Semana de estudos teológicos discute temas biblia e cotidiano

Semana de estudos teológicos discute temas biblia e cotidiano

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:08

O caminho de Emaús (Lucas 24.13-35) foi o texto inspirador para a celebração que encerrou a Semana de Estudos Teológicos. Cada momento litúrgico foi ancorado num trecho dessa bela passagem bíblica. Assim, a liturgia do encontro foi inspirada pelos dois homens que, indo para uma aldeia chamada Emaús, encontram Jesus no caminho.

A liturgia do cotidiano lembrou Jesus conversando com os discípulos e recebendo as notícias da cidade, as “ocorrências desses últimos dias” que os deixara tão entristecidos. Na liturgia da Palavra, o Mestre lhes expõe as Escrituras. Esse foi o momento do sermão proferido pelo professor e pastor luterano Milton Schwantes (leia abaixo). A refeição de Jesus com os discípulos inspirou a liturgia da mesa, celebração da Santa Ceia para os/as participantes da Semana. Finalmente, a liturgia da missão, momento de envio missionário, foi inspirado pela ação dos discípulos que, tendo reconhecido o Mestre na partilha do pão, na mesma hora se levantam e voltam para Jerusalém, para contar aos onze e aos outros que com eles estavam, “o que lhes acontecera no caminho”.

Menos religião, mais amor e justiça (Uma síntese do sermão proferido pelo pastor Milton Schwantes)

A Bíblia é parecida com árvores que, impactadas pelo frio e calor, soltam suas folhas pelo chão. As Escrituras são essas folhas que vão caindo e adubando nossa vida, nutrindo nosso caminhar. Não estamos aqui propriamente porque somos religiosos. Tenho a impressão de que ser religioso é uma forma de doença, com todo respeito... Religião é um conjunto de práticas que você assume e vai repetindo porque tem gosto nisso. E quem sou eu para julgar? Não tenho nada contra. Tem gente que tem pé de coelho na frente do pára-brisa do carro pra dar sorte, tudo bem. Mas que seja de plástico, coitado do bichinho... São gestos religiosos, tenho respeito por isso. O problema é que há pessoas que dizem que fé em Jesus é isso, é o pé de coelho. Aí as minhas entranhas se rebelam! Porque se fosse assim, não precisaria existir a Bíblia. Quando era criança e me caíram os primeiros dentes, minha mãe, que era muito religiosa, me disse que eu tinha que jogar os dentes pra trás e dizer umas três palavrinhas mágicas para nascerem outros dentes no lugar. Achei aquilo uma maravilha! E fiz direitinho. Quando nasceram os meus dentes, fui todo contente dizer pra minha mãe: “funcionou!” Por que nos agarramos na palavra “religião”? Isso prejudica o caminho da fé. (...) Não deixe que coloquem você nesse patamar. Você não vai ao leito das pessoas que estão doentes porque é religioso. Você vai lá no leito do doente, cheio de micróbios, você se empesteia, não porque é religioso, mas porque é solidário! E então sai daquela visita todo contaminado. Acho ótimo. Imagina Jesus ressuscitando Lázaro, três dias fedendo. Por que ele fez isso? Já tinha tanto “ressuscitado” por aí... Mas esse é o nosso serviço! (...) (Precisamos de )menos religião e mais amor e justiça. Ler mais a Bíblia. Protestante lê pouco a Bíblia. Tem tanto versículo para decorar que esquece de ler a Bíblia. E decora aqueles que vão a favor dele. Amor e justiça são eixos fundantes da fé. O ato de conversão a Jesus é conversão à Justiça e ao Amor. A emoção da conversão é fundamental, mas você não pode esquecer que agora você se converteu à justiça. A justiça é fundante para a fé em Jesus, para isso nós existimos. Amar a Deus e amar ao próximo: fora disso não há caminho a Jesus. Vocês (pastores e pastoras) estão aí para animar a comunidade. Celebração tem que ser bonita, isso é muito bom. Mas que sejam fiéis à Palavra de Deus. (...) Uma vez tive que expulsar uma pessoa da casa paroquial. Não que eu seja herói, na verdade não sou nada corajoso. Era um latifundiário, e ele me contou como roubou terra em Rondônia. Ele era tesoureiro da Igreja. Quando ele terminou de contar sua história, de como havia enriquecido roubando terras em Rondônia, eu disse: “O senhor vai embora e não apareça mais na minha igreja. De mim, Eucaristia jamais!”. Ele achava que queria Jesus, mas era da maracutaia da injustiça. Grandes ladrões foram criados em nossas igrejas. Mas isso só acontece se as Igrejas não pregam o Evangelho da Verdade”.

QUINTA-FEIRA, 28/10:

O tema Bíblia e Ensino foi abordado por dois teólogos com ampla experiência no ensino: o bispo Josué Lazier, que acaba de concluir uma pesquisa de doutorado sobre educação metodista e o professor e pastor Tércio Siqueira. O professor Tércio discorreu sobre a experiência educacional do “povo do Livro”, enfatizando o relacionamento entre professor e aluno nos tempos bíblicos. Ele destacou o lamad, o método hebraico de educação, que traz em si duas dimensões complementares: lamad é a raiz das palavras “aprender e ensinar”. Na educação do Antigo Israel podemos encontrar uma instigante associação com o método pedagógico de Paulo Freire, pois ela não é simples transmissão de informações. A educação não é hierárquica, mas nasce do relacionamento cotidiano de discípulo e mestre, tendo como meta a transformação de vidas. O ensino tem direta relação com a ética, como expressão da justiça divina. O professor Josué Lazier alertou que está faltando essa convivência necessária para a experiência de aprender e ensinar. A educação cristã integral, disse ele, pede que educadores caminhem junto com os educandos, pois se constrói no dia a dia. “A educação cristã não é só informação bíblica e acúmulo de conhecimentos, implica numa vivência que possibilita que membros da Igreja tenham condições de viver numa sociedade complexa e desumana como a nossa, sinalizando as virtudes do Reino de Deus”. À noite, os professores Marcelo Carneiro e Edemir Antunes Filho deram prosseguimento às reflexões sobre o tema. Marcelo Carneiro, professor do Centro Universitário Bennett destacou que o ensino da Bíblia requer preparo do educador e a consideração prévia de diversos aspectos, como definição de público e faixa etária, escolha do formato do estudo (análise literária, histórica, teatralização etc) e o uso de recursos visuais e didáticos, como mapas e quadros cronológicos. Lembrou, também, que o estudo da Bíblia deve estar vinculado à vivência: “Wesley ensinava que precisamos da ortodoxia (a doutrina correta), da ortophatia (o sentimento correto diante do texto) e da ortopraxia (a prática do texto). Essas três dimensões devem ser coesas e conexas”. Edemir Antunes Filho, professor do Instituto Betel de Ensino Superior, fez uma crítica aos modelos de gestão de negócios, importados dos Estados Unidos, que se tornaram parâmetro para as igrejas no afã do crescimento numérico. Esses modelos também sacrificaram o estudo bíblico a favor de orientações pragmáticas e fórmulas prontas. “Precisamos abandonar a tentativa de adestramento ou formatação religiosa e estimular a formação integral das comunidades”, disse o teólogo.

QUARTA-FEIRA, 27/10:

Bíblia e cotidiano foi o tema da Semana de Estudos Teológicos em seu terceiro dia. O professor Rui Josgrilberg, reitor da Faculdade de Teologia, iniciou sua palestra com uma citação de Agostinho: “o primeiro livro que Deus escreveu foi a Criação”. “Deus criou inicialmente o Livro da Vida nossa de cada dia. Com a dificuldade do ser humano em praticar a fé, Deus então escreveu um outro livro, a Bíblia, que está a serviço da vida”, explicou o teólogo. O professor Rui destacou que diferentes “mundos” compõem a nossa subjetividade. No entanto, há um “mundo base” ou “solo” de onde tudo parte e para onde tudo retorna, que é o cotidiano. Assim ocorre, por exemplo, com a ciência. Ela parte do cotidiano e só ganha sentido se para ela retorna. Não faria sentido estudar a eletricidade se nunca a humanidade pudesse dela usufruir. Segundo o professor, o mesmo ocorre com a Teologia. Para cumprir com sua finalidade, a teologia e o estudo da Bíblia devem se voltar ao cotidiano. “A leitura da Bíblia não pode ser dissociada da vida. A prática é o elemento motor da Bíblia”. Cabe à Igreja fazer essa associação entre Bíblia e Vida. Segundo Rui Josgriberg, a Igreja não pode se constituir apenas como mais um mundo entre tantos outros, mas deve “refletir a presença de Deus nos vários mundos, na vida como um todo”. O professor Paulo Garcia, vice-reitor da FaTeo e coordenador do curso de Teologia, discorreu sobre a necessidade de ler o texto bíblico como reflexo das comunidades na qual ele foi escrito. A Bíblia reflete a vida das comunidades que produziram o texto, com suas dores e conflitos. Não há idealização”, disse ele. Assim por exemplo, a comunidade de Atos 2 que “tinha tudo em comum” – e muitas vezes é idealizada pelas leitura que fazemos hoje -- também contava com viúvas passando fome e disputa na divisão de cargos. O texto bíblico não esconde os conflitos das comunidades que o produziu e, por isso, também pode ser lido à luz dos nossos próprios conflitos e ambigüidades. Ler o texto bíblico à luz dos conflitos do povo traz uma compreensão mais ampla de seu significado. O professor Paulo destacou o livro de Marcos, escrito durante período de dominação romana. O endemoniado geraseno (Marcos 5.1-20), ao ser questionado sobre o nome do demônio que o possui, diz que seu nome é “Legião”, que é uma palavra latina. A exegese clássica diria que existem latinismos no texto de Marcos, por conta da localização geográfica. No entanto, é sintomático que os demônios em Marcos falem latim e tenham nome de força militar. O texto foi escrito no meio da guerra judaica, na Galileia, em meio à opressão romana. Também é interessante destacar que, uma vez que os demônios saem do corpo do geraseno, eles entram numa criação de porcos, animal que não criado pelo povo judeu e, sim, pelos romanos. “Marcos diz que Jesus têm poder sobre as legiões. O povo tem que ter fé, não pode ter medo da opressão romana”. Segundo o professor, uma leitura assim contextualizada ressignifica o poder de Jesus diante da comunidade. “A vida que aparece nesses textos é a vida colocada em risco, na desesperança, no limite da existência. O texto tem que ser visto como expressão da vida e angústia de comunidades que leram Jesus à luz de suas vidas. Nós podemos fazer a mesma leitura. O cotidiano é o chão hermenêutico para nossa apropriação hoje”. Na sessão da noite, às 19h20, o professor Jonas Machado, pastor da Igreja Batista e professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo, conclamou os exegetas à humildade. Ele lembrou que existem diferentes leituras da Bíblia, e os exegetas podem ter a tentação de rotular como “incorretas” as leituras que diferem da sua. A partir de um ponto de vista acadêmico, o próprio apóstolo Paulo seria reprovado se estudasse em nossos seminários, afirmou o professor. “Paulo faz uma leitura da Bíblia fragmentada e desconectada de seu contexto”. Mas vale lembrar que a leitura fragmentada da Bíblia sempre existiu nas comunidades de fé. “Sempre foi, é e, ao que parece, sempre será uma prática comum na Igreja”, disse o professor. Não por acaso vemos tantos versículos bíblicos destacados em camisetas, quadros e souvenirs e, nas escolas dominicais, desde cedo as crianças são ensinadas a decorar versículos. Segundo o professor, “ao ler a Bíblia o fiel busca ouvir a voz de Deus para lidar com as situações do presente” e o teólogo precisa estar atento para não se distanciar do povo. Deve buscar incentivar a leitura bíblica como um todo e contribuir para uma compreensão contextualizada do texto bíblico, mas não pode desprezar outras formas de leitura. “É necessário respeitar e reconhecer como válida a leitura nascida da experiência pessoal. O papel do exegeta é de servo participante da comunidade. Ele deve dar sua contribuição intelectual com humildade”. A professora Suely Xavier, biblista da FaTeo, enfatizou o fato de que o texto bíblico nasceu no cotidiano: nas festas e celebrações (como a da Páscoa), nas legislações, nos cultos e santuários, nas tradições populares, na sabedoria popular e profissional (como se vê no livro de Provérbios), nas casas, no caminho, no monte. Com o passar do tempo, o texto foi sendo distanciado do povo. Os princípios do Evangelho passaram a ser utilizados para normatizar questões de fé ou introduzir dogmas na vida das pessoas. É preciso levar de volta a Bíblia ao povo, estimulando a leitura nas comunidades, afirmou a professora. E exemplificou com um fato ocorrido com o teólogo José Comblin. Numa visita ao Equador, ele entrou em um ônibus e sentou-se ao lado de um homem que lia a Bíblia muito atentamente. Perguntou ao homem: “você vai ler esse livro todo?”. E este respondeu: “Já o li seis vezes e cada vez aprendo uma coisa nova”.

TERÇA-FEIRA, 26/10:

O segundo dia da Semana de Estudos Teológicos começou com palestra do biblista Milton Schwantes, que falou sobre Bíblia e Culto. Para o biblista, o culto precisa ter a dimensão comunitária do serviço: “Culto não diaconal leva à idolatria”. O professor Schwantes fez uma breve análise do livro de Salmos. Disse que, ao contrário do que muita gente pensa, os Salmos não eram hinos líricos para serem cantados no templo, mas orações no leito de dor e de morte. Eram o alento do enfermo que, por ser considerado impuro, jamais poderia entrar no templo. “Salmos são a nossa força para o mundo cotidiano das pessoas. É para quem não agüenta mais a vida”. Nos tempos bíblicos, a doença não entra nas igrejas, é parte das ruas. Mas Jesus vai ao encontro do doente e do sujo para oferecer perdão e cura, destacou o biblista. O modelo de Jesus, portanto, aponta para o culto como espaço de comunhão e cura. O professor Luiz Carlos Ramos traçou um panorama histórico sobre o culto desde os primeiros cristãos. Ele destacou que os primeiros cristãos freqüentavam a sinagoga, mas distinguiam-se por duas práticas: o batismo e a refeição comunal. Citando o teólogo Helmut Koester, o professor afirmou que “a Eucaristia constitui o vínculo mais importante com o Jesus Histórico”. Após as duas exposições, houve um momento para interação com o público. Um dos alunos questionou se os preletores não estariam dando demasiada ênfase à Eucaristia quando, desde Lutero, a marca protestante seria dar à Palavra o lugar central no culto. Para Schwantes, “o protestantismo tem esquecido a eucaristia, mas Lutero celebrava a eucaristia todos os domingos”. “Nosso problema é outro”, disse o biblista. “A eucaristia era a oportunidade de alimentar os famintos”. Ele lembrou que a mesa era dos cristãos e, também, daqueles que estavam chegando ao movimento e, muitas vezes, não tinham um comportamento adequado, segundo Paulo escreve nas cartas aos Coríntios. “Era uma refeição comunitária para quem está passando fome no Império Romano”. Segundo Schwantes, Constantino inviabilizou a eucaristia e criou uma liturgia que não tem nada a ver com Jesus. Hoje, diz o professor, falta o elemento concreto que é a partilha com o outro. “Queria dizer com toda ênfase: Constantino estragou a fé, substituiu a cruz pela espada. Temos que nos tornar igreja cidadã”. Para Luiz Carlos Ramos, existe atualmente um grande descaso com os sacramentos. Ele destacou que, no livro de Lucas, a passagem do caminho de Emaús (no capítulo 24), mostra Jesus explicando toda a Palavra aos discípulos, começando por Moisés e por todos os profetas. Os discípulos, ao ouvir a palavra, ficaram com o coração aquecido, mas foi somente na partilha do pão que reconheceram ao seu Senhor. “A Palavra aponta para a partilha e a partilha aponta para a concretização da Palavra”, disse o professor.  

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