Flordelis na revista Contigo desta Semana

Flordelis na revista Contigo desta Semana

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 3:25

Flordelis está nas páginas da revista Contigo desta semana. A matéria conta detalhes da vida de Flordelis e sua família. Com o título de 'Mãe de Máxima Potência', a reportagem de Sérgio Rodrigues tem 5 páginas, e traz várias fotos da família. No texto, é mencionado que a missionária e também cantora, que acaba de assinar contrato com a MK Music, está selecionando repertório para seu primeiro CD pela gravadora.

Confira a matéria na íntegra:

Mãe em máxima potência

Aos 49 anos, Flordelis é mãe de 46 crianças adotadas, quatro biológicas e é avó de sete netos felizes

Por Sérgio Rodrigues

Um daqueles casos em que a mistura racial brasileira produz uma beleza exótica, vagamente indonésia, a mulher de longos cabelos escovados até a cintura, num tom alourado que contrasta com a pele jambo, chama atenção no meio da pequena multidão de crianças que gravita a seu redor. Se fosse uma professora cercada pela turma, a imagem seria corriqueira. Mas a qualquer momento aquelas vozes infantis podem dizer: ''Fome, mãe!'' Ou ainda: ''Mãe, ela puxou meu cabelo!'' E todas são atendidas.

A estranheza da cena não fica nisso. Como se estivesse disposta a desmoralizar as velhas - e justas - queixas femininas sobre a dureza da dupla jornada de mãe e trabalhadora, Flordelis dos Santos de Souza, 49 anos, concilia essa maternidade abundante com a solução de problemas profissionais. Ao telefone, está fechando o repertório de seu primeiro CD como cantora gospel e a edição da autobiografia que planeja escrever ainda este ano. Tem a própria igreja evangélica e uma atarefada agenda de palestras. E ainda ajuda a administrar um instituto para crianças abandonadas que leva seu nome. Estrelou, ao lado de uma penca de atores globais, o filme que conta sua história. Sonha com o dia em que terá finalmente uma casa própria e abrirá um centro de recuperação para menores drogados. Que mulher é essa?

Uma louca, diz quase todo mundo. Foi esse o juízo que dela fizeram e ainda fazem amigos, parentes e até companheiros de fé. Mesmo seu marido, Anderson do Carmo, concorda: ''Até eu digo que ela é maluca''. A suposta insanidade de Flordelis tem muitas caras infantis, adolescentes, adultas, risonhas, dependentes - e felizes, isso também chama logo atenção. Ex-professora primária, nascida e criada na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, ela derrama sobre todos o mesmo olhar brilhante em que se misturam carinho e rigor. ''Sou uma mãe muito enjoada. Aqui todo mundo tem limite'', diz. Isso vale tanto para a pequena e serelepe Sara, 6, quanto para o maduro e calado Carlos, de 39 - a mesma idade de seu marido.

Gente de todas as idades, temperamentos, tons de pele, os filhos de Flordelis fazem parecer pequena a ampla casa de nove quartos alugada em um condomínio de Piratininga, região oceânica de Niterói (RJ), onde vivem. Ali, em meio a dezenas de beliches, uma mesa de sinuca, escorrega, triciclos, um único traço une a todos: são sobreviventes da tragédia social carioca, resgatados por uma mulher incomum das garras do tráfico de drogas, da vida nas ruas, da mendicância, da prostituição. Flordelis eleva a palavra mãe a uma potência tão alta que dá vertigem. ''Ser mãe não é gerar no ventre. É gerar no coração'', ensina.

''Há casos em que você não pode virar as costas''

Hora de fazer contas. Casados há 17 anos, Flordelis e Anderson têm 50 filhos e sete netos - “95% deles flamenguistas”, no orgulhoso cálculo do pai, que, de vez em quando, lota sua van e contribui para encher as arquibancadas do Maracanã. Dessa meia centena de rebentos, apenas quatro - três do primeiro casamento de Flor, como os amigos a chamam - são biológicos. Os outros 46 foram adotados, primeiro aos poucos, no varejo, e de repente aos borbotões, no atacado. Simplesmente porque, nas palavras dela, ''há casos em que você não pode virar as costas''. Como nos melhores dramas, tudo nessa história deu muito errado antes de acabar bem. ''É um milagre a gente ter chegado até aqui'', espanta-se Anderson.

A explosão da filharada ocorreu em 1994. O marido trabalhava no Banco do Brasil enquanto Flordelis, filha de pastores da Assembleia de Deus, dedicava-se por puro voluntarismo ao trabalho de evangelização que começava a torná-la famosa nas comunidades de Jacarezinho, Manguinhos, Parada de Lucas e Complexo do Alemão. Circulando livremente em áreas controladas por facções criminosas, seu alvo principal eram as crianças cooptadas pelo tráfico de drogas. ''Eu nunca tive medo'', lembra. ''Chegava para um menino armado e dizia: 'Ah, como eu queria ser sua mãe para tomar essa arma de você'. Ele ria, e assim eu ia conseguindo desarmar as pessoas, conversar com elas. Evangelizar é ouvir.'' Foi ameaçada de morte por bandidos, mas nunca sofreu um arranhão. A fama de louca, que começava a nascer, ajudava a protegê-la.

As adoções começaram a surgir como desdobramento desse trabalho. Carlos, viciado em cocaína e ''armeiro'' (responsável pela conservação do arsenal) de uma boca de fumo, foi o primeiro a ser acolhido, aos 16 anos. Outros vieram. Contudo, a família que dividia a casa de dois quartos no Jacarezinho ainda era administrável - contava-se nos dedos das duas mãos - quando, em março de 1994, bateram à sua porta 37 menores de rua em estado de absoluto desespero. O grupo de extermínio responsável pela chacina da Candelária, ocorrida no ano anterior, voltara a agir - agora na Central do Brasil, onde alguns sobreviventes do primeiro ataque tinham passado a dormir. Um adolescente morreu baleado, um bebê ficou ferido, o resto era puro pavor. Flor abriu bem as asas e ficou com todo mundo.

Talvez aquela acusação de loucura tenha algum fundamento. Se Flordelis pautasse sua vida pelos princípios da racionalidade, do conforto e do egoísmo moderado, jamais teria lhe passado pela cabeça fazer uma coisa dessas. Como acomodar aquela multidão numa casa de dois quartos? Como alimentar tantas bocas? ''Com frango e angu'', lembra Anderson, que logo largou o emprego no banco para ser pai em tempo integral. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, foi um dos principais apoios do casal nesse momento. ''No começo, logo depois da chacina, a comunidade do Jacarezinho também ajudava bastante'', diz Anderson. Mas a boa vontade do mundo com aquela maluquice tinha prazo de validade.

Não demorou para que o inventário de seus inimigos crescesse na mesma proporção da lista de filhos. Em reação àquelas adoções informais, feitas de fato, mas não de direito, oficiais de justiça começaram a bater à porta da casa no Jacarezinho com ordens do Juizado de Menores para que as crianças fossem devolvidas às suas famílias. Duas foram mesmo, mas pouco tempo depois estavam mortas: a adolescente Rose, assassinada por traficantes, e o pequeno Beá, vítima do próprio pai, cocainomaníaco. ''Aí eu decidi que não ia entregar mais ninguém'', diz Flor. ''Começamos a fugir da Justiça.''

A pergunta era inevitável: ''Onde foi que nós erramos?''

Do Jacarezinho para Irajá, de Irajá para Parada de Lucas, de Parada de Lucas para lugar nenhum - na noite em que a populosa família, sem opção, teve de dormir na rua, bateu pela primeira vez o desespero em Flordelis. Os jornais a chamavam de sequestradora. Amigos e parentes voltavam-se contra ela. Nem a comunidade evangélica a apoiava. A pergunta era inevitável: ''Onde foi que nós erramos?''

E então, na segunda metade dos anos 90, tudo começou a entrar nos trilhos. Sensibilizados, dois empresários do ramo hoteleiro, Pedro e Carlos Werneck, procuraram o casal e propuseram legalizar a situação criando o Instituto da Criança - que até hoje encarrega-se de pagar o aluguel da família. E o juiz de menores Siro Darlan passou a orientá-los no mar de processos de adoção legal, muitos dos quais ainda tramitam na Justiça.

De vilões, Flordelis e Anderson passaram a ser encarados como heróis. Em maio de 2002, o Fantástico dedicou-lhes uma reportagem entusiástica que ajudou a mudar de vez sua imagem. No ano seguinte, Flor foi declarada ''mãe do ano'' por Xuxa e começou atrair o apoio do pesado time de estrelas - como Letícia Sabatella, Reynaldo Gianecchini, Deborah Secco e Cauã Reymond -, que acabaria por dar visibilidade ao longa-metragem lançado ano passado sobre sua história, chamado Flordelis - Basta Uma Palavra para Mudar.

Hoje, mais que mãe, Flordelis é o centro de uma rede social de amparo à infância de risco. Há sete anos, na pequena igreja que abriu com o marido em São Gonçalo, o Ministério Flordelis, é a ''missionária Flor'', que reúne cerca de mil pessoas todas as quartas-feiras e domingos para ouvi-la cantar com sua voz afinada. Lá, Anderson, criado na fé batista, atende por pastor e prega uma versão religiosa do discurso motivacional que, três vezes por semana, os dois levam a escolas, empresas e outras igrejas. Na mesma cidade, o Instituto Flordelis de Apoio ao Menor abriga cerca de 200 crianças. O jogo agora é mais profissional.

Final feliz? Até seria se esta história tivesse fim. Mas não tem. Na quarta-feira (7), Flordelis e Anderson se desdobravam no apoio aos membros de sua igreja que perderam tudo nos deslizamentos de terra em Niterói e São Gonçalo. E ela sofre ao perceber que, embora esteja vencendo sua batalha, a sociedade caminha para perder a guerra. ''Tudo está piorando. Agora tem o crack. O Jacarezinho hoje é uma Faixa de Gaza, dez vezes pior do que antes'', alarma-se. ''A educação tem que ser melhor, mas as pessoas precisam unir forças. Cobram muito dos governantes, mas elas mesmas não fazem nada.''

''Meu único medo é não conseguir ter uma casa própria''

No plano pessoal, a apreensão é de outra ordem. ''Meu único medo é não conseguir ter uma casa própria para garantir a tranquilidade dos meus filhos'', diz, cansada de, a cada fim de contrato de aluguel, ter de procurar um novo endereço por pressão dos locatários ou de outros condôminos ansiosos por ver pelas costas aquela trupe extravagante. Pelo menos o fim das adoções deveria tranquilizá-la: afinal, uma casa que consome diariamente 6 quilos de arroz e 200 pãezinhos franceses não precisa de mais nenhum grama de peso no orçamento. É quando Flor sorri, enigmática, olhar perdido na distância. Não estaria pensando em voltar a adotar crianças, estaria?

Bingo! ''Sinto falta. Não me vejo ficando velha sozinha, sem crianças a meu lado.” Deve ser por isso que tanta gente a chama de maluca. Se Flordelis fosse sã, a ferida social que rasga ao meio uma metrópole como o Rio de Janeiro seria pior. Flor pertence àquela galeria de pirados em que figuram personagens como Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi, Nelson Mandela - seres humanos que, quando a sanidade vira uma máquina de perpetuar horror e sofrimento, escolhem o caminho mais difícil e perguntam:

''Tem certeza de que o louco sou eu?''

Uma excelente pergunta.

Imagem: Marcos Pinto

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