"Perdemos mais com o incêndio do Butantan do que se tivéssemos queimado dezenas de bibliotecas", diz pesquisador

"Perdemos mais com o incêndio do Butantan do que se tivéssemos queimado dezenas de bibliotecas", diz pesquisador

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:24

O prejuízo científico resultante do incêndio que atingiu o laboratório de répteis do Instituto Butantan, na zona oeste de São Paulo, deixou os pesquisadores estarrecidos, segundo relatos ouvidos pelo UOL Notícias. O fogo do último sábado (15) destruiu boa parte do acervo composto por cerca de 85 mil exemplares de serpentes, além de algo em torno de 500 mil artrópodes, como aranhas e escorpiões. Os animais eram conservados em vidros com formol.

"A perda é irreparável. Aquele material não tinha preço e não existe outro igual. Perdemos mais com o incêndio do Butantan do que se tivéssemos queimado dezenas de bibliotecas, pois as bibliotecas são compostas quase sempre por livros publicados em série, já muitas serpentes que compunham o acervo do Butantan eram únicas e já não existem mais", lamenta Miguel Trefaut Urbano Rodrigues, herpetólogo do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo o pesquisador, faziam parte da coleção exemplares de serpentes que viviam na região de Mata Atlântica do Estado do Espírito Santo, e que hoje não existem mais. "Não apenas esta, mas outras milhares de populações já extintas estavam representadas naquela coleção. Essas serpentes eram guardadas e serviam até hoje a cientistas do mundo inteiro", complementa

Na opinião de Trefaut, não há chances de reconstruir o acervo. "É impossível repor aqueles exemplares. Claro que sempre é possível recomeçar a colecionar bichos recentes, mas nunca o acervo voltará a ter aquela dimensão. Não existe a menor chance de se recuperar aquilo".

Para Luiz Antonio Teixeira, historiador da Casa de Oswaldo Cruz, a coleção era fruto do trabalho da população brasileira e da dedicação de cientistas de diversas épocas.

"O acervo tinha grande importância histórica, porque os primeiros exemplares foram colhidos pelo próprio Vital Brasil, fundador do Butantan. Há cerca de 100 anos, ele criou o costume de trocar serpentes trazidas pela própria população por ampolas de soro. No início, muitos exemplares foram conseguidos dessa forma. Assim foi construída a base da coleção", conta.

Para o diretor do museu de Zoologia da USP, Hussam Zaher, o incêndio foi um "terrível golpe moral". "Não temos palavras. Mais que tudo, isso representa uma tragédia moral. Demos uma demonstração de irresponsabilidade e incompetência. Nossa imagem ficou arranhada no meio científico mundial. Mostramos que não temos condições de manter um acervo daquela importância. Perdemos credibilidade", enfatizou.

Zaher revelou que centenas de espécies recém-adquiridas, que podem ter sido destruídas pelo fogo, não chegaram a ser catalogadas. Além disso, ele afirma que exemplares que não existem em nenhum outro lugar do mundo faziam parte da coleção do Butantan. "O acervo guardava exemplares de serpentes encontradas em lugares que já foram destruídos, onde agora funcionam shoppings e estacionamentos. Essa coleção contava a história do crescimento populacional do Estado de São Paulo e do Brasil".

José P. Pombal Jr., curador das coleções de anfíbios do Museu Nacional do Rio de Janeiro, também acredita que a perda científica do Butantan é incalculável. "Pela representatividade e antiguidade do acervo, o incêndio foi pior que a destruição dos museus durante a 2ª Guerra Mundial", compara.

Ele relembra que através da coleção de serpentes foi possível fazer um estudo não só das espécies, como também da evolução de seus habitats. "Através do tipo de animal que chegava ao instituto era possível perceber as alterações ambientais sofridas ao longo do tempo. Hoje tudo isso foi apagado".

"No sábado, a sensação era de que eu tivesse ido ao velório de um amigo muito querido", finaliza Pombal Jr.

Livros preservados

O Instituto Butantan confirmou, na tarde de ontem, que os livros de registro de todos os animais da coleção de serpentes foram preservados. Os originais estavam armazenados em outro prédio e, portanto, não sofreram qualquer dano.

Segundo o Butantan, os livros contêm registros de todas as espécies que estavam armazenadas no prédio, incluindo nome científico e popular, data e local de coleta, nome do coletor, além de outras informações sobre as características de cada um deles. Apenas três dos 45 livros estavam dentro do prédio que pegou fogo.

Na opinião de Pombal Jr.,os livros são muito importantes, mas sem os animais eles perdem um pouco de suas funções. "É como se fosse a capa do livro sem o conteúdo. É verdade que com eles teremos todo o histórico das espécies que faziam parte da coleção, mas não será mais possível contar com a fonte original, que era a base para todos os estudos".

"O livro sem o exemplar tem muito pouco valor. Para a pesquisa o livro não tem validade. Ele é mantenedor das informações, mas essas informações precisam ser validadas através de exames com o exemplar. Hoje isso já não é possível", acrescenta Zaher.

Pesquisas comprometidas

Segundo o próprio Butantan, pesquisas referentes à biodiversidade podem ficar prejudicadas pelo incêndio. De acordo com a assessoria de imprensa do instituto, somente após a conclusão do laudo técnico da perícia é que serão divulgados levantamentos sobre a perda da coleção e as consequências nas pesquisas.

"Sem dúvida, dezenas de trabalhos científicos, entre eles teses de mestrado e doutorado, que dependiam da coleção, ficarão comprometidos com a perda desses exemplares", revela Trefaut.

Segundo o diretor do museu de Zoologia da USP, muitos mestrandos e doutorandos ficaram órfãos. Estes pesquisadores tiveram suas teses ceifadas. Vamos ter de repensar".

A produção de vacinas e antídotos, entretanto, não deverá ser prejudicada uma vez que as pesquisas são feitas a partir de animas vivos. Segundo a assessoria de imprensa, não havia nenhum animal vivo no prédio que foi atingido pelo fogo. Entre as espécies que foram destruídas, algumas estavam mantidas em formol há aproximadamente 100 anos.

Descaso

Todos os especialistas ligados ao meio científico ouvidos pelo UOL Notícias concordam que, independentemente das causas do incêndio, a tragédia pode ser atribuída a um descaso das autoridades com a ciência. "É muito simples. Hoje, apenas com extintores, se houver um princípio de incêndio e o fogo não for controlado rapidamente, o museu de Zoologia também vai ser destruído", alerta Zaher.

O diretor do museu, que abriga atualmente 10 milhões de exemplares preservados de diversas espécies, afirma que há muito tempo luta por melhores condições. "Nós não acordamos ontem para a necessidade de melhorar nosso sistema como um todo, mas o processo anda a passos de tartaruga. O processo de licitação no Brasil é incompatível com as demandas atuais da nossa realidade. Precisamos da compreensão do poder público e de vontade política para mudar isso. Caso contrário, nosso futuro será as trevas", apontou.

O especialista em serpentes Trefaut espera que a midiatização do incêndio no Butantan sirva para conscientizar as autoridades. "Faço votos de que essa tragédia sirva, pelo menos, para que nossos museus científicos sejam mais priorizados. É uma irresponsabilidade mantê-los nestas condições. Espero que esse episódio lamentável para a biologia e para a ciência brasileira sirva para abrir os olhos do poder público".

Por Raquel Maldonado

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