Promessa Brasileira não surf mundial afirma não conhecer muito a bíblia

Gênio do surf lê devocionário Pão Diário em suas meditações

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:17

Gênio do surf, caiçara que assombrou o World Tour e único do planeta capaz de bater Kelly Slater. Quem não conhece Gabriel Medina, a promessa brasileira no surf mundial pensa que o jovem de 18 anos só quer saber de surf, internet e viagem. Mas as aparências enganam e, mesmo não gostando de leitura, Medina pegou gosto pela leitura do devocional ‘Pão Diário’, presente dado pela mãe, frequentadora da Bola de Neve Church.     Isso mesmo, o surfista de maior destaque no cenário esportivo no momento tem folheado a agenda evangélica de autoajuda e ‘curtido’ a ideia, embora não entenda algumas palavras bíblicas. “É irado! Meu pai não vai à igreja, mas minha mãe vai sempre na Bola de Neve e me deu esse livro”, conta Medina, que chama o padrasto de pai. “Ela (mãe) está me ensinando a ler a Bíblia. Não entendo muito. Tem umas palavras sinistras! Mas oro sempre antes de dormir”, diz o bom menino.


DESDE CEDO

“Quando tinha 10 anos, o Charles me levava pra nadar na piscina em Camburi até se a água estava fria. Ele dizia: ‘Quer ser campeão mundial? Tira a camisa!’. Aí também tirava, a gente corria na chuva e depois caía na piscina gelada. Eu já sabia que queria ser surfista profissional. Via o Kelly e pensava ‘quero ser ele’. Se pra isso precisasse cair na água gelada, caía!” Se para a maioria dos fiéis Deus é pai e não padrasto, para Gabriel Medina o padrasto é uma espécie de Deus. É o padrasto Charles Saldanha Rodrigues quem determina quando, como, onde e por que o surfista treina, descansa, come, acorda, compete, fala com a imprensa, dorme – e até namora. Tem funcionado: com Charles de sombra, Gabri’Air, ou Medal, ou Air Medina, como a imprensa o chama, é o único surfista na história a vencer dois títulos de etapas do campeonato mundial em suas primeiras quatro participações. Dois títulos ganhando baterias em cima de Kelly Slater.

Com 15 anos, Medina foi o mais jovem a ganhar uma etapa do WQS (na praia Mole, sobre o local Neco Padaratz). Com seus atuais 17, tornou-se o mais novo a entrar no World Tour (ao vencer o WQS no País Basco este ano) e o único a ganhar a segunda etapa do WT de que participou (em Hossegor, França). Em 2009-2010 já havia vencido três campeonatos seguidos, todos com notas dez na final, feito inédito: o King of the Groms International 2009 na França, o mundial júnior, no ISA World Surfing Games 2010 na Nova Zelândia, e o Rip Curl Grom Search International 2010 na Austrália. Outro recorde impressionante? Ao lado de Slater, o prodígio foi o único surfista profissional a tirar duas notas dez em uma mesma bateria (Slater pegou dois dez com dois tubos, mas Medina ganhou o King of Groms de 2009 com dois aéreos diferentes). As comparações com Slater não são descabidas. Aos 39, Slater é o mais velho campeão, mas já foi o mais novo (aos 20, em 1992, no Rio de Janeiro). Ao completar 18 anos em 22 de dezembro, o fenômeno ainda terá dois para superar essa marca do careca norte-americano. Será seu próximo recorde?

“Tô trabalhando pra isso”, diz Medina, em seu jeito tranquilo – aliás, tranquilo demais para pronunciar a palavra trabalho: a alguns metros de distância quebram as ondas perfeitas de Pipeline. Estamos em Oahu, Havaí, na casa alugada a peso de ouro pela patrocinadora de Medina, a Rip Curl, de frente para o crime (valor estimado da mansão: US$ 7 milhões). Logo após a vitória na etapa de San Francisco, o padrasto Charles trouxe o menino pela orelha: “vai treinar pra Pipeline, moleque”. A orelha inchou e deu a Medina uma ideia. Fugindo da sempre crowdeada Pipeline, tem treinado em Off The Wall, Rock Piles e Rocky Point – nesta última, depois de tropeçar num celular na areia, Medina criou a manobra “airphone”. É um aéreo seguido de um veloz saque de celular da bermuda, suficiente para mandar um “alô” e emendar o gesto com um floater, manobra em que a prancha flutua de leve sobre a onda [talvez você leve mais tempo para ler esta frase que Medina usou ao criar a acrobacia]. A imagem caiu na internet e em um dia 700 fãs criaram gracinhas para dublar Medina no airphone – de “Pois é, gata, fiquei preso no trânsito” a “Vou precisar de uma Kombi dia 8 de dezembro pra enfiar uns surfistas dentro”.


Bi, chegou a hora

Dia 8 de dezembro começaria o Pipe Masters, único dos campeonatos da Tríplice Coroa havaiana em que Medina se inscreveu. À boca miúda, surfistas condenavam a estratégia de descartar o Reef Pro em Haleiwa e a World Cup em Sunset – afinal, o garoto precisa de experiência nas ondas do North Shore havaiano. Mas foi assim que o padrastro Charles decidiu. “Pipe Masters tem mais visibilidade, e não fazia sentido o Gabriel se estressar com várias competições seguidas”, explica Charles. “Assim ele pode alternar relax com treino, aí quando começar Pipe vai ficar absolutamente focado.” Foco é unanimidade entre os elogios a Medina – ao lado das usuais comparações com Slater, que também só disputará o Masters. “Ele está sempre sossegado porque só pensa no surf que vai fazer”, avalia o big rider Pedro Scooby, parceiro constante de Medina no North Shore. “Nunca ouvi o Gabriel se referir ao Slater com medo: pra ele é natural ganhar do cara, sem arrogância”, arremata. “A ascensão de Medina foi mais empolgante que qualquer outro surfista desde Slater”, afirma o ex-top Shea Lopez, zanzando em Sunset. “Gabriel meteu fogo na praia”, disparou o veterano australiano Joel Parkinson, que perdeu para Medina na final em San Francisco. “É um dos talentos mais loucos que já vi, um competidor duro, maduro para a idade.” O próprio Slater resignou-se, ao ser derrotado por Medina pela segunda vez (e contabilize-se nessa queda de quilhas com brasileiros a lavada que tomou de Adriano de Souza na etapa do WT em Peniche, Portugal). “Antigamente eram os jovens que aprendiam com os velhos. Mas agora está acontecendo o contrário! Se você quer colocar o surf em outro nível, tem que empurrá-lo para perto do que caras como o Gabriel estão fazendo”, suspirou.

Um elogio desses, vindo de um cara 11 vezes campeão do mundo, marca difícil de superar em qualquer esporte, poderia facilmente subir à cabeça de um adolescente. É o tipo de coisa que o padrasto Charles, tenta não deixar acontecer. “Quando vejo que ele está se achando, chego e digo: ‘Você ainda não é o Kelly’”, conta Charles. “E olha que é uma bronca que posso usar pelo menos 11 vezes!”, ri. O padrasto se sente à vontade para atuar como superego de Medina. “Antes da prova eu fico como um diabinho no ouvido dele: ‘É, Bi, chegou a hora!’. Se ele perde, eu mudo, consolo. Mas não deixo de dizer que ele errou. O melhor jeito de tirar a tristeza é discutindo os erros”, revela Charles. “Ele engole o choro, fica calado, mas no dia seguinte já cai na água pra saber como ganhar na próxima. Ele é muito competitivo.”


Messias de Maresias

Desde sempre foi assim: Medina detesta perder. No surf, no futebol, na bola de gude, no palitinho, no videogame – só entra pra ganhar. Na água começou cedo, 8 pra 9 anos. Aos 2 meses de idade, já era local da praia de Maresias, São Sebastião, litoral norte de São Paulo. (Temos aí outra marca para a galeria: Medina é o caiçara mais bemsucedido da história do surf brasileiro. Entre os locais de Maresias, é o Messias.) Medina nasceu em São Paulo, filho de Simone Medina. O pai, natural de São Sebastião, família toda de Santos, morava em Maresias, e nem sequer subiu a serra para assistir ao parto. Simone teve outra criança com o pai de Gabriel, Filipe, até que se separou, sete anos depois. Conhecia Charles há tempos: era sua funcionária na surf shop em Maresias. Um ano mais tarde uma nova família se formava – e Gabriel ganharia a primeira prancha.

“Cedo eu percebi que ele tinha talento natural para o surf”, conta Charles. “Ficava emocionado vendo ele surfar pequenininho... Com 11 anos vi ele no Canto do Moreira dar dois aéreos seguidos! Ali foi a primeira vez que realmente me assustei com seu talento”, recorda, olhos marejados. Jeito sossegado, porte mediano, fala macia, Charles, 40 anos, mora em Maresias há 20. Paulistano de Vila Nova Conceição, filho de engenheiro, largou a faculdade de arquitetura no Mackenzie seis meses antes de se formar para abrir uma surf shop na costa norte paulista – então, um paraíso frequentado por raríssimos. Seu pai era contra a mudança de profissão, mas não teve jeito: em pouco tempo Charles viajava com os amigos em barcas para o Peru, a Indonésia e o Havaí. Nunca foi, porém, profissional. Free surfer, aplicou as lições de arquitetura às manobras do enteado, de quem elogia a inteligência física. “Sempre achei difícil corrigir uma manobra minha, por isso não me profissionalizei. Com ele é o contrário: se faz uma manobra feia e digo a ele algo tipo ‘esse arco não estava legal, abre mais o braço’, na onda seguinte ele faz exatamente o que pedi. Entende rápido”, destaca Charles. “Fico obcecado em fazer ele lincar uma manobra na outra. Daí vem a fluência. Tento ensinar ele a esticar um movimento inteiro para logo em seguida chegar na outra manobra, como se uma saísse da outra. E peço que faça toda uma onda na mesma velocidade”, desenvolve.

Fã de Oscar Niemeyer e Tom Curren, o padrasto diz que, acima de todas as aulas, sempre primou por um princípio: a beleza. “Minha preocupação com Gabriel é a beleza do surf. O surf tem de ser fluido, uma manobra precisa encaixar na outra no mesmo gesto, sem baque, com prazer. Mesmo um aéreo é uma manobra brusca, mas a aterrissagem tem de ser suave. Detesto surfista que cai de um aéreo com a perna aberta, é feio. Ele pode até perder uma bateria, mas tem que surfar bonito”, analisa Charles. “O movimento tem de ser exatamente como uma onda, braços, pernas, tronco. Agora, de nada adianta saber balançar se você não tem destreza nos pés, o que o Gabriel tem naturalmente. Isso não se ensina. É como ver um garoto de 9 anos que conduz a bola sem olhar pra ela”, afirma Charles – que, diferente do enteado corintiano, é palmeirense.

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