Composição

Composição

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:48

Outro dia estava retornando de um agradabilíssimo fim de semana em São Paulo, curtindo a viagem de volta pela Rodovia Presidente Dutra e degustando uma emissora de rádio do Vale do Paraíba que costuma contar com muitos Standards internacionais, aquelas músicas de sucesso nas décadas de 70 a 90, em sua programação e também uma seletiva lista de hits de MPB com maior destaque para o período da bossa nova, entre uma e outra canção e num divertido papo com minha esposa, ouvi a canção “Carta ao Tom” interpretada pelo genial e excêntrico João Gilberto. Essa canção relata momentos do cotidiano daquela turma que vivia intensamente o nascer da bossa nova, sem dúvida, o mais genuíno movimento cultural e musical de exportação do Brasil até os dias de hoje.

Como já havia um bom tempo em que não ouvia essa canção, aumentei o som e comecei a observar os detalhes daquela obra. O que mais me impressionou, além é claro da brilhante interpretação e os arranjos, foi a riqueza da letra em suas nuances e na capacidade de descrever uma série de pessoas, locais e momentos. Em dado momento da canção ouvimos “na Rua Nascimento Silva, 107 ...” que era um dos tradicionais locais onde os bossanovistas se encontravam para animados saraus e catarses criativas.

Aquela expressão, “Nascimento Silva 107” me fez pensar imediatamente no tema de um post para nosso blog lido avidamente pelos 20 leitores, sim! Registramos a adesão de mais 2 leitores devidamente registrados e catalogados e posteriormente indicados para uma junta de análise psicológica. O tema que gostaria de discorrer nessas próximas linhas tem a ver com a criatividade (ou a falta dela) das letras do cancioneiro evangélico brazuca.

Lá nos primórdios do que hoje chamamos de música evangélica, pelos idos dos anos 80 nos deparamos com canções lindíssimas e letras extremamente diferenciadas de gente do calibre de Janires, João Alexandre, Jorge Redher, Josué Rodrigues, Asaph Borba, Milad, Vencedores por Cristo, Grupo Logus, só para citar alguns. Essa turma teve tanta qualidade que até hoje suas músicas são cantadas e reverberadas pelos quatro cantos de nosso país. Para quem não conheceu a discografia dessa seleta gama de artistas sugiro que se faça uma pesquisa para constatar a riqueza destes repertórios e a diversidade de ritmos e temas. Mas antes de prosseguir nesse post , quero deixar bem claro que não sou um destes saudosistas invetererados onde o passado é sempre superior ao presente, não nada disso! Apenas quero reconhecer o valor desses nomes que hoje muita gente ainda desconhece.

Seguindo com nosso texto, o que quero comentar é que observando a qualidade das composições da música evangélica dos últimos anos, percebo um claro empobrecimento da performance criativa nas composições. Parece que de uns anos para cá, algo em torno de uma década ou mais, a música evangélica que hoje é mais comumente chamada de música gospel, perdeu seu vigor e entrou numa fase de produção em série como numa fábrica de auto-peças! Sei que posso estar sendo muito duro, mas a intenção é exatamente esta, ou seja, incentivar os compositores a ousarem sobre assuntos e temas que hoje não estão na moda em meio a tantos ‘milagres’, águas’, ‘chuvas’, ‘conquistas’ e outros mantras que vêm sendo repetidos à exaustão em nossas músicas.

A própria indústria tem uma enorme parcela de culpa nesta história, pois costuma seguir essas tendências como se fosse um perfeito manual de sucesso e lucratividade. Algo como ‘se não tem uma música que fale de milagre e conquista o povo não vai cantar’, o que é uma tremenda miopia, pois o mercado, principalmente aquele ligado às manifestações culturais está em plena movimentação permanente. As modas vêm e vão numa velocidade impressionante e hoje com o advento da web e das tecnologias, os hábitos e costumes da enorme massa são mudados ainda mais rapidamente. Cabe, aí sim, aos profissionais da indústria estar em campo, ao vivo ou on line, observando atentamente aos movimentos culturais. Infelizmente e, isso posso comentar com muita segurança, grande parte dos profissionais envolvidos na indústria de música gospel no país atualmente são perfeitos ‘executivos de ar condicionado’, ou seja, profissionais sem um contato mais próximo com o público consumidor, com os movimentos culturais e artísticos ou mesmo o mercado distribuidor.

Mas voltando ao tema principal, hoje nos deparamos com verdadeiros profissionais-compositores no pior sentido da expressão, ou seja, pessoas com capacidade de manter uma produção em série de canções marcando presença em grande parte dos repertórios dos artistas do primeiro escalão da visibilidade. E aí, como estamos lidando com arte e com a capacidade criativa, é humanamente impossível que uma mesma pessoa mantenha um nível elevado de qualidade numa produção de dezenas de canções num ínfimo espaço de tempo. Depois que o compositor emplaca uma canção de sucesso no disco de um pop star gospel, a enxurrada de solicitações de produtores e cantores ao compositor se torna tão intensa que o letrista acaba se tornando refém da necessidade de compor hits.

O que percebemos é que o compositor acaba criando uma marca, um nome de qualidade, torna-se um autêntico ‘fazedor de hits’, aquele que ‘acertou na veia’, uma perfeita tradução do criador-criatura-refém-de-si-mesmo e suas canções são solicitadas por todo o Jet set gospel. E também, tornando-se verdadeira obsessão dos artistas independentes que buscam através de suas músicas uma espécie de selo de autenticação no melhor estilo ISO 9000. E mais uma vez quero ressaltar, o compositor neste ritmo frenético acaba se exaurindo criativamente e começa a auto plagiar-se, transformando-se repetitivo nos temas, jargões, expressões e letras.

Pano rápido ...

Anos atrás comecei a fazer revisões nos encartes dos CDs em uma gravadora onde trabalhei como uma forma de ter maior conhecimento dos produtos. Como gosto da língua pátria e tenho um particular olho clínico para revisões inclui mais esta atividade no rol de minhas atribuições àquela época. Recordo-me que aquela gravadora tinha um acordo tácito de utilizar músicas de um determinado compositor, quase determinando uma espécie de obrigação aos artistas na montagem de seus respectivos repertórios como se não houvesse outra vida inteligente na Terra, o que poderíamos denominar como reserva de mercado. Efetivamente aquele profissional tinha seu talento. Em sua história de composições havia conseguido algumas canções que se tornaram verdadeiros hits no mercado, mas efetivamente sua capacidade de produção limitava-se como a qualquer ser humano.

Lendo vários encartes comecei a me deparar com a repetição de frases e expressões em diferentes canções de diferentes artistas, mas sempre do mesmo compositor. Em rápidas palavras, conscientemente ou não, aquele compositor fazia uma distribuição das frases que mais o agradava em diferentes construções. Era mais ou menos assim ... “no secreto do quarto eu te louvo” e numa canção seguinte essa expressão surgia mais ou menos assim “eu te louvo em secreto no meu quarto”, captou a mensagem? O compositor usava as palavras formando um mosaico sempre com as mesmas peças. Essa foi uma das minhas batalhas mais sangrentas de minha história, que foi justamente quebrar um monopólio do samba de um compositor só! Ao fim, as portas do reino de Mao Tsé Tung da música gospel acabaram se abrindo e outros compositores puderam ser utilizados pelos camaradas artistas, mas isso é outra história!

Fecha a cortina e voltamos ao texto ...

Costumo ouvir com bastante freqüência a expressão “o fulano está na fase boa! O momento dele está excelente temos que aproveitar ao máximo!” – como se o compositor fosse um verdadeiro latifúndio produtivo onde a colheita pudesse ser retirada indefinidamente! Sabemos que na agricultura não é assim que funciona. A safra tem seu período determinado de abastecimento. Depois de colhida, novamente a terra precisa ser arada, adubada, trabalhada, semeada e no futuro voltar a gerar novos frutos. Com o compositor não é diferente! Depois de um período de produção e inspiração, ele deve ter seu momento de descanso, de recolhimento, de contemplação, de respiração! Não dá para ligar o botão e sair despejando músicas como numa esteira rolante de fábrica! Essa atitude acaba por determinar sérios prejuízos para a qualidade do material a ser produzido.

Pano rápido again ...

Outro dia estava conversando com um cantor durante uma audição do que viria a ser seu próximo repertório. Para mim, este artista é um dos mais talentosos e profissionais músicos da nova geração da música gospel, alguém com uma bagagem cultural que realmente me dá muito prazer tirar horas e horas de papo pela simples oportunidade de aprender e discutir sobre assuntos dos mais diversos. Em uma de suas canções, ele me disse que queria seguir num determinado caminho melódico e com um acompanhamento bem rudimentar ficou ali cantarolando as notas sem uma letra definida. De uma forma bem direta e incisiva sugeri a ele que tentasse escrever uma canção sobre a Ceia do Senhor, afinal este é um momento cotidiano presente em todas as igrejas cristãs.

Você, leitor do Observatório Cristão pode listar de ‘primeira’ as canções do cancioneiro evangélico que falam especificamente do momento da Ceia? Na minha igreja, por exemplo, costumamos nas celebrações da Ceia repetir uma música do Kleber Lucas –perdão, perdão quero te pedir perdão ... antes do partir do pão – e outra canção do Cláudio Claro – Ele levou sobre si as nossas dores ... – isso sem dúvida é muito pouco!

Voltando ao post ...

Como já estou prestes a aterrissar em mais um dos meus périplos pelo país, vou encerrando esse texto compelindo aos compositores que busquem novos temas para suas canções. Precisamos de mais músicas que abordem questões tão importantes como adoção de crianças, respeito, amizade, cidadania, ética, ecologia, a beleza do outro, frutos do Espírito, o amor verdadeiro e cristão entre um homem e uma mulher, sabedoria … até mesmo a questão do evangelismo nas letras de música gospel parece que ficou num segundo plano, pois hoje nos deparamos muito mais com adoração vertical, individualista do que a necessidade das pessoas conhecerem o verdadeiro Deus em um encontro pessoal.

E aí segue uma dica que julgo fundamental! Se você é um compositor ou pretende ser um dia, é importante que a leitura seja um hábito cotidiano. Não dá para você escrever bem, sem que tenha em seu dia-a-dia o hábito de ler livros. Eu estou falando em ler livros e não em ler textos noticiosos de internet ou pensamentos da tuitolândia! Quantos livros, independente de qual assunto, você costuma ler por ano? Se você parou para pensar nessa resposta e demorou mais do que 5 segundos para mentalizar ... efetivamente a coisa está muito feia!

E não vou poder me alongar, mas também não posso deixar de comentar. Só para que vocês tenham um relato de alguém que recebe composições praticamente todos os dias, me impressiona (e assusta! )a qualidade da escrita de alguns dos compositores do Panteão dos Tops da Música Gospel, gente que consegue emplacar 6, 8 músicas num repertório dos principais artistas do universo tupiniquim. A qualidade do português apresentado é digna de um dialeto tamanha a quantidade de erros gramaticais! Isso é uma prova inconteste da ausência do hábito de leitura, sem dúvida!

O piloto já avisou que estamos em procedimento de descida e aqui vou me despedindo!

Por Mauricio Soares - jornalista, publicitário, consultor de marketing e diretor executivo da Sony Music

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