Nem sempre se deve guardar segredo

Nem sempre se deve guardar segredo

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:30

Era uma vez dois irmãos, um menino e uma menina de 4 e 5 anos. Eles viviam felizes até que, de uma hora para outra, mudaram de comportamento. Não gostavam mais de brincar, tinham medo de tudo e ficaram tristes. A mãe não sabia o que estava acontecendo, mas percebeu que toda vez que o pai chegava, eles saiam correndo para se esconder. Preocupada, ela os levou para conversar com uma psicóloga, que descobriu qual era o segredo. Os irmãos estavam sofrendo abuso sexual do pai.

A história é real e aconteceu neste ano, em Santo André. Ela faz parte de um número assustador: calcula-se que no Brasil, todo dia, 165 crianças e adolescentes sofram algum tipo de violência sexual. A quantidade de casos deve ser muito maior, mas nem todas as vítimas podem contar o que acontece (porque são ameaçadas) e, às vezes, o crime nunca é descoberto. E o mais triste: em geral, os agressores são pessoas que a criança conhece.

O que é isso? - Violência ou abuso é quando um adulto usa a criança ou o adolescente para se satisfazer sexualmente. Existe também a palavra pedofilia para indicar a atração sexual por menores de idade. É pedófilo quem só tem prazer sexual com elas, com mais ninguém.

"Pedofilia é um transtorno, uma alteração no cérebro, mas não é considerada doença. Se fosse, o pedófilo tomaria um remédio e seria curado. Ele precisa de tratamento e acompanhamento psicológico", explica Aderbal Vieira Jr., especialista em dependência sexual do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) da Universidade de São Paulo.

Não parece, mas são armadilhas

O abusador sexual, que pode ser homem (na maioria dos casos) ou mulher, usa táticas para se aproximar da vítima. Oferece doces, brinquedos, dinheiro, presentes ou até convida-a para assistir a um filme ou desenho animado.

"Ele diz que é seu melhor amigo e sempre pede para guardar segredo sobre o que aconteceu. E isso já indica que não pode ser coisa boa", explica Ana Paula de Ângelo Guimarães, psicóloga da Resavas (Rede de Saúde para Atenção à Violência e Abuso Sexual) de Santo André.

Em troca, toca no órgão sexual da criança ou pede para que toque no dele, fala sobre coisas ligadas a sexo, fica pelado ou ainda mostra vídeos e revistas com gente sem roupa. Pode ainda forçá-la a ter relações sexuais com ele. Tudo isso é violência e nunca, jamais, deve acontecer. Se passar por uma dessas situações denuncie.

Por que não pode?

O abuso sexual na infância e na adolescência, além de ser uma violência, prejudica o desenvolvimento físico e mental.

O desejo sexual pelo outro é algo natural entre os humanos, mas, para ser saudável, deve acontecer só depois de nosso organismo estar preparado. Antes disso, o corpo e a mente ainda estão amadurecendo.

As substâncias que nos preparam para a atividade sexual, chamadas hormônios sexuais, só começam a ser produzidas na adolescência. Mesmo assim, esse é só o começo de um processo que finaliza na vida adulta.

É natural que se tenha vontade de descobrir como é o próprio corpo ou o do amiguinho da mesma idade. E o abusador se aproveita disso. A diferença é que o adulto sabe o que é certo, a criança não.

"A infância e a adolescência são fases de aprendizado. Não é saudável que um adulto, que já está em outra etapa da vida sexual, interfira nesta descoberta", explica a médica hebiatra Lígia Reato, coordenadora da Faculdade de Medicina da Fundação ABC.

Carinho que incomoda

"O abuso sexual é um carinho que incomoda, que não é aconchegante. A vítima sabe quando está sendo violada", explica a psicóloga Lígia Maria Vezzarro Caravieri, coordenadora do Crami (Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD).

Carinho de alguém da família, se for inocente, não deve ser feito em lugares escondidos, nem ser mantido em segredo, segundo Lígia. Tomar banho junto, sentar no colo do pai e da mãe fazem parte do relacionamento familiar, desde que a criança não se sinta incomodada com isso.

Agressores adoram a internet

A internet é uma das formas de o pedófilo se aproximar da vítima. Salas de bate-papo (chat), Orkut e MSN são os meios preferidos. "O abusador se passa por amigo da mesma idade, diz que conhece a escola e os colegas. A criança fica sem saber se está falando com um adulto e passa todas as informações, até o endereço", alerta Rodrigo Nejm, diretor de prevenção da ONG Safer Net, que combate crimes pela internet.

O agressor, segundo ele, conquista a confiança e passa a mandar desenhos de personagens conhecidos em posições e atos sexuais. "Aos poucos, vai acostumando a vítima com a pornografia e consegue com que ela tire fotos sensuais e mande por e-mail. Muitos pedem para ligar a webcam e ficam pelados ou pedem para que faça isso", explica Rodrigo. Depois ameaçam mostrar para alguém, dizendo que é para manter segredo.

Não dá para fechar os olhos

"Em geral, professores e família não estão preparados para falar sobre abuso sexual na infância e na adolescência", afirma a psicóloga Rachel Brino, do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência da Universidade de São Carlos. Ela é autora de uma tese que contribuiu para o início do projeto Escola que Protege, com a finalidade de preparar profissionais para lidar com o assunto e que deve ser implantado no Grande ABC nos próximos meses.

É importante falar sobre isso porque quem sofre a violência precisa aprender a se defender e denunciar o abuso.

O Diarinho e todos os profissionais consultados acreditam que é essencial alertar e dão algumas dicas de como reagir ou desconfiar de que alguém esteja sendo abusado. Confira:

Desconfie quando um adulto oferecer brinquedos, doces, dinheiro e outras coisas legais em troca de toques no corpo ou pedidos estranhos como tirar a roupa, vê-lo pelado ou olhar revista ou vídeo que contenha cenas de gente mantendo relação sexual.

Não dê ouvidos para quem pede para segui-lo e nunca saia da escola sem autorização. Não se aproxime de carros para dar informação. Quem realmente está perdido pergunta a um adulto.

Quando se sentir incomodado com algum tipo de carinho (como beijos, carícias e toques nos órgãos sexuais ou no bumbum), inclusive se for de alguém da família, diga que não gosta e se afaste. Vale até gritar e sair correndo.

Conte o que está acontecendo para alguém que você confie muito. Caso a pessoa não acredite, telefone para o Conselho Tutelar da sua cidade (veja os telefones na página 8). O importante é insistir até que alguém ajude.

Não guarde segredo sobre o abuso, nem se a pessoa fizer ameaças. Não tenha medo de contar o que está acontecendo. Você não tem culpa de nada e precisa de ajuda.

Se perceber que o amigo ou o irmão está muito triste e com medo, diferente do que costumava ser, pergunte o que está acontecendo. Se ele não disser nada, avise a professora ou sua mãe, que saberá o que fazer.

Na internet, nunca passe informações pessoais como nome completo, endereço de casa, nome da escola e número de telefone. Evite postar fotos.

Não aceite no MSN nem no Orkut quem você não conhece pessoalmente. Evite salas de bate-papo. O abusador se passa por criança e engana bem.

Não tire nem envie para ninguém fotos de você sem roupa.

Jamais use a webcam para se comunicar com quem não conhece pessoalmente. O ideal é que seus pais estejam sempre presentes quando utilizar esse recurso.

Ainda é possível ser muito feliz

Sofrer abuso sexual é uma experiência que pode deixar traumas. Porém, com a ajuda de psicólogos e profissionais especializados e, principalmente, o apoio de pessoas que a amam de verdade, a vítima consegue retomar a vida e ser muito feliz. Maura de Oliveira, 40 anos, tinha tudo para ser uma mulher traumatizada, mas conseguiu dar a volta por cima, sozinha.

Ela era menina de rua que, com 6 anos, foi adotada por uma família, cujo homem da casa abusava dela. "Era um senhor que me mandava sentar no colo dele e ficava se esfregando em mim", conta. Depois, o genro de seu pai adotivo passou a abusar da menina também. "Só fiquei porque tinha medo que me tirassem da escola", conta.

Aos 16 anos, Maura procurou a Justiça e conseguiu sua liberdade. Fez faculdade de História e hoje dá palestras sobre sua vida. "A partir de qualquer idade, a criança já tem de ter noção do assunto e deve saber cuidar do próprio corpo. Ela entende bem o que eu falo, mais do que o adulto pode imaginar."

Também fundou a ONG Life, que cuida de jovens carentes do Rio de Janeiro. "Uma criança violentada perde os sonhos, não acredita em mais nada. Mas não precisa ser assim. Todo mundo pode ser feliz."

A história de Maura está no livro A Menina de Ontem, que está sendo adaptada para o público infantil por seus filhos Gabriel, 11, e Lucas, 15, com o título Menininha de Ontem. O texto é em forma de versinhos. "Minha mãe teve uma vida bem difícil, mas foi uma guerreira. Ela poderia ter escolhido o lado ruim, mas conseguiu se superar", fala Gabriel.

Nunca deixe de denunciar

É preciso denunciar para que o abuso sexual acabe. "Está na lei. Em qualquer suspeita de violência, o adulto é obrigado a comunicá-la ao Conselho Tutelar", explica Vania Raminelli, coordenadora da Resavas. Nos últimos anos, as pessoas estão denunciando mais. "É importante ouvir a criança. O que a deixa mais triste é ninguém acreditar nela. Se isso acontecer, ela nunca vai contar mais nada a ninguém", alerta Maria Rosângela da Silva, assistente social do Crami.

A recomendação é procurar o Conselho Tutelar ou ligar para 1O0. Não precisa se identificar. Anote os telefones dos conselhos:

Santo André: 4990-4358, 4994-0252 e 4971-6412

São Bernardo: 4126-4300

São Caetano: 4221-1130

Diadema: 4059-0569 e 4053-8005

Mauá: 4546-1444 e 4513-7555

Ribeirão Pires: 4828-6822

R. Grande da Serra: 4820-1973 t Confira outros serviços que também podem ser procurados:

Crami: 4123-1751, 4051-1234 e 4992-1234

Recad (Diadema): 4053-8001 e 4053-8003

Centro Integrado de Apoio e Defesa à Infância e Juventude: 4124-7718 e 4330-4374

Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente: 4332-9111 e 4121-5471

Resavas (Santo André): 4427-6110

É preciso ficar atento

Apesar do cuidado que Maura sempre teve, Gabriel já sofreu três tentativas de abuso. A primeira aconteceu quando ele tinha 4 anos e o irmão, 8. A babá mexeu no órgão sexual do menino e o irmão contou à mãe, que pegou a mulher no flagra.

Da outra vez, aos 7 anos, Gabriel começou a bater-papo com um ‘amiguinho'' na internet que, depois de conquistar sua confiança, disse que ia mostrar um presente, pediu para ligar a webcam e ficou nu. O menino avisou a mãe, mas o agressor nunca foi encontrado. "Na hora fiquei com medo, mas minha mãe já tinha me explicado o que era pedofilia e que tinha de ficar esperto. Nunca mais adicionei quem não conhecia pessoalmente e falo para meus amigos fazerem isso também. É perigoso."

No ano passado, Gabriel foi convidado a entrar no banheiro do colégio, por um rapaz que dizia ter uma "surpresinha para mostrar". O menino gritou e saiu correndo. "Não pode ter medo de denunciar, de contar o que está acontecendo. Os pais precisam conversar com os filhos sobre tudo. Foi por isso que consegui me defender."

Quem quer saber mais sobre a história de Maura ou tirar dúvidas com ela pode acessar o site www.mauradeoliveira.com.br ou enviar e-mail para [email protected]

Não é fácil!

A nadadora Joanna Maranhão, 21 anos, foi molestada pelo técnico quando tinha 9. Na época, contou para a mãe, que não acreditou. Hoje, a mãe se arrepende de não ter feito nada. O caso se tornou público só 12 anos depois, em 2008, quando a atleta contou que isso afetou toda a sua vida.

Procurada pelo Diarinho, Joanna não aceitou falar sobre o fato, por estar sendo processada pelo treinador por difamação (mentira). Mesmo assim, é importante denunciar. "O agressor tem de sofrer as consequências pelo que fez", diz Ricardo Cabezon, presidente da Comissão de Direitos da Criança da OAB.

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