"Não precisamos de telhados.Deus é o nosso teto" diz reverendo haitiano

"Não precisamos de telhados.Deus é o nosso teto" diz reverendo haitiano

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:01

Em 2010, Daphne Joseph, uma adolescente magra e tímida, levou uma surra da vida. Ela assistiu com horror quando o corpo mutilado de sua mãe foi colocado em um carrinho de mão após o terremoto de 12 de janeiro. Ela se uniu a um grupo desorganizado de órfãos sob os cuidados de uma comunidade bem intencionada, mas mal equipada. Ela os deixou contra sua vontade quando uma suposta parente a levou para usá-la como serva.

Em seguida, não muito tempo antes de seu aniversário de 15 anos, Daphne se viu em uma casa real, com outros órfãos desamparados após o desastre que todos aqui chamam de "goudou goudou" por causa do som terrível que fez o chão ao tremer. Ela colocou um vestido de festa, assoprou as velinhas e sorriu.

"Eu acredito que Daphne era uma garota frágil e sensível mesmo antes do goudou goudou", disse Pierre-Joseph, uma psicóloga que aconselha a menina. "Depois, ela era como um copo que ficou cheio até a borda e transbordou. Você poderia dizer que ela ainda está em choque, mas está encontrando seu equilíbrio”.

Após um ano de dificuldades quase incompreensíveis no Haiti, há pouca razão para se ter esperança agora. Mais de 1 milhão de deslocados continuam a viver em barracas e lonas. A reconstrução de um país melhor do que era antes, como foi proclamada em março passado, ainda mal começou. O único motivo de orgulho dos oficiais seis meses após o terremoto – que doença e violência foram evitadas – desapareceu com o surto de cólera e a agitação política em torno da polêmica eleição presidencial.

Miséria constante E, de fato, para alguns, a miséria é uma constante. Rose, uma jovem mulher que foi sequestrada, estuprada e escondida nas ruínas do terremoto, em junho, foi forçada a fugir para o campo depois que seus sequestradores fizeram uma segunda tentativa. Marie Claude Pierre, cujo filho foi levado para o exterior, era triste mesmo antes do terremoto. Ela está ainda mais triste agora.

No entanto, apesar do cenário sombrio, muitos haitianos, como Daphne, começaram a encontrar algum equilíbrio – para curar, para reconstruir ou simplesmente reajustar suas vidas. Uma dançarina cuja perna foi amputada caminha sobre um novo membro. Um pastor, cuja igreja foi devastada festeja uma congregação que dobrou de tamanho. Um empresário obstinadamente fiel ao Haiti irá abrir uma fábrica de estrutura anti-sísmica no local onde a sua antiga estrutura desmoronou.

Aqui, assombrandas e esperançosas, estão algumas de suas histórias.

  Fabienne Jean Fabienne Jean, a bailarina que perdeu uma perna no terremoto, sorriu tão radiante e expressou tamanha coragem que todo mundo que leu sobre ela ou a conheceu queria ajudar. Médicos, ortopedistas, coreógrafos, dançarinos com deficiência, grupos de caridade: todos queriam adotá-la. No início da primavera, Fabienne ponderava ofertas conflitantes. Colocar uma prótese patrocinada por um grupo sem fins lucrativos de New Hampshire ou voar para Nova York, onde o Centro Médico Mount Sinai proporcionaria uma cirurgia corretiva, reabilitação e uma estada de meses na cidade. A atenção dos estrangeiros era esmagadora. Após um período de indecisão agonizante, Jean preferiu ficar no Haiti, onde se sentia em casa. Os nova-iorquinos estavam propondo uma segunda operação para fortalecer sua perna. Isso, disse Fabienne, foi algo que impactou na sua decisão. "Eu não quero outra operação", ela disse. "Eu não quero perder mais nada da minha perna". Recentemente, apoiada com orgulho sobre dois pés, Jean mostrou o caminho para a casa de sua família. Sempre consciente da moda, ela estava usando bijuterias, uma blusa de alcinhas e calça jeans. Sua nova prótese vestia meia e uma sapatilha. Usando uma bengala, ela andava normalmente, mas com um ligeiro mancar, caminhando pelo terreno desafiador da casa – uma entrada inclinada e esburacada através de uma escada inacabada de concreto sem corrimão. Fabienne havia se mudado de volta para a casa de sua família após romper com seu namorado de longa data, também dançarino, por "razões do coração, nada a ver com a perna". Há uma semana, ela orgulhosamente se estabeleceu em um apartamento que alugou por conta própria e que compartilha com sua mãe e sua filha (uma sobrinha que havia adotado antes do terremoto). Várias vezes por semana, Fabienne faz uma rotina de exercícios supervisionados por uma estudante do ensino médio treinada em fisioterapia pelo grupo de New Hampshire. O grupo, a Fundação Nebco, que desenvolveu e colocou sua prótese, irá ajustá-la no próximo mês e testar os pés que permitirão que ela dance novamente. Fabienne está ansiosa para isso, ela disse, mas acrescentou: "Realisticamente, de nenhuma maneira eu serei uma bailarina profissional novamente. Então vou precisar de uma outra maneira de ganhar a vida". Ela imagina uma boutique de moda ou uma escola de dança. Ela não quer ser um fardo para sua família, que sempre esperou que ela, a filha mais velha e mais talentosa, fosse ajudá-los. Seu pai, ela disse, teve medo após o terremoto que ela acabaria "em uma esquina, como uma mendiga deficiente". Mas isso não vai acontecer, ela disse. "Há algumas pessoas com deficiência que pensam que a vida acabou, que têm vergonha", disse ela, antes de colocar alegremente sua prótese sobre seu ombro durante uma sessão de fotos. "Eu não sou assim. Exceto pelo fato de ter perdido uma parte de mim no dia 12 de janeiro, eu ainda sou a Fabienne".

Reverendo Enso Sylvert Como faz desde o terremoto, o reverendo Enso Sylvert se sentou em uma manhã recente na cadeira de metal colocada sob uma lona, agora rasgada, que ocupou após o desastre. Na sombra de sua igreja que desabou na Avenida Poupelard, Sylvert ostentava uma camisa laranja e uma gravata amarela amarrotada e continuava pregando sobre o fim dos tempos. Mas sua promessa de reconstruir suas instalações em 2010 foi moderada pela realidade. O banco recentemente desapropriou a propriedade por causa da inadimplência nos pagamentos de empréstimos, porque os paroquianos não podiam pagar as doações. Qualquer dia agora, disse ele, o banco irá apreender o que resta da igreja. Ainda assim, o pastor insistiu, como o seu coro escapou por pouco da morte quando a igreja desabou, como sua filha foi poupada quando se levantou para responder à pergunta de um professor enquanto a menina que tomou seu lugar foi morta por um bloco de concreto, “um milagre” também manterá a Igreja Evangélica da Graça viva. "Tenho certeza – certeza! – que renasceremos na Avenida Poupelard", ele disse. "Os acontecimentos de 12 de janeiro destruíram centenas de prédios de igrejas. Mas matou nossas congregações? Não. Ao contrário. Não precisamos de telhados para orar. Deus é o nosso teto". Além da igreja, o espírito de sobrevivência ao longo da atingida Avenida Poupelard, que pulsou com força logo após o terremoto, permanece - ainda que cansado. As pessoas são engenhosas, disse o pastor, "mas elas carregam suas perdas lá dentro, como dores incansáveis". Sylvert realiza cultos ao ar livre, na propriedade contígua à igreja, e muitos são atraídos pelos alto-falantes enormes que disseminam suas palavras. Mas a miséria em si foi boa para os negócios, disse ele. "Em momentos como este, com a destruição por toda parte, com a crise eleitoral no ar, com a cólera na água, as pessoas só têm a Deus", disse. "Deus é o único líder não corrompido do Haiti".

Marie Pierre Claude Dentro de um labirinto de vielas na favela Cidade Eterna, Pierre, 30 anos, timidamente recebia visitantes no barraco de um quarto que divide com uma dúzia de parentes – mas não com qualquer um de seus filhos. O filho mais velho de Marie, Fekens, 11 anos, tem vivido em um orfanato em Pittsburgh desde uma semana após o terremoto de 12 de janeiro, quando foi arrancado do Haiti a bordo de um avião cheio de órfãos patrocinado por um projeto do governador Edward Rendell, da Pensilvânia. Como foi descoberto depois, várias outras crianças naquele vôo não eram órfãs e não tinham pais adotivos à sua espera. Imagens do desembarque das crianças em Pittsburgh foram transmitidas em todo o mundo, mas Marie não sabia que Fekens tinha partido até dias depois de ele deixar o país. Quando ela conseguiu cruzar a zona de desastre e chegar ao orfanato Bresma, onde Fekens e os outros moravam antes da partida, ele estava vazio. Quando ela finalmente descobriu o porquê, o que mais a perturbou foi que Fekens possivelmente havia ligado para se despedir no telefone celular que ela perdeu durante o terremoto. Uma mulher pequena com brilhantes minúsculos embutidos nos dentes da frente, Pierre descreve-se como uma pessoa que aceita sem protestar o que a vida lhe oferece. Falando baixinho em um barraco dominado por uma estante cheia de bichos de pelúcia, ela explicou como primeiro perdeu a custódia de Fekens – e de seus outros quatro filhos. Ela e seu ex-marido costumavam brigar, disse ela, e ela fugia, espancada, para a casa de parentes. Durante uma separação, o marido "tomou a decisão de doar os filhos", ela disse. A opinião dela não foi levada em consideração, disse, mas imaginava que a sua estadia no orfanato, que visitava mensalmente, seria temporária. E foi, embora não da maneira que ela esperava. Quatro de seus filhos foram adotados por uma família francesa antes do terremoto, segundo a diretora do orfanato, Margarette St. Fleur. Só Fekens, o mais velho, permaneceu em Bresma. Ele "também queria ser adotado", segundo St. Fleur. Quando ocorreu o terremoto, deixando o orfanato danificado, mas em pé, duas mulheres de Pittsburgh que trabalhavam no local com as crianças enviaram um apelo urgente para a sua recuperação, que foi respondido pelo governador Rendell. Depois que o avião pousou em Pittsburgh, o Departamento Federal de Saúde e Serviços Humanos assumiu a guarda legal de uma dezena de crianças, incluindo Fekens, que não estavam em processo de adoção. Então, no início de dezembro, as crianças foram autorizadas para a adoção. Pouco tempo antes, disse Marie, St. Fleur havia lhe pedido para assinar papéis renunciando seus direitos de mãe. Ela o fez. Ela diz sentir falta dos filhos. "Espero que um dia eles voltem para me visitar", disse ela, ao pedir que uma mensagem seja entregue a Fekens: "Diga a ele bonjour, bonsoir (bom dia, boa noite). Diga-lhe para se comportar e não causar problemas. Mande beijos". Questionada se isso era tudo, ela hesitou. "Eu sei que ele não está trabalhando, por isso não posso pedir que me envie dinheiro", disse ela sobre o filho de 11 anos.

Alain Villard Poucos dias depois do terremoto, Alain Villard, sacudindo a cabeça, examinava a propriedade arborizada em Petionville onde seu hotel boutique, Vila Teresa, estava em ruínas. Dez morreram no local, incluindo quatro crianças haitianas e os pais estrangeiros que iriam adotá-las. Vários corpos estavam embrulhados em um pano, cheio de moscas. Em Carrefour, a fábrica de roupas de grande porte de Villard, a Palm Apparel, havia sido arrasada, e as mortes pareciam estar na casa das centenas. O cadáver de uma trabalhadora apodrecia pendurado para fora da janela de onde ela havia tentado pular. Na época, falando a poucos metros dos cadáveres, Villard, 42 anos, havia ponderado melancolicamente sobre a economia deprimida do Haiti que se preparava para uma revitalização. Certamente, disse ele, deve haver uma maneira de recuperar aquele ímpeto. Com a maioria do Haiti paralisado pela catástrofe, Villard pensava adiante. Dentro de um mês, ele havia limpado os detritos e restos humanos de sua fábrica, que produz camisetas para uma empresa de roupas canadense, a tempo para um serviço fúnebre. Menos trabalhadores haviam sido mortos do que o inicialmente se estimava. Sessenta e sete foram homenageados no serviço, no final do qual Villard anunciou a reabertura da fábrica às 6h30 da segunda-feira seguinte, com dois turnos de funcionamento divididos entre os sobreviventes. "Eu acredito na fabricação", disse ele recentemente. "Como um empresário sob contrato com uma empresa multinacional, eu preciso enviar o produto. E o povo haitiano precisa trabalhar". Quando ele foi entrevistado em uma mesa de jardim em seu hotel abandonado, Villard tinha acabado de voltar de uma viagem ao exterior para encontrar o país fechado por causa da instabilidade política. "2010: o ano em que o Haiti foi bombardeado com dores de cabeça", disse. Ele espera abrir uma fábrica nova e à prova de terremotos no dia 12 de janeiro, além de dar início à reconstrução do hotel. Embora tenha desaparecido há quase um ano, o Villa Teresa ainda é classificado em segundo lugar entre os 25 hotéis de Porto Príncipe no site Tripadvisor – um triste comentário sobre a indústria do turismo do Haiti. "Você tem de manter a fé. Em nenhuma circunstância eu teria feito as minhas malas e deixado o Haiti, como outros fizeram. Sim, eu poderia ir para outro lugar que tenha boas estradas pavimentadas e eletricidade. Mas nenhum país é perfeito. E nós temos manga – manga orgânica".

Daphne Joseph Em janeiro, Daphne foi deixada à porta de uma organização comunitária idealista chamada Frades, que se especializa em microcrédito, mas que após o terremoto aceitou dezenas de crianças órfãs porque parecia que a coisa honrada a se fazer. Na primavera, uma jovem mulher com pouca conexão com ela – a namorada do pai do meio-irmão de Daphne – apareceu para reclamá-la e ela se mudou para um acampamento miserável. Daphne, torcendo as mãos ao relembrar seu tempo lá, disse que a mulher costumava bater nela com um cinto de couro se ela hesitasse ou se recusasse a ir buscar água ou esvaziar o pinico. Ela ansiava por voltar ao Frades, embora a situação lá também não fosse ideal. No início do verão, as crianças estavam dormindo em restos de tapete desfiados em cima de uma laje de concreto sob tendas desintegradas. Eles enfrentavam despejo iminente. Mas, quando as coisas estavam realmente ruins, um grupo de americanos e, especialmente, um doador generoso, veio em seu socorro. Os americanos ajudaram o grupo haitiano a alugar uma bela casa em uma propriedade murada, contratar cozinheiros e professores, garantir um gerador e água tratada, além de brinquedos. Improviso O reverendo Gerald Bataille, guardião das crianças em tempo integral desde janeiro, organizou uma escola improvisada e contratou pessoal doméstico. Os 13 meninos compartilhavam um quarto com duas camas e as 15 meninas outro. Novas mochilas foram penduradas nas paredes, ainda que vazias. "Nós ainda não temos livros para colocar nelas", explicou o pastor.

Na hora da refeição, as crianças se sentam lado a lado em dois longos bancos. Depois de rezar, abanam suas pequenas mãos continuamente sobre os pratos para afastar as moscas enquanto comem. Quando o grupo se estabeleceu, Bataille buscou trazer Daphne, que parecia cada vez mais magra, de volta. Mas a mulher recusou. Então ele procurou e localizou o irmão da mãe de Daphne, que ficou devastado com a notícia da morte de sua irmã. "O tio deu Daphne de volta a nós até que ela atinja a maturidade", disse o pastor, acrescentando: "E desde esse dia, ele não veio uma única vez visitá-la".

  Daphne ainda tem pesadelos recorrentes e acessos de choro; ela se torna introspectiva sem aviso prévio. Mas ela se dedica aos seus estudos – uma avaliação determinou seu nível equivalente ao de um aluno da quarta série – e ela ama e é amada por outras crianças.

"Eles são como meus irmãos e irmãs", disse Daphne, vestindo uma tiara de renda e uma camiseta. à mãe, ela contou, costumava dizer que sonhava em abrir um orfanato para crianças que não tiveram tanta sorte quanto ela.

"Minha mãe dizia: 'Oh, você tem grandes sonhos. Você vai ter de ser uma boa menina, permanecer casta e orar a Deus para realizar seu objetivo"', disse Daphne. "Minha mãe também costumava dizer: ‘Eu estarei sempre ao seu lado’. Ela não está, mas o goudou goudou não matou meus sonhos”.

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