Recaída atinge até metade dos usuários de crack

Recaída atinge até metade dos usuários de crack

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 3:24

Aos 13 anos, N.Z.R. teve sua primeira experiência com drogas. Com o tempo, ao primeiro cigarro de maconha foram se somando outras substâncias ilícitas, como a cocaína, sempre em um coquetel temperado por doses fartas de bebida alcoólica. Aos 28, aceitou a oferta de um traficante que, na falta de erva, lhe apresentou o crack. “Depois disso, abandonei todas as outras drogas, inclusive o álcool. Só queria usar as pedras. Começava uma fase da minha vida em que fui eliminando todos os valores, começando por Deus, depois a família, até me desfazer dos bens materiais. Para comprar crack, vendia coisas que valiam R$ 300 por R$ 10”, conta N., relembrando o período mais tenebroso de sua vida.

Foi aos 36 anos, oito após fumar a primeira pedra de crack, que ele decidiu pedir ajuda. Pesava apenas 57 quilos, muito pouco para um homem de 1,80 metro de altura, e não tinha mais vontade de trabalhar. “A última coisa que fiz foi abandonar o emprego, porque precisava do dinheiro para comprar droga. Só que um dia depois do pagamento ou do adiantamento do salário, eu não aparecia no serviço, nem de dois a três dias após as grandes festas, como o carnaval. Chegou uma hora que não dei mais conta”, recorda. Quatro anos e meio depois de iniciar o tratamento para dependentes químicos, N., hoje com 40, recuperou a saúde – pesa atualmente 94 quilos – e a disposição para cuidar da mulher, dos quatro filhos e de dois netos.

Mas a história de queda e superação de N. não é regra. Especialistas apontam a altíssima reincidência no uso do crack como o maior desafio no tratamento dos dependentes, que já somam uma multidão estimada em 1,2 milhão de pessoas no Brasil. De acordo com o subsecretário de Estado de Políticas Antidrogas, Cloves Benevides, não há uma estimativa de viciados nesse tipo de droga em Minas, que conta com uma rede de assistência aos pacientes formada por mais de 200 instituições. “A recaída é fato e em lugar nenhum do país há números promissores no tratamento. Os serviços que apresentam os melhores resultados chegam a ter 50% de reincidência. A solução dos casos não pode ser esperada na sua totalidade, pois a característica da doença não é essa”, afirma Benevides.

Indicadores que apontam o avanço das pedras entre os viciados dão tons ainda mais sombrios ao fenômeno da recaída. Dos 1.117 pacientes atendidos no Centro Mineiro de Toxicomania (CMT) no ano passado, 39,21% eram viciados em crack, a droga que individualmente arrastou mais dependentes entre os atendidos na instituição. A diferença em relação a outras drogas ilícitas é gritante: os usuários de cocaína representam 11,73%, enquanto os de maconha somam 9,76%.

Entre os dependentes de crack que se tratam no CMT, 391 são homens e 58, mulheres. A maioria (294) tem de 25 a 40 anos, primeiro grau incompleto (178) e é solteira (295). “O perfil do atendimento neste ano não muda muito. Do total, 40% são casos de recaída e 60% buscam ajuda pela primeira vez. O esforço do dependente é essencial, pois não há tratamento no mundo que tire a vontade de usar droga. A substância age na parte do cérebro que comanda o prazer. Se for usado um remédio para tirar o prazer da droga, ele vai anular todos os outros prazeres, como o de trabalhar e até mesmo o sexual”, explica a terapeuta ocupacional Raquel Martins Pinheiro, especialista em toxicologia e diretora do CMT.

Fundada há 27 anos, a instituição foi o primeiro centro de atenção psicossocial (CAP) criado no país pelo Ministério da Saúde. Parte da rede da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), é a maior referência no estado no tratamento de dependência química.

Fissura

O psiquiatra Valdir Ribeiro Campos, especialista em dependência química e membro da Comissão de Controle do Tabagismo, Alcoolismo e Outras Drogas da Associação Médica de Minas Gerais, explica que o crack, feito da pasta-base de cocaína, leva de cinco a 10 segundos para atingir o sistema nervoso central e provocar o seu efeito alucinógeno, que dura no máximo cinco minutos. A cocaína inalada na forma de pó demora alguns minutos até chegar ao cérebro e tem efeito de até duas horas. “O efeito do crack no corpo é curto e a vontade de usar a droga de novo, o que chamamos de fissura, é rápida. Com isso, a dependência aparece em poucas semanas”, diz o psiquiatra. Ele ressalta que a possibilidade de recaída dos viciados em crack que se submetem a tratamento é maior nos três primeiros meses de abstinência (veja quadro na página 18).

Para não correr esse risco, N., que mora no Bairro Concórdia, na Região Nordeste de Belo Horizonte, procurou ajuda na comunidade terapêutica Terra da Sobriedade, em Venda Nova, uma das parceiras da Subsecretaria de Políticas Antidrogas. A terapeuta ocupacional Carolina Couto da Mata, coordenadora da instituição, diz que o índice de abandono no tratamento com dependentes de crack chega a 50%. “A alta toxidade do crack é um agravante para o vício. Dependentes constumam dizer que, se outras drogas os deixam a 60 por hora, ficam a 300 por hora quando fumam o crack”, compara.

N., que continua frequentando os grupos de ajuda mútua da Terra da Sobriedade, trocou a marica – como os usuários chamam o cachimbo usado para fumar crack – pelas palavras, dando palestras de prevenção ao uso de drogas. O trabalho que ele desenvolve de forma voluntária pode ser conferido no site (http://adicto.podomatic.com). “A recaída faz parte da doença e não do tratamento. Já sofri o bastante.”

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