Livro de Ingrid Betancourt narra anos de inferno em cativeiro na selva amazônica

Livro de Ingrid Betancourt narra anos de inferno em cativeiro na selva amazônica

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:11

"O diabo mora nesta selva", ela pensou. Tinha razão. No pescoço, uma pesada corrente. Sob xingamentos e mal-tratos, às vezes presa em uma jaula, ela desceu mais e mais ao centro do inferno, plena floresta Amazônica. Quase sete anos nas mãos das Farc. A franco-colombiana Ingrid Betancourt viveu assim no fio da navalha, entre a vida e a morte, e sofreu uma metamorfose que lhe virou pelo avesso corpo e alma. Agora livre, ela repassa na memória o tempo em que seus únicos tesouros na vida eram as fotos dos filhos, a Bíblia e um dicionário.

No livro "Há Silêncio que Não Termine" (Companhia das Letras), Ingrid Betancourt conta em 553 páginas a história do sequestro que, em fevereiro de 2002, deixou o mundo em suspense e virou a vida dela de cabeça para baixo. Filha de um ex-embaixador colombiano e uma ex-miss Colômbia, Betancourt passou boa parte de sua vida em Paris. Na Colômbia, a ex-deputada e ex-senadora vivia a excitação de sua candidatura à presidência, quando as Farc, literalmente, atravessaram o caminho dela.

Os captores chamavam-na a cucha, a velha. Para eles, ela era a inimiga. Mulher política, instruída, capaz de manipular, portanto, perigosa. Assim, nada de piedade com ela. Arrastada de um lado a outro, em marchas forçadas e acampamentos improvisados, Betancourt era o alvo preferido de privações e humilhações. "A selva nos metamorfoseava em baratas e rastejávamos sob o peso de nossas frustrações", conta. Com os companheiros de cativeiro, as coisas também não eram fáceis.

"Tínhamos fome, nos sentíamos mal, começamos a nos comportar como se fossemos menos que nada", diz. Por comida, por roupas, por colchões, por espaço, pelo rádio. Brigas, desconfianças, delações. No barracão que servia de prisão, o clima degringolava. Cada palavra ou gesto podia fazer explodir a crise. "Se eu me mantinha à parte, era porque os desprezava. Se eu participava, era porque estava tentando me impor". No pequeno espelho do estojo de pó de arroz que sobreviveu às buscas, ela não gostava do que via.

Raiva, ciúmes, avareza, inveja, egoísmo. No reflexo dos outros, ela via a si mesma. Betancourt tinha, então, que fazer alguma coisa. Não queria sair da selva como "uma velha murcha, devorada pela amargura e ódio". Tentou várias fugas mata adentro. O pavor de topar de frente com uma anaconda, com os olhos vermelhos dos jacarés, ou com uma faminta uma onça pintada, fazia-lhe o sangue gelar. Mesmo assim, ela não podia evitar. Era seu dever buscar a liberdade. A cada fracasso, mais represálias. Comeu o pão que o diabo amassou.

Fugiu uma vez com Clara, companheira de campanha política, sequestrada junto com ela. Tentou outra vez com Lucho, ou Luis Eladio Pérez, capturado 6 meses antes dela. "Fuímos senadores al mismo tiempo", disse ele, quando a viu na prisão. Teria tido com ele um caso de amor em meio à solidão e dureza da selva? No livro, ela nada revela. O leitor deve ser bom entendedor. Inseparáveis, cuidavam um do outro. Diante das crises de diabetes de Lucho, um dos chefes da guerrilha, Sombra, perguntou se ela o amava. Ela respondeu, "adoro".

O que Ingrid Betancourt conta, o que ela não conta também, é de arrepiar. Em dezembro de 2008, meses após sua libertação, um jornalista da BBC perguntou-lhe sobre possíveis abusos físicos que ela teria sofrido no cativeiro. Betancourt respondeu que tinha pensado muito e decidido que algumas coisas "devem ficar na selva". No livro, ela diz "que é por respeito a si mesmo que a gente se cala". Para ela, contar certas coisas é permitir que elas fiquem vivas no espírito do outro. "Mais conveniente deixá-las morrer dentro de nós mesmos". Em silêncio.

Leia trecho do capítulo Punir:

Fim de julho de 2005

Eu não estava dormindo. Como dormir com aquela corrente no pescoço que se esticava dolorosamente cada vez que William se mexia? As pernas de meus companheiros se enroscavam em volta de mim, havia um pé nas minhas costelas, outro pé preso atrás da nuca, amassada pela pressão dos corpos que não achavam espaço, me obrigando a me encolher evitando qualquer contato inconveniente.

Ergui cautelosamente uma ponta da lona. Já era dia claro. Pus o nariz para fora a fim de encher os pulmões de ar fresco. O pé do guarda prendeu meus dedos, punindo minha ousadia. Ele em seguida tratou de repor a lona. Eu estava morrendo de sede e com uma vontade louca de urinar. Pedi autorização para me aliviar. Enrique berrou lá da ponta:

-Fala para a cucha urinar numa vasilha.

- Não tem espaço, respondeu o guarda.

- Ela que encontre espaço! retorquiu Gafas.

- Ela diz que não consegue fazer na frente dos homens.

- Fala para ela que ela não tem nada que os homens já não tenham visto! ele riu, escarnecendo.

Ruborizei no escuro. Senti uma mão buscando pela minha. Era Lucho. Seu gesto fez ruim minha barragem interna. Pela primeira vez desde nossa captura, desatei a chorar. O que mais eu ainda teria de agüentar, meu Deus, até ter o direito de voltar para casa? Enrique mandou tirar a lona por alguns segundos: os rostos dos meus companheiros estavam deformados, secos, cadavéricos. Olhamos em volta, pescoços esticados e amassados, angustiados sem saber o que pensar, piscando os olhos, cegados pelo sol do meio-dia. Por um breve instante, tínhamos vislumbrado a extensão do nosso desamparo. Chegáramos à encruzilhada de quatro rios imensos. Uma avalanche de água cortando, em forma de cruz, a mata infinda, e nós, um pontinho a chacoalhar perigosamente nos violentos turbilhões daquela colisão de correntes.

Certa manhã, por um capricho de Enrique, o bongo se deteve pesadamente. Os guardas desembarcaram. Nós, não. Lucho mudou de lugar para ficar perto de mim:

- Vai melhorar, você vai ver disse eu.

- Não se iluda, só vai ficar pior!

Três dias depois, finalmente, nos mandaram descer no meio do nada

- Se chover, disse Aramando, vamos ficar encharcados.

Choveu. Meus companheiros estavam ao abrigo dentro das barracas. Enrique me acorrentou a uma árvore, afastada do grupo. Fiquei horas debaixo da tempestade. Os guardas se negaram a me passar os plásticos que meus companheiros mandavam para mim.

Encharcada, trêmula, fui novamente acorrentada a William. Ele pediu licença para ir aos chontos. Tiraram-lhe a corrente. Quando ele voltou, pedi permissão para ir também. Pipiolo, um homenzinho barrigudo, mãos rechonchudas, do grupo de Jeiner e de Pata Grande, fitou-me enquanto, devagar, recolocava o cadeado no pescoço de William. Manteve um silêncio obstinado e se afastou.

William observou, constrangido. Chamou o guarda:

- Guarda, você não ouviu? Ela precisa ir ao banheiro!

- E daí? Você não tem nada com isso. Está querendo arranjar problema? retorquiu o guarda,mal-humorado.

Ele queria agradar a Enrique. Isso também significava o fim do reinado de Pata Grande. Pegou um raminho e o usou para palitar os dentes enquanto me encarava.

- Pipiolo, eu preciso ir aos chontos repeti em voz monocórdica.

- Está querendo cagar? Pois faça aqui mesmo, na minha frente, agachada aos meus pés. Os chontos não são para você! berrou.

Oswald e Ángel passavam por ali carregando toras de madeira nos ombros. Caíram na gargalhada e desfecharam-lhe um tapa na omoplata, à guisa de felicitações. Pipiolo fingiu se segurar no fuzil (um Galil 5.56 mm), encantado por ter uma plateia.

Eu ia ter de esperar a troca da guarda.

William se pôs a conversar comigo. Como se nada houvesse. Queria que eu fingisse ignorar Pipiolo, e eu lhe era grata por isso. Pipiolo se aproximou. Parou na minha frente:

- Cale a boca, entendeu? Agora quem está se divertindo sou eu. Enquanto eu estiver aqui, você não abre a boca.

Enrique deixou Pipiolo o dia inteiro em seu posto. Não houve troca de guarda até a noite.

A tropa trabalhou a toda pressa numa obra que observávamos através das árvores. Em um dia, foi construída a prisão: grades, arame farpado, oito caletas estreitamente enfileiradas, e duas mais afastadas nas extremidades. Colada numa delas, montaram uma latrina fechada por uma divisória de palmas. Do outro lado, uma árvore. No centro, um reservatório de água. Em volta das caletas, um charco de lama.

Coube-me a caleta que ficava entre a latrina e a árvore, à qual me acorrentaram. Podia me mover o suficiente para ir da minha rede até a latrina, mas me estrangulava ao tentar alcançar o tanque de água. Lucho estava do outro lado do reservatório, acorrentado também. Tiraram nossas botas, obrigando-nos a andar descalços.

Minha proximidade da latrina era uma punição refinada. Eu vivia em meio aos permanentes eflúvios dos nossos corpos doentes. A náusea não me dava trégua, obrigada que era a ser a importuna testemunha do alívio corporal de todos os meus companheiros.

Fiz do meu mosquiteiro uma bolha. Nela me refugiava do ataque de jejen, da pajarilla, da mosca-marrana, e do contato com os homens. Passava 24 horas pro dia aninhada em meu casulo, encolhida em minha rede em um silêncio compulsivo que eu já não procurava romper, um silêncio sem fim.

Este conteúdo foi útil para você?

Sua avaliação é importante para entregarmos a melhor notícia

Siga-nos

Mais do Guiame

O Guiame utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência acordo com a nossa Politica de privacidade e, ao continuar navegando você concorda com essas condições