À Espera da Aurora

À Espera da Aurora

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:10

Li e agora releio À Espera da Aurora de Jean Delumeau (Edições Loyola). O texto é agradável, não hermético. Delumeau, historiador e professor emérito do Collége de France escreve com leveza.

Na Europa pós-cristã existe a premente necessidade de construir pontes de diálogo com o mundo acadêmico. Como o historiador francês acredita que o cristianismo tem condições de interagir com a ciência, filosofia e humanidades, fornece algumas pistas para a conversa.

Sugere: abertura para a evolução; revisão da antropologia pessimista do pecado original; modelo alternativo de compreensão sobre Deus.

Recomendo fortemente À Espera da Aurora. Entretanto, atrevo-me pinçar alguns conceitos sobre Deus da obra de Delumeau.

Os genocídios e massacres do século XX - o mais sangrento da história - levaram teólogos cristãos e pensadores judeus reverem pressupostos sobre uma divindade no controle dos eventos. Delumeu pergunta: "Pode-se crer na bondade após Auschwitz? Por que seu silêncio diante de um genocídio sem precedentes? ". Elie Wiesel, sobrevivente de um campo de concentração nazista e Prêmio Nobel da Paz, disse: "Fazemos nossas, as terríveis acusações que Jó proferiu: Deus parece brincar com o homem [...] ser indiferente ao seu sofrimento. E Deus não faz nada para dissipar esse mal-estar na civilização ".

Delumeau cita Pierre Bayle (1646-1707) que rejeitou a explicação clássica do sofrimento humano como resultado do pecado original: "A maneira pela qual o mal se introduziu sob o império de um ser infinitamente bom, infinitamente santo, infinitamente poderoso é não apenas inexplicável, mas até mesmo incompreensível".

Delumeau propõe a única saída para este beco sem saída. "Tomar consciência da não-potência de Deus". Obviamente uma afirmação desse tipo causa horrores na cristandade, acostumada a pensar Deus a partir da filosofia grega. Mas o escândalo e a loucura da fé cristã repousam precisamente neste alicerce: Deus se tornou homem. "Por que existe mal? Não há nenhuma resposta que esteja ao nosso alcance. Mas ainda assim o cristianismo esclarece e relativiza esse imenso enigma por meio de duas fortes afirmações: (1) Deus ficou entre nós para sofrer, como nós, com a violência do mal e ele morreu no abandono mais completo; (2) na Jerusalém definitiva, o mal terá desaparecido ".

As Escrituras afirmam categoricamente que Deus não pode negar a si mesmo. Mas "a Encarnação pressupõe que Deus, tornado homem como você e eu, tenha colocado entre parênteses sua 'onipotência' durante todo o tempo de sua missão terrestre. O que nos conduz a enunciar duas proposições contraditórias do ponto de vista de nossa situação humana: Deus é ao mesmo tempo o Todo-Poderoso que está na origem do 'céu e da terra' e o Não-Poderoso do qual os frágeis relatos evangélicos nos deixaram traços ".

"O Deus para o qual os cristãos oram todos os dias 'gemeu em um berço', segundo a fórmula de Lutero... Ele não procurou se defender, sendo aprisionado, torturado, forçado a carregar a cruz do seu suplício e pendurado a esse objeto infamante. Eis o Deus proclamado pelo cristianismo: um profeta desarmado... desarmado frente ao mal... O Deus Todo-Poderoso que se tornou um 'escombro' humano: estamos aqui no âmago do paradoxo cristão e da 'loucura da cruz' que, sem explicar as raízes do mal, nos garante que Deus quis compartilhar nossa condição, por mais assustadores que sejam nossos sofrimentos e penas ".

Delumeau cita Pascal: "Cristo estará em agonia até o fim do mundo". Para Delumeau, Deus só exercerá completamente sua vontade soberana quando a história humana chegar ao seu final. "Então, somente então, sua vontade será feita 'tanto na terra como no céu' - fórmula que só pode ser compreendida se lhe for restituído o seu alcance escatológico. Ao comentar o Pai Nosso, Marc Philonenko,o sábio editor dos Écrits intertestamentaires, escreve: 'a vontade' de Deus se exerce nos céus desde o começo do mundo. Ela se exercerá definitavamente na terra no dia do Juízo. Não antes disso. Enquanto durar a história, o homem-Deus sofre como nós e conosco ".

"Contudo, é preciso constatar que Jesus permaneceu mudo sobre o pecado original, tampouco se pronunciou sobre a origem do mal. Ora, parece-me que devemos imitá-lo nesse silêncio e, se me permitem dizer, 'não seremos mais realistas que o rei ".

"Claudel com razão escreveu em algum lugar: 'Deus não veio explicar o sofrimento; ele veio preenchê-lo com sua presença ".

Claro que o texto acima não passa de um resumo impreciso do pensamento de Delumeu. Insisto: os que estiverem insatisfeitos com os modelos teológicos tradicionais e ousarem aventurar-se - e arriscar-se - a pensar fora dos enlatados, leiam Delumeau.

Soli Deo Gloria

Ricardo Gondim   é pastor da Igreja Betesda de São Paulo e presidente da Convenção Nacional da denominação. Presidente do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos. Gondim é casado com Silvia Geruza Rodrigues, pai de três filhos - Carolina, 29; Cynthia, 27; e Pedro, 19 - e avô de Gabriela, Felipe e Felipe Naran. Nascido em 1954, em Fortaleza, Ceará, é formado em Administração de Empresas. Viveu nos Estados Unidos onde obteve formação teológica no Gênesis Training Center em Santa Rosa, Califórnia.

Ministra palestras e conferências. É colunista das revistas evangélicas ''Ultimato'' e ''Enfoque Gospel''. Como escritor, Gondim é autor de livros como ''O Evangelho da Nova Era'', ''Santos em Guerra'', ''Saduceus e Fariseus'', ''Creia na Possibilidade da Vitória'', ''É Proibido'' - obra indicada ao prêmio Jabuti, de literatura brasileira -, ''Artesão de uma Nova História'', ''Como vencer a Inconstância'', ''A presença imperceptível de Deus'', ''Do Púlpito 5'', ''O que os evangélicos (não) falam'', ''Creio, mas tenho dúvidas'', e ''Sem perder a Alma'', o mais recente.

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