Dependentes de crack de classe média: roupa de grife na clínica de reabilitação

Dependentes de crack de classe média: roupa de grife na clínica de reabilitação

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:11

Valmir Moratelli

Arquiteto, 31 anos, morador da Barra da Tijuca, internado há dois meses. Tem duas passagens pela polícia. Responde por porte de drogas, tentativa de homicídio e formação de quadrilha. Viciado em crack. Professor de jiu-jitsu em academias da zona sul do Rio, 29 anos. Começou com maconha, depois cocaína e, há 45 dias, tenta largar o crack.

Assim como estes dois (todos os nomes de pacientes nesta reportagem não são mencionados para preservar suas identidades), outras 63 pessoas estão internadas na Clínica Jorge Jaber, em Vargem Pequena, zona oeste do Rio. A maioria é de classe média, visto que a mensalidade não sai por menos de R$ 7 mil, sem incluir boa parte da medicação necessária. Chama a atenção dos médicos a procura cada vez maior de tratamento de crack, uma droga que até pouco tempo era oriunda das classes menos favorecidas.

“O viciado em crack teve sua capacidade cognitiva e social deteriorada, está propenso à irritação extrema, tem comprometimento físico e sem laços familiares. É um ser humano à beira da destruição, um fracassado total, insano. No primeiro diálogo, ele vai te falar que nunca mais vai se viciar, que não quer mais usar drogas. Mas está escondendo a vontade louca de voltar a se drogar”, define o psiquiatra Jorge Jaber, dono do local. Segundo ele, do ponto de vista físico, a lesão provocada pela dependência é apagada em meses. Mas do ponto de vista psicológico quem utiliza o crack seis ou no máximo oito vezes já se torna um dependente que precisa de auxílio médico constante. Alguns, para a vida toda.

Na clínica havia, no dia da visita da reportagem do iG, 65 pacientes. A capacidade é para atender 78. A maioria é de classe média. Alguns chegaram ali à força, por decisão judicial. “Quando o dependente não quer ser internado, a família tem que entrar com uma medida judicial para obrigar a internação. Como muitos são maiores de idade, nestes casos, a pessoa só pode ser obrigada se o juiz assim determinar”, conta Jaber.

Poder de persuasão

Na clínica, há também alguns pacientes de famílias pobres. “Eles estão aqui porque o Estado paga a internação obrigado pela Justiça. Isso ocorre quando não há outro tipo de tratamento médico semelhante na rede pública”, explica Jaber.

Um jovem de 17 anos, menos de 1,70m, é o primeiro a puxar papo com o repórter. Vem mostrar seu diário, escrito ao final de cada dia que passa internado. Todos os pacientes fazem um diário pessoal. Os médicos explicam que as melhorias no formato da letra são indícios de evolução da coordenação motora, abalada com o uso constante de entorpecentes. O paciente exibe a última página, recentemente escrita. A letra é redonda, impecavelmente legível. Da primeira página, repleta de garranchos incompreensíveis, à última, são mais de três meses de internação. Um dos médicos avisa em seguida, já a sós com a reportagem que o menor mente. É analfabeto. Ele pegou aquele diário de algum outro paciente.

O poder de persuasão surpreende. Os pacientes tentam, diversas vezes, passar uma imagem que não corresponde à realidade. Alguns se mostram felizes, recuperados, satisfeitos com o tratamento. Outros não. Vários choram, se mostram perdidos, fragilizados.

Este mesmo menor, por exemplo, foi protagonista de várias escapadas cinematográficas, nos seus pouco mais de cem dias de internação. Passou 14 meses trancado no Instituto Padre Severino (para menores infratores), por tráfico de drogas. Diz que já experimentou de tudo, menos ácido. Ao chegar na clínica Jorge Jaber, teve que passar pela “contenção”, como os médicos chamam o período em que alguns pacientes, no estágio de abstinência, são amarrados na cama, para evitar que fujam ou que agridam os demais. Ele instiga os enfermeiros. É o único que conseguia se desamarrar, tirar o miolo das fechaduras apenas com os dedos e burlar a segurança escapando de madrugada pelo telhado. Em uma das fugas, encontrou uma enfermeira no caminho. Não titubeou. Virou uma mesa contra ela e a enforcou. Até hoje ela está afastada do trabalho pelo INSS, se recuperando do trauma.

Por causa de sua astúcia em fugas, a clínica teve que rever todo o sistema de segurança. Agora as portas também têm grades, contam com cadeados e seguranças de porte físico avantajado.

Adrenalina na veia

Como regra interna, os internos só podem fazer uma ligação por semana, de dois a três minutos de duração. A maioria opta por ligar para a família. Eles mesmos monitoram o tempo de chamada dos companheiros, com auxílio de um cronômetro. Um jovem – 21 anos, morador da Barra da Tijuca – chora ao ouvir a voz do pai do outro lado da linha. Diz que está bem, que tem comido direito e que sente avanço no seu tratamento. Quer saber como anda a mãe e os dois irmãos. Ouve calado o que o pai lhe diz. Manda beijo para todos. Conta que uma equipe de reportagem está ao seu lado. Acaba seu tempo. É a vez de outro usar o telefone.

Na clínica Jorge Jaber, o ritmo de atividades é intenso. Acorda-se às 7h. O café da manhã é servido até às 8h. Depois, atividades esportivas, como futebol, ginástica, vôlei e hidroginástica. Almoço de 12h às 13h, no refeitório. A parte da tarde é destinada a diversas terapias ocupacionais – de conversas em grupo a jogos em duplas. Há intervalos para consultas médicas, seja de clínico geral ou de psicólogo. Lanche é servido das 16h30 às 17h. O jantar é às 20h. No máximo até 22h todos já estão em suas camas. Os horários são seguidos à risca, com pontualidade. Para quem, antes, vivia sem regras e limites fora daqueles muros, este é um grande avanço no tratamento. Até para fumar cigarros há horários. Às 9h, 13h, 16h e 19h. O interno pode escolher a marca – a opção já é feita no momento da internação –, mas deve optar por um destes horários e fumar apenas um cigarro por dia.

Há quatro casas na clínica, que se assemelha a um sítio – toda arborizada, de aspecto bucólico. A “casa 3”, mais afastada, é a temida por quem passa por ali. É o local de segurança máxima, sem janelas. Só há camas de ferro reforçado. Um enfermeiro cuida da porta, com as chaves no bolso. Geralmente ficam na casa 3 os que sofrem de abstinência. “Não é bom você ficar muito tempo aqui dentro. Nunca se sabe como eles podem reagir”, sugere o enfermeiro ao repórter. Um interno está sentado na beira da cama de um dos cinco quartos do local. Está chorando. “Por favor, me ajuda. Não aguento mais ficar aqui. Não quero ficar trancado. Fala com o médico, por favor”, implora o jovem que aparenta não mais do que 20 anos. É mais um que, com a roupa de grife que veste, entrega que vem da classe média.

José Veríssimo, clínico geral, conta que o paciente dependente em crack tem muito mais problemas de saúde do que outros tipos de dependente. “A maior parte não se cuida em relações sexuais. A incidência de DSTs é imensa. Estamos passando por uma epidemia de saúde pública com relação às drogas”, relata o médico, que faz uma análise comparativa. “Por que é baixíssimo o número de usuários de drogas entre atletas? Porque o corpo produz adrenalina o tempo todo, ele está sempre em atividade”, diz.

Nos jogos que os pacientes praticam entre si, como damas e dominó, psicólogos verificam a existência de instabilidade emocional, arrogância, projeção e negação de capacidades dos dependentes. Em casos de irritabilidade, o médico nunca entra em choque com o paciente. “Nós os ouvimos. Não dizemos logo de cara que ele está errado. Ele tem que se sentir cuidado”, diz Jaber.

Há três estágios de tratamento. O primeiro, mais doloroso, é o da abstinência. Seguido da mudança de estilo de vida, quando o paciente passa a cumprir horários, regras e metas impostas pelas atividades internas. O terceiro estágio é o da agregação, quando ele se sente parte de um grupo que enfrenta problemas semelhantes e tem noção de que precisa de ajuda mútua. Jorge Jaber explica que a média de 60 dias de tratamento, tempo médio de internação, nem sempre é suficiente para curar um dependente químico. “Muitos acabam voltando. Tem paciente que está em sua 14ª internação. Isso porque, ao regressar ao convívio externo, cai na tentação, volta a não ter regras para cumprir, tem os antigos amigos com outros hábitos... Tudo isso faz com que ele recorra novamente a drogas”, diz o médico.

“Só por hoje”

Nas reuniões com os psicólogos (leia depoimentos dos pacientes), grupos de 14 pessoas sentadas em cadeiras, em círculo, falam de sua rotina com o tratamento. Todos ouvem compenetrados, em silêncio. “Meu nome é..., mais um dia em recuperação”, é assim que todos se apresentam. “Não sei quantas internações já tive, mas quero que esta seja a última. Honestidade é o que temos que ter com nós mesmos. Deus fez a parte dele, agora preciso fazer a minha”, continua ele. Depois do depoimento, a psicóloga pergunta se alguém quer comentar. “Não basta falar, tem que colocar em prática. Continue no seu caminho”, sugere uma mulher.

A psicóloga estimula os pacientes. “Qual é o primeiro passo para procurar ajuda?”. Um responde: “Percebi que as drogas me ‘dominou’”, diz. A profissional não aceita a resposta. “Quero algo de concreto. Por que você procurou ajuda? Como era sua vida?”. Ele demora a responder. “Não conseguia dormir sem fumar maconha, muita maconha. Não conseguia levantar da cama sem fumar mais maconha. Precisava ficar adormecido o dia todo. Sou um fraco perante as drogas”. A psicóloga se satisfaz em partes. “Você não é um fraco, você é impotente. Melhor dizer assim”.

Um outro se anima também a falar. “Me drogava sempre que o Flamengo perdia. Era uma angústia que eu não entendia da onde vinha”. Uma menina de não mais do que 25 anos também se apresenta e faz seu relato. “Não sei lidar com perdas. Entro em desespero achando que minha família vai morrer. Isso me deixa agitada demais”. Após cada relato, todos repetem sempre a mesma frase: “só por hoje”.


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