Aos 70 anos, Muhammad Ali segue como um mito intocável até no MMA

Aos 70 anos, Muhammad Ali segue como um mito intocável

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:17

No primeiro round das lembranças, o tempo volta para 1974. No dia 30 de outubro, o Zaire estava em turbulência, no bom sentido. Aos 32 anos, o maior pugilista de todos os tempos, Muhammad Ali, que nesta terça-feira completa 70, entrava no ringue de Kinshasa para enfrentar o então campeão George Foreman aos gritos de "Ali, bu maye!". A frase, que pediu aos africanos para cantar, queria dizer "Ali, mate-o!". Era parte do plano para tentar recuperar o cinturão dos pesos-pesados perdido desde que se recusou a lutar no Vietnã. Há anos já convertido ao islamismo - abriu mão do nome de batismo, Cassius Marcellus Clay Jr. - e ativo na luta pelos direitos civis dos negros - chegou a se aliar ao líder Malcolm-X -, Ali, apesar do apoio da população, era dominado pelo adversário. Mais jovem e mais brutal, o rival batia com a mesma força com que deixava buracos nos sacos de areia que usava para treino.


Mas Ali aguentou firme. A cada soco que levava, encurralado nas cordas, provocava o rival. E Foreman cansou. A tática deu certo. No oitavo assalto, o anti-herói americano aumentou a aura.de mito que já carregava. Desferiu o golpe final com a maestria dos grandes. "Quando éramos reis" documentário lançado em 1996 sobre a luta, mostra uma cena clássica: a imagem dos jornalistas americanos Norman Mailer e George Plimpton de boca aberta com o feito do dono da coroa de seu tempo.Também no Zaire, o único repórter brasileiro presente à luta vivia o seu momento de glória. Newton Campos, 86 anos, não consegue esquecer a cobertura mais marcante de sua carreira. No Brasil, outro jornalista, que já tinha entrevistado o pugilista em 1970, em Nova York, se emocionava com a façanha. O experiente Sérgio Leitão, hoje com 65 anos, é tão fã do lutador que batizou de Cassius um de seus filhos.

Muhammad Ali parou, mas ficou o mito. Dominado pelo Mal de Parkinson, trava luta até hoje para dar-lhe o nocaute - a doença não tem cura, mas Ali investe alto em tratamento com células-tronco, que ainda não deram resultado. Mesmo assim, vem pelos anos deixando fãs e até ídolos de boca aberta. Como no segundo round das lembranças, que vai para 1996. Olimpíada de Atlanta. Na quadra, o Dream Team 2 americano de basquete, que já não tinha mais Michael Jordan e Magic Johnson, contava ainda com metade daquela equipe notável dos Jogos de Barcelona. Astros como Charles Barkley, como exemplo, conhecidos pela soberba, simplesmente ficaram estáticos, de boca aberta, tímidos, quando Ali, já com a doença, entrou na quadra para receber de volta a medalha de ouro olímpica conquistada em 1960, em Roma, que lhe fora também tirada por questões políticas.

Os ídolos americanos batem palmas para Ali. Os brasileiros também. O pugilista Éder Jofre, bicampeão mundial no peso-galo e no peso-pena, glória nacional, de quem Ali foi admirador, e o lutador supercampeão Anderson Silva, do MMA, febre do momento que ocupa um espaço já do boxe tempos atrás, se rendem também à técnica e à liderança do maior de todos os tempos.
- Acho que o Ali é o rei do boxe e a referência pública negra no esporte. Depois dele vieram Michael Jordan, Magic Johnson e tantos outros. Ele abriu as portas para todos nós. E tinha uma garra e um estilo inconfundíveis, que me inspiram. A luta do século, contra Foreman, é uma aula de superação. Além disso, era ambicioso e um visionário - afirmou por email Anderson Silva, dono do cinturão do pesos-médios e considerado hoje o maior lutador do MMA.

Spider, como também é conhecido, gosta tanto de Muhammad Ali que confessa tê-lo homenageado em algumas lutas com a dancinha que o americano fazia para se esquivar dos seus adversários e cansá-los.
- Já fiz isso várias vezes. É só ver minha luta com Forest Griffin no UFC - afirmou Spider, sobre o duelo do UFC 101, em 8 de agosto de 2009.
O campeão mundial do MMA não acredita que, se fosse jovem hoje, Ali lutaria MMA.
- Acho que não. Ele é o rei do boxe - disse Spider, que perguntado sobre a homenagem faria ao lutador no dia do seu aniversário, deu um direto. - Um cinturão do MMA.

De cinturão, Éder Jofre também entende. Campeão do peso-galo em 1960 e do peso-pena em 1973, é fã confesso de Muhammad Ali.
- Embora fôssemos de categorias muito diferentes, o admirava muito. Foi um grande campeão. Talvez o melhor de todos. Acho que o único que pode ser comparado a ele é o Joe Louis. Boxeava bem, era técnico e pegava forte como um cavalo. Com a técnica que tinha, derrubava muita gente. Acho que derrubou todo mundo. Alguns até levantaram e conseguiram ir até o fim, mas foram poucos.
Contemporâneo de Muhammad Ali, Éder Jofre guarda com carinho um elogio e tanto do americano que se intitulava lutador da África.

- Tem uma coisa que me caiu muito bem. Soube, vendo uma entrevista dele, que era meu fã. Fiquei muito feliz, muito alegre, porque aqui no Brasil o boxe não é tão divulgado como nos Estados Unidos, na Europa, no Japão. Aqui, é meio paradão, infelizmente. Não tem apoio de ninguém.

Com ou sem apoio, o boxe teve sua força no Brasil, principalmente nos anos 1960 e 1970. A ponto de o repórter Newton Campos ter sido testemunha ocular da história da "Luta do Século" entre Muhammad Ali e George Foreman. Hoje presidente da Federação Paulista e membro do Conselho Mundial de Boxe, o jornalista contou a maratona a que foi submetido para chegar ao Zaire a tempo de cobrir o duelo pela "Gazeta Esportiva".
- Fui primeiro a Joanesburgo, na África do Sul. Depois peguei outro voo, para a África do Norte, e desembarquei no Zaire em cima da hora. Cheguei lá morto, eram três da madrugada. Ainda fui para o hotel e consegui um fotógrafo. Partimos correndo para o local da luta, que começava às quatro. Foi impressionante. O Ali acabou com a luta no oitavo assalto, e logo subi no ringue com o fotógrafo, que estourou o flash nele. Fui no Foreman. Queria ver a sua expressão de derrota. Nessas horas eles não dizem nada.
Logo depois, Newton Campos arrumou carona com um casal para o aeroporto. O voo de volta para Joanesburgo era às 5h30m. No retorno para São Paulo, terminou toda a matéria na máquina de escrever dentro do avião. Foram setecentas linhas, divididas em trinta e cinco laudas, o que dá quatro páginas do jornal.

- Quando cheguei, às sete da noite, liguei logo para a redação e parei o jornal. Cheguei lá com a matéria e os dois filmes. Mudaram a edição do dia. A matéria foi para as bancas sem revisão. Quando cheguei em casa, estava morto, mas feliz. Acabei ganhando um aumento logo depois por conta disso. Foi um momento especial na minha vida.

Sobre Muhammad Ali, Newton lembra que acompanhou a carreira do pugilista desde os 18 anos, quando surgiu para o mundo ao conquistar medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960. Acha que o único a se aproximar do nível do lutador foi Joe Louis, que manteve o cinturão dos pesos-pesados por 12 anos, de 1938 a 1948.
- O Joe Louis era mais fantástico,  mas o Ali era mais técnico. Ele fazia muito bem a mecânica do jab de esquerda. Fora a movimentação que tinha, como uma dancinha. Enlouquecia os adversários. Além disso, sabia como promover as lutas, mexia com as massas. E olha que não estudou muito. Mas lia...

A personalidade de Muhammad Ali encantava também o renomado jornalista Sérgio Leitão. O primeiro contato com o pugilista ocorreu em 1970. Leitão acabara de cobrir pela agência AP o tricampeonato mundial de futebol em 1970 e foi passar férias em Nova York. Ao visitar a redação, soube que o editor estava aflito: precisava de matéria com o pugilista, e o único repórter para quem Ali dava entrevista, um negro, estava também de férias. Leitão não teve dúvidas em se oferecer.
- Disse logo que iria lá. Ficaram na dúvida se eu conseguiria. Garanti sair com a matéria. Ao chegar no local, me apresentei como repórter brasileiro. Falei alto. Ele estava no fundo e ouviu: "Brasil? Samba? Come in..." Eu tremia mais que vara curta. Mas ele foi muito simpático. Era um cara que você, chegando nele com jeito, te tratava muito bem. A bandeira que hasteou foi seguida por muita gente também das artes, como Sidney Poitier, Harry Belafonte...No esporte, abriu portas.
Depois do primeiro contato, Sérgio Leitão reencontrou Muhammad Ali mais duas vezes. Na segunda, levou a "homenagem" que fez: o filho de nome Cassius, com quatro anos, batizado com o nome original do pugilista.
- Ele ficou muito contente e passou um bom tempo com o meu filho no colo. Quando os repórteres vinham entrevistá-lo, punha o Cassius no chão. Depois, pegava-o de novo e o botava no colo. Foi muito carinhoso.

Cassius Leitão, também jornalista - trabalha na redação do GLOBOESPORTE.COM -, nem é fã de boxe ou qualquer outro esporte de luta. Mas admira a carreira de Muhammad Ali e, principalmente, a briga que o lutador travou pelos direitos dos negros. Quanto à técnica de Muhammad Ali, o pai, Sérgio Leitão, é que fala de cadeira.
- O Mike Tyson e o George Foreman tinham socos mais fortes, mas Ali era mais técnico e estrategista. Na "Luta do Século", ganhou com inteligência. Quando foi lutar com o Foreman, já tinha derrubado o Joe Frazier. Baixou o peso de 102 para 96 quilos e afrouxou as cordas. Deitou nelas e deixou o Foreman bater nele até cansar. Aí, o derrubou no oitavo round. Além de tudo, dominou a plateia. Ele foi o cara que mudou o boxe. Fez virar obra de arte. Quase analfabeto, era autodidata. O inglês dele era cheio de erros e gírias, mas todos o entendiam. O ídolo dele era o Sam Cooke, excelente cantor. Treinava ao som dele... E era muito fanfarrão, sempre gostei disso.

Atualmente, por conta da doença, Muhammad Ali aparece menos. Mas continua com sua bandeira. No último sábado, comemorou antecipadamente os 70 anos com um jantar no Muhammad Ali Center, em Louisville, sua cidade natal, no estado de Kentucky. O evento serviu também para arrecadar fundos, já que cada um dos cerca de 300 convidados pagou US$ 1.000 por convite. Criado há seis anos, o Ali Center promove ações educacionais, incentiva o ativismo social e reúne informações sobre sua carreira. Além de Ali e seus familiares, estiveram no jantar o técnico Angelo Dundee e o ex-campeão Lennox Lewis. Mesmo que apareça menos, o tricampeão mundial (1964-74-78)  será, certamente, lembrado. O mito ainda vive.

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