Leia entrevista com Mario Vargas Llosa, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura

Leia entrevista com Mario Vargas Llosa, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:11

FOLHA - "A Cidade e os Cachorros" (1963), seu primeiro romance, que é agora relançado, é baseado em sua experiência pessoal no colégio militar em que estudou, em Lima?

MARIO VARGAS LLOSA - Sim. Estudei lá nos anos de 1950 e 1951. Eu tinha vivido por dez anos na Bolívia, para onde minha mãe me levou depois de ter se separado do meu pai. Quando voltamos para o Peru, ele resolveu me colocar no colégio militar porque estava preocupado com minha vocação literária.

FOLHA - Por quê?

VARGAS LLOSA - Ele achava que isso era um passaporte para o fracasso e que virilidade e literatura não podiam andar juntas. Na visão dele, o colégio militar seria a cura para esse mal de que eu sofria. Mas o coitado não percebeu que, com isso, acabou me dando o tema para meu primeiro romance.

FOLHA - Você sempre se refere a seu pai de um modo muito duro. Em sua biografia, "El Pez en El Agua" (1993), isso está bastante presente.

VARGAS LLOSA - É verdade, a convivência com ele sempre foi muito difícil. Eu o conheci apenas quando fiz dez anos. Ele e minha mãe tinham se separado, e ninguém me disse nada sobre ele quando era criança.

Minha família era muito católica e conservadora. Por isso sentia vergonha do divórcio de minha mãe. Então não se falava desse assunto. Me fizeram acreditar que ele estava morto. Até que, um dia, aos dez anos, minha mãe me revelou que ele estava vivo, foi um susto.

Aí voltamos a Lima, onde o conheci pessoalmente. Minha vida mudou completamente. Porque com minha mãe, meus avós, eu havia sido um menino muito mimado. Com meu pai foi muito diferente, pois se tratava de uma pessoa muito autoritária. Além disso, era um desconhecido para mim, assim como eu era um desconhecido para ele. A nossa relação foi muito ruim desde o começo.

Minha experiência com meu pai e com o colégio militar são a matéria-prima de "A Cidade e os Cachorros" .

FOLHA - Mas este é um livro que também descreve de modo muito claro como era o Peru naquela época.

VARGAS LLOSA - Sim, no final das contas, apesar de ter sido uma experiência traumática, ela foi ótima. Eu era um menino de classe média, que vivia muito protegido. E, de repente, naquele ambiente, descobri o que era o meu país.

Havia meninos ali de diferentes setores da sociedade, de classe média, camponeses, pobres e ricos. Descobri o Peru. E descobri também que odiaria qualquer sistema autoritário a partir de então.

FOLHA - O livro teve problemas com a censura, pois você o escreveu na Espanha, durante o franquismo. Como conseguiu liberá-lo?

VARGAS LLOSA - Demorou um ano. Terminei de escrevê-lo em 1962, mas só o publicamos em 1963. A censura na Espanha, naquela época, era fortemente política e moral. Porém, no caso desse livro, o que incomodou mais os censores foram coisas menores, como palavrões e brincadeiras metafóricas. Tivemos de trocar oito palavras para que fosse impresso.

FOLHA - Você se lembra de quais eram?

VARGAS LLOSA - De algumas, sim. Havia uma passagem em que eu descrevia o coronel-chefe como tendo um "ventre de baleia". O censor me disse que eu só poderia fazer essa brincadeira com outro oficial, não com o coronel. Porque ridicularizá-lo era fazer piada com a instituição. Aí propus que mudássemos para "ventre de cetáceo". E não é que passou? Foi ridículo.

Depois havia a passagem sobre um padre que freqüentava uma região de bordéis. Então me disseram que como era o único padre da história, seria ruim que tivesse esse comportamento. Eu teria ou de colocar mais religiosos ou mudar o texto. Fiz uma tentativa, sugeri mudar bordéis para prostíbulos. E não é que aceitaram de novo? A censura era absurda, estúpida, como foi em todos os países. Mas o fato é que essas bobagens atrasaram a publicação do livro por um ano. Depois que acabou o regime, restabeleci a edição original.

FOLHA - O outro livro que está sendo relançado é "Pantaleão e as Visitadoras" (1973). Foi com ele que você ficou internacionalmente conhecido, não?

VARGAS LLOSA - Esse romance tem para mim um significado muito especial. Graças a essa história descobri que o humor era possível na literatura. Eu desconfiava muito de que um enredo cômico pudesse funcionar. Achava que era incompatível com a literatura séria. Uma literatura comprometida. Isso por causa da má influência de Sartre. Eu fui muito seguidor de Sartre quando era jovem, mas aos poucos fui me desiludindo.

FOLHA - Sobrou algo?

VARGAS LLOSA - Sim, ainda acredito numa literatura que tenha uma mensagem, que seja comprometida com valores que um escritor defenda. Mas de muitas outras maneiras o que Sartre e os existencialistas pensavam mostrou-se aos poucos defasado, sem utilidade pragmática para o mundo de nossos dias.

  FOLHA - Você tem acompanhado a política latino-americana? O que achou do fechamento da RCTV por parte do governo Hugo Chávez?

VARGAS LLOSA - Foi um episódio lamentável. Mas fiquei feliz de perceber uma reação contrária tão intensa não só na América Latina como na Europa, nos EUA. A preocupação com a democracia virou definitivamente algo universal, e isso tem de ser festejado.

FOLHA - Você tem acompanhado o novo momento da literatura peruana?

VARGAS LLOSA - Sim, acho que há autores talentosos aí. O que mais me impressiona é o fato de ver que as experiências recentes e traumáticas, violentas, pelas quais o país passou estão virando tão rapidamente matéria de literatura. Tanto Santiago Roncagliolo como Alonso Cueto são bons exemplos sobre como o Peru está refletindo sobre a década Fujimori, sobre o Sendero Luminoso e esse tempo difícil.     Postado por: Guilherme Pilão

FOLHA - "A Cidade e os Cachorros" (1963), seu primeiro romance, que é agora relançado, é baseado em sua experiência pessoal no colégio militar em que estudou, em Lima?

MARIO VARGAS LLOSA - Sim. Estudei lá nos anos de 1950 e 1951. Eu tinha vivido por dez anos na Bolívia, para onde minha mãe me levou depois de ter se separado do meu pai. Quando voltamos para o Peru, ele resolveu me colocar no colégio militar porque estava preocupado com minha vocação literária.

FOLHA - Por quê?

VARGAS LLOSA - Ele achava que isso era um passaporte para o fracasso e que virilidade e literatura não podiam andar juntas. Na visão dele, o colégio militar seria a cura para esse mal de que eu sofria. Mas o coitado não percebeu que, com isso, acabou me dando o tema para meu primeiro romance.

FOLHA - Você sempre se refere a seu pai de um modo muito duro. Em sua biografia, "El Pez en El Agua" (1993), isso está bastante presente.

VARGAS LLOSA - É verdade, a convivência com ele sempre foi muito difícil. Eu o conheci apenas quando fiz dez anos. Ele e minha mãe tinham se separado, e ninguém me disse nada sobre ele quando era criança.

Minha família era muito católica e conservadora. Por isso sentia vergonha do divórcio de minha mãe. Então não se falava desse assunto. Me fizeram acreditar que ele estava morto. Até que, um dia, aos dez anos, minha mãe me revelou que ele estava vivo, foi um susto.

Aí voltamos a Lima, onde o conheci pessoalmente. Minha vida mudou completamente. Porque com minha mãe, meus avós, eu havia sido um menino muito mimado. Com meu pai foi muito diferente, pois se tratava de uma pessoa muito autoritária. Além disso, era um desconhecido para mim, assim como eu era um desconhecido para ele. A nossa relação foi muito ruim desde o começo.

Minha experiência com meu pai e com o colégio militar são a matéria-prima de "A Cidade e os Cachorros" .

FOLHA - Mas este é um livro que também descreve de modo muito claro como era o Peru naquela época.

VARGAS LLOSA - Sim, no final das contas, apesar de ter sido uma experiência traumática, ela foi ótima. Eu era um menino de classe média, que vivia muito protegido. E, de repente, naquele ambiente, descobri o que era o meu país.

Havia meninos ali de diferentes setores da sociedade, de classe média, camponeses, pobres e ricos. Descobri o Peru. E descobri também que odiaria qualquer sistema autoritário a partir de então.

FOLHA - O livro teve problemas com a censura, pois você o escreveu na Espanha, durante o franquismo. Como conseguiu liberá-lo?

VARGAS LLOSA - Demorou um ano. Terminei de escrevê-lo em 1962, mas só o publicamos em 1963. A censura na Espanha, naquela época, era fortemente política e moral. Porém, no caso desse livro, o que incomodou mais os censores foram coisas menores, como palavrões e brincadeiras metafóricas. Tivemos de trocar oito palavras para que fosse impresso.

FOLHA - Você se lembra de quais eram?

VARGAS LLOSA - De algumas, sim. Havia uma passagem em que eu descrevia o coronel-chefe como tendo um "ventre de baleia". O censor me disse que eu só poderia fazer essa brincadeira com outro oficial, não com o coronel. Porque ridicularizá-lo era fazer piada com a instituição. Aí propus que mudássemos para "ventre de cetáceo". E não é que passou? Foi ridículo.

Depois havia a passagem sobre um padre que freqüentava uma região de bordéis. Então me disseram que como era o único padre da história, seria ruim que tivesse esse comportamento. Eu teria ou de colocar mais religiosos ou mudar o texto. Fiz uma tentativa, sugeri mudar bordéis para prostíbulos. E não é que aceitaram de novo? A censura era absurda, estúpida, como foi em todos os países. Mas o fato é que essas bobagens atrasaram a publicação do livro por um ano. Depois que acabou o regime, restabeleci a edição original.

FOLHA - O outro livro que está sendo relançado é "Pantaleão e as Visitadoras" (1973). Foi com ele que você ficou internacionalmente conhecido, não?

VARGAS LLOSA - Esse romance tem para mim um significado muito especial. Graças a essa história descobri que o humor era possível na literatura. Eu desconfiava muito de que um enredo cômico pudesse funcionar. Achava que era incompatível com a literatura séria. Uma literatura comprometida. Isso por causa da má influência de Sartre. Eu fui muito seguidor de Sartre quando era jovem, mas aos poucos fui me desiludindo.

FOLHA - Sobrou algo?

VARGAS LLOSA - Sim, ainda acredito numa literatura que tenha uma mensagem, que seja comprometida com valores que um escritor defenda. Mas de muitas outras maneiras o que Sartre e os existencialistas pensavam mostrou-se aos poucos defasado, sem utilidade pragmática para o mundo de nossos dias.

  FOLHA - Você tem acompanhado a política latino-americana? O que achou do fechamento da RCTV por parte do governo Hugo Chávez?

VARGAS LLOSA - Foi um episódio lamentável. Mas fiquei feliz de perceber uma reação contrária tão intensa não só na América Latina como na Europa, nos EUA. A preocupação com a democracia virou definitivamente algo universal, e isso tem de ser festejado.

FOLHA - Você tem acompanhado o novo momento da literatura peruana?

VARGAS LLOSA - Sim, acho que há autores talentosos aí. O que mais me impressiona é o fato de ver que as experiências recentes e traumáticas, violentas, pelas quais o país passou estão virando tão rapidamente matéria de literatura. Tanto Santiago Roncagliolo como Alonso Cueto são bons exemplos sobre como o Peru está refletindo sobre a década Fujimori, sobre o Sendero Luminoso e esse tempo difícil.     Postado por: Guilherme Pilão

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