"Cisne Negro" cria terror a partir da dança

"Cisne Negro" cria terror a partir da dança

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:57

Na maioria das vezes, o cinema hollywoodiano reserva um olhar fantasioso para o mundo da dança. A graça e elegância dos movimentos aparecem em primeiro plano, os bailarinos deslizam pelo palco e desafiam a gravidade como se estivessem atravessando a rua. "Cisne Negro", concorrente de peso do Oscar 2011 que estreia nesta sexta-feira (4), tem o mérito de lançar luz sobre os bastidores dessa arte, mas surpreende muito mais. O filme de Darren Aronofsky transforma a beleza numa história de horror psicológico não menos do que espetacular.

Natalie Portman (conheça a carreira da atriz) interpreta Nina, dedicada integrante de uma grande companhia de balé de Nova York, que vê numa nova adaptação do espetáculo "O Lago dos Cisnes" a chance de brilhar. O diretor artístico Thomas (Vincent Cassel) aposenta a então estrela do grupo, Beth (Winona Ryder), e escolhe, um pouco desconfiado, Nina protagonista. Ele considera a bailarina perfeita para o papel do Cisne Branco, delicado e virginal, mas ainda duvida que ela consiga encarnar o Cisne Negro, sua gêmea sensual e traiçoeira.

Perturbada pela pressão e assédio de Thomas, Nina ainda é sufocada pela mãe (Barbara Hershey), ex-bailarina que mantém a filha num ambiente infantil e opressor, e pela chegada de uma novata, Lily (Mila Kunis), uma ameaça para seu papel. Nina é técnica e frígida, enquanto Lily, da ensolarada Califórnia, exala paixão, sexo e liberdade. Nina luta para soltar suas amarras, mas as tentativas desmoronam: começa a ter visões, a ouvir sons estranhos, tem a sensação de que está sendo seguida e percebe transformações no corpo. Ela perde o pé na realidade e o suspense latente se instala de vez.

Se Aronofsky já cometeu exageros visuais em trabalhos anteriores ("Réquiem por um Sonho", "A Fonte da Vida"), a partir de "O Lutador" (2008), com Mickey Rourke, adotou uma abordagem mais realista, de câmera na mão, repetida aqui. Toda artificialidade sai pela janela e fica a sensação não só de verdade, mas de voyeurismo. O tom documental das entranhas de uma companhia de dança aos poucos dá lugar ao famoso estilo do diretor, que se manifesta nos delírios da protagonista e nos cenários suntuosos do balé, sem, no entanto, sair do prumo ou soar artificial. Aronofsky nunca filmou tão bem.

"Cisne Negro" é acima de tudo climático, e de forma exemplar. A narrativa instala o medo e a confusão mental de suspenses como "Repulsa ao Sexo" (1965), de Roman Polanski, e "A Hora do Lobo" (1968), de Ingmar Bergman, na medida em que não se sabe mais o que é real e fantasia – espelhos têm um papel importante. O clássico "Sapatinhos Vermelhos" (1948), da visionária dupla The Archers, serve como referência de dança e deslumbramento. Além da fotografia lúgubre de Matthew Libatique, a trilha sonora de Clint Mansell, parceiro longevo de Aronofsky, e o desenho de som certeiro dão o toque final: ouvem-se todas as nuances, do rangido das sapatilhas no palco a sussurros saindo por trás das paredes.

Aliado à busca insana por perfeição e à competividade na dança, o trunfo do roteiro foi internalizar a trama de "O Lago dos Cisnes". A tragicidade do conto de fadas é explorada ao máximo, característica que, apesar de evidente no balé, sempre foi atenuada. O contraponto com a disputa entre Nina e Lily – anteriormente o âmago da história, que se passava na Broadway –, ecoando as tramoias de "A Malvada" (1950), potencializa a tensão e torna "Cisne Negro" ímpar.

O sucesso, porém, não seria completo sem um elenco muito acima da média. Vincent Cassel e Barbara Hershey mostram a excelência de sempre – é um prazer vê-los em ação. Amarga, Winona Ryder convence em uma participação pequena e ironicamente adequada. Mila Kunis, surpreendente, tem presença magnética na tela, no melhor papel de sua vida. Já Natalie Portman é ainda melhor e sua dedicação para as filmagens, assustadora.

Bailarina dos quatro aos 12 anos, a atriz conseguiu entrar em forma graças a uma rotina de treinamento agressiva – primeiro cinco, depois dez horas diárias ao longo de quase um ano. "Sapatilhas com ponteira são aparelhos de tortura", chegou a dizer. Portman não só se transforma em uma dançarina profissional na frente das câmeras, como também assimila com esplendor a metamorfose psicológica para o Cisne Negro, da inocência para a voluptuosidade, passando pelo completo desespero. Trabalho em duas frontes, dificílimo, e que deve ser premiado pela Academia.

Ao som de Tchaikovsky, o desfecho é o mais próximo de uma apoteose que o cinema norte-americano vê em muito tempo. Não que isso deva ser reconhecido no Oscar, no qual concorre como melhor filme, direção, atriz, montagem e fotografia. Além de sinistro, "Cisne Negro" mostra violência, lesbianismo e sexo, longe da edificação do favorito "O Discurso do Rei", por exemplo. Pena, já que é, ao lado de "A Rede Social", o melhor filme da temporada.

Por: Marco Tomazzoni

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