia da Igreja, logo abaixo do Papa. Foi prefeito (responsável) de uma Congregação no Vaticano. Em 2008 reformou-se, mas no ano seguinte Bento XVI nomeou-o um dos seis cardeais-bispo da Santa Sé. José Saraiva Martins continua a ser o único português, além do cardeal de Lisboa, com direito a eleger um novo Papa. A menos de uma semana de viajar com Bento XVI para Portugal, o prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos não fugiu a nenhuma pergunta. Nem às mais polémicas.

É verdade que a Igreja está em crise?

Não falaria em crise. Há é uma campanha muito bem organizada contra Igreja e o Papa. Mas a Igreja tem dois mil anos de história e sempre existiram campanhas assim - lutas levadas a cabo pelos que não estão de acordo com os valores cristãos. A perseguição existe desde os primeiros tempos e continuará até ao fim do mundo. Jesus disse-o: "Se me perseguiram a mim, também vos perseguirão a vós".

Face a essa campanha de que fala, a postura de Bento XVI tem sido a melhor?

O Papa não tem cedido e esse é o caminho. Continuar a afirmar, segundo a tradição, os valores do cristianismo. Bento XVI é, aliás, o Papa de que hoje a Igreja precisava.

Porquê?

Porque é preciso, num momento em que há tanta confusão nos vários sectores da sociedade, um Papa com ideias muito definidas, com uma grande força de vontade e sem medo de dizer as coisas de forma clara, de afirmar certos valores fundamentais - não só humanos, mas também cristãos. Tudo para o bem da sociedade em geral e não só dos crentes. Habituamo-nos a falar de valores humanos e de valores cristãos como se se opusessem, o que é um erro. Não podem ser separados, porque o que é autenticamente humano é já genuinamente cristão. E vice-versa. O Papa tem reafirmado estes valores humanos e cristãos, que são o fundamento das sociedades, com muita força, perante crentes e não crentes. Falo dos valores da vida e da família, por exemplo. Valores que são humanos. O Papa tem uma grande coragem em reafirmá-los em todas as circunstâncias.

E não deveria a Igreja procurar acompanhar as mudanças das sociedades? Ou as sociedades é que têm de continuar a adaptar-se, permanentemente, aos valores cristãos?

A Igreja tem de continuar a sua missão, que é afirmar os valores do evangelho. Mas não impõe nada a ninguém. Expõe e propõe, mas o homem é livre de acreditar ou não. Mas também tem de ser dada liberdade à igreja.

E isso não tem acontecido, com as recentes polêmicas da pedofilia?

Esse é um caso típico de uma campanha contra Igreja e o Papa muito bem organizada. Há pouca objetividade naquilo que é dito na comunicação social. Não faz sentido falar de pedofilia entre os membros do clero, passando-se a ideia de que a maioria dos casos acontecem no seio da Igreja. Isso é desinformação. A igreja nunca negou a existência de casos. Num exército de mil soldados, se houver um mau soldado não poderemos dizer que todo o exército é mau. As estatísticas são muito claras e apontam para que apenas 0,03% dos casos ocorram na Igreja. Não é verdade que os casos sejam generalizados.

Ainda assim, e nesses casos que vão aparecendo, pode existir uma relação com o celibato?

Não. Em outras religiões em que não há celibato, há mais pedófilos e isso é a prova evidente de que não existe qualquer relação.

Mas admite que viver uma vida em celibato é difícil?

Não é difícil quando há uma verdadeira vocação para o sacerdócio. Um jovem que se doa totalmente à vocação, e a abraça, consegue consagrar-se totalmente àquilo em que acredita. Isso que me pergunta é como dizer que é difícil um marido entregar-se totalmente à mulher. A própria vocação para o casamento ou para a maternidade é um caminho difícil, mas torna-se fácil quando há amor genuíno. O padre não é uma pessoa frustrada. Consagrou-se totalmente ao exercício da sua missão.

Continua, então, a fazer sentido a imposição do celibato?

Certamente que sim. E esta consagração total a Deus e ao seu ministério é a favor dos fieis. Se tivesse família, um padre não poderia dedicar-se à paróquia da mesma maneira.

Mas há religiões em que os pastores têm família e conseguem dedicar-se, em simultâneo, às comunidades...

Nunca é a mesma coisa. Tendo família, o padre não pode estar à disposição da comunidade 24 horas por dia. Isso é óbvio. O trabalho dedicado à família e ao emprego para a sustentar, é tempo retirado ao trabalho eclesiástico. O celibato é importante. Não há nada mais belo que a consagração àquilo em que se acredita e se escolheu livremente.

Em Portugal também foram referidos casos de pedofilia relacionados com a Igreja. O Vaticano teve conhecimento desses abusos?

Não estou informado disso, mas se há casos têm de ser denunciados e colocados perante o direito canónico e o direito civil.

Mas não teve conhecimento?

Não. Mas o princípio é claro. E está explícito na carta que Bento XVI escreveu aos bispos irlandeses: a Igreja não oculta nada. Denunciará todos os crimes que lhe cheguem ao conhecimento e vai pô-los perante a lei.

É este o principal problema com que a Igreja tem de lidar, neste momento?

Um dos problemas que a Igreja tem de enfrentar é o relativismo ético-moral em que vivemos, como se não existissem princípios absolutos. Uma coisa é boa ou má, segundo me parecer boa ou má. Isso e a crescente indiferença religiosa que se expandindo, cada vez mais, na Europa. O homem foi-se habituando a viver como se Deus não existisse. Este é um problema sério.

Acredita que isso tem consequências nas sociedades?

Claro, porque a Igreja vive na sociedade e com a sociedade, não vive num limbo ou numa torre de marfim. E é chamada a influir na sociedade. Os membros da Igreja são membros da sociedade como todos os outros e têm de poder agir sempre de acordo com a sua fé - na sua vida económica, política, social, académica, no trabalho das fábricas. Têm de agir com coragem e sem medo, segundo a sua fé. Igreja e sociedade não são dois mundos diferentes.

Falta menos de uma semana para Bento XVI chegar a Portugal. A visita acontece pouco tempo depois da aprovação dos casamentos homossexuais...

É possível que o Papa, nas homilias que fizer, se refira ao papel dos valores no desenvolvimento da sociedade. Sobre os casamentos homossexuais, limito-me a lembrar que a Bíblia, quando fala na criação do ser humano, refere que Deus o criou homem e mulher e isso diz tudo. O mais preocupante é se houver crianças adotadas, porque põe-se o problema da formação, da educação. Para ser bem educada e formada, uma criança precisa de um modelo de um pai e de uma mãe e não de um pai e de um pai ou de uma mãe e de uma mãe.

Portugal também já aprovou a despenalização do aborto. Sendo Portugal um dos países mais católicos, estas mudanças preocupam a Igreja?

Sim, mas isso também acontece em outros países europeus, porque hoje tudo é globalizável. O aborto, do ponto de vista cristão, é uma falta de respeito pela vida, que é o bem e o valor mais importante que Deus nos deu. Uma mulher que faça um aborto não ficará muito tranquila porque é uma coisa contra a vida e contra o princípio da maternidade. Acredito que não se esquecerá para toda a vida aquilo que fez.

Já defendeu a necessidade de uma maior cooperação entre a Igreja e o Estado na formulação de algumas leis. Referia-se a estes assuntos?

O princípio da cooperação entre Igreja e Estado é uma necessidade. Em Portugal, como noutros países.Todos somos cidadãos portugueses, tanto os crentes como os não crentes. Não há duas sociedades diferentes. Há só uma, governada por um governo que tem de respeitar, também, os cidadãos crentes que, em alguns países, são a maioria. O governo não pode deixar de ter em conta o papel que a Igreja tem na sociedade, porque muitos dos cidadãos que governa são católicos. Tem de existir um bocadinho de boa vontade das duas partes para se chegar a uma harmonia.

E essa boa-vontade tem existido?

A Igreja de cada país terá de enfrentar o problema, mas é certo que o Estado não pode prescindir da Igreja.

A visita de Bento XVI coincide com o décimo aniversário da beatificação dos pastorinhos de Fátima Jacinta e Francisco. João Paulo II era muito ligado ao santuário. O interesse do Vaticano continua com Bento XVI?

Diz-se que Fátima é o altar do mundo, mas eu até diria mais: é a cátedra do mundo. Em Fátima, Nossa Senhora ensinou muitas coisas, lembrou muitos valores do evangelho que, infelizmente, o homem de hoje se vai esquecendo. Fátima tem uma dimensão universal, que vai muito além das fronteiras portuguesas. Bento XVI conhece bem a importância de Fátima do ponto de vista cristão, religioso e mariano para a Igreja universal. E tem com Fátima uma relação profunda. Foi ele que preparou, com os seus colaboradores, a publicação da terceira parte do segredo. Bento XVI conhece bem a mensagem de Fátima e depois de ter visitado Lourdes é muito bom que visite Fátima!

Que importância universal é essa?

A mensagem de Fátima é muito completa e articulada. Fala de temas universais como a conversão, a paz, a oração, o santíssimo Sacramento. São capítulos muito importantes da fé católica.

Já passaram dois anos da antecipação do processo da beatificação da irmã Lúcia. Em que ponto se encontra?

Todos os processos de beatificação ou de canonização têm duas fases. Uma local, diocesana. E outra romana, na Santa Sé. A primeira fase ainda está a decorrer no Carmelo de Coimbra. Estive lá, há dois anos, para anunciar, oficialmente a dispensa de dois anos concedida pelo Papa. Para começar um processo de beatificação é preciso que passem cinco anos depois da morte, mas o Papa acelerou o processo e começou a fase diocesana. Quando acabar, toda a documentação recolhida será enviada para Roma, para ser estudada pela Congregação para a Causa dos Santos - vai averiguar-se se, do ponto de vista histórico, teológico e médico, existe algum milagre, alguma cura considerada milagre.

Já chegaram a Coimbra mais de 300 relatos de graças concedidas por intercessão da Irmã Lúcia...

É muita coisa. Mas depois tem que se investigar, porque graça não é o mesmo que milagre. Uma cura, para ser milagre, tem de ser instantânea, completa e irreversível. E isso são os médicos da Congregação que vão dizer. No Vaticano há 70 médicos, especialistas nos vários sectores da medicina actual. Quando chega a Roma uma cura considerada milagrosa, examinam. É em Coimbra que têm de escolher a graça que poderá ser um verdadeiro milagre. Basta só uma. E é preciso testemunhos de médicos que comprovem o estado da pessoa antes e depois.

João Paulo II foi o Papa que mais personagens beatificou e canonizou na história da Igreja?

Sim, só ele fez mais santos e beatos do que todos os seus antecessores. Só na minha prefeitura elevou 1320 santos e beatos.

Mas porquê?

A razão é muito simples. Para ele, e é mesmo assim, a coisa mais importante na Igreja é a santidade. Se a Igreja não for santa não é a Igreja de Cristo. Por isso, a Igreja tem o dever de propôr modelos de santidade aos cristãos. Uma beatificação ou uma canonização não é senão pôr no candelabro exemplos de santidade para que os fiéis imitem. Além disso, João Paulo II dizia que as beatificações e as canonizações exprimem a vitalidade das igrejas locais.

Eram muito próximos, não eram?

Sim. E o momento que mais recordo foi quando fomos a Fátima para a beatificação. No avião, já de regresso, ele era a pessoa mais feliz do mundo. Porque foi ele o responsável. Nunca mais me esquecerei da alegria, da felicidade. Ele dizia que finalmente tinha conseguido. Mas uma felicidade pessoal, íntima e profunda. De resto, foi ele o grande responsável por eu ter ficado em Roma.

E Bento XVI?

Conheço-o desde que era cardeal. É amável, simples, cordial, muito educado, muito humano. Não é aquela pessoa que se imagina. É muito simples.

Imagina-se um Papa mais rígido. Pelo menos em comparação com João Paulo II...

Não é verdade. Temos de ter em conta que o cardeal Ratzinger foi sempre um académico, enquanto que João Paulo II foi um pastor desde o início. São duas mentalidades diferentes, mas acho que se completam admiravelmente. Onde é que está escrito que um Papa tem de ser a fotocópia imediata do seu antecessor?

Essas diferenças entre um e outro mudaram alguma coisa no Vaticano?

Não. Não creio que a maneira de ser de um Papa influa assim tanto no Vaticano. Sendo diferentes, é uma grande riqueza para a Igreja porque assim cada um enriquece o primado com o seu carisma pessoal.

Deixou a Congregação da Causa dos Santos há dois anos por ter atingido o limite de idade (75 anos). Passaram-lhe muitos processos pelas mãos...

Muitos e acho que a geografia portuguesa foi muito enriquecida. Quando cheguei, a canonização de Nuno Álvares Pereira estava parada e pu-la a andar. Na minha prefeitura foram elevados seis beatos e um santo portugueses. E actualmente estão a decorrer na Congregação pelo menos 33 processo de beatificação de portugueses.

Pondera retirar-se definitivamente. O que é que ainda quer fazer?

O que o Papa quiser.

Postado por: Felipe Pinheiro

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