Para a sua dor de estômago é necessário tomar um medicamento a cada oito horas, durante sete dias. A simples recomendação, escrita em letras nem sempre legíveis no receituário médico, anuncia o final da consulta.
O analfabetismo e outras tantas diferenças regionais e sociais impendem que a ordem seja, de fato, compreendida e executada pelos pacientes. O tratamento, nesses casos, termina antes mesmo de começar.
Uma recente pesquisa feita pelo Hospital das Clínicas de São Paulo mapeou tal gargalo na capital paulista. Segundos os dados, a maioria dos usuários consegue ler a receita, mas é incapaz de compreendê-las. A incompatibilidade entre analfabetismo, analfabetismo funcional e receitas médicas, entretanto, representa a espiral de um problema ainda mais antagônico: qualidade do atendimento médico em função da demanda.
Foi durante um trabalho de campo na Etiópia que David Oliveira de Souza, coordenador da organização médico-humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras, aprendeu um novo conceito para interpretar as horas.
A missão era em uma região pobre, rural. Ninguém trabalha com noção de hora determinada pelo relógio. Um dos pacientes me contou que para saber o horário certo que deveria tomar a segunda dose do medicamento, ele retirava uma planta da terra e a deixava na porta de sua casa. Quando ela estivesse murcha, significava o tempo de oito horas já tinha passado e ele deveria tomar o remédio novamente.
A realidade da África, embora distante geograficamente, é muito similar à dos moradores de rua nas principais cidades brasileiras. Essas populações, seja na África, no Haiti ou no Brasil, não regulam o dia pelo ponteiro do relógio. A alimentação não é garantida, regrada. Não dá para dizer que ele deve tomar o medicamento antes das refeições. Para ele, isso não faz o menor sentido.
Na avaliação do especialista, é preciso que os médicos identifiquem a linguagem, estabeleçam uma forma de comunicação condizente com o perfil do paciente. Seja ela através de desenhos, simbolismos ou uma simples conversa. O atendimento no estilo "linha de montagem" impossibilita que o momento da prescrição seja detalhado, feito com atenção.
É sempre o prenúncio do fim da consulta, feito rapidamente e garantido apenas no papel. Não é preciso muito para ajudar o paciente. Se todos os médicos checassem o entendimento do que foi recomendado, como uma espécie de ditado, já seria de grande valia, diz o médico.
Reconhecer um paciente não é necessariamente questionar seu nível educacional, mas compreender o cenário no qual ele está inserido, endossa o médico. Histórias da equipe ilustram esse processo de se aproximar das necessidades de uma determinada comunidade.
Há alguns anos atrás, em uma Unidade de Tratamento na Libéria, a equipe do MSF, após algum tempo instalada, começou a notar que pessoas pararam de buscar um composto nutricional, alimento terapêutico para portadores de HIV. Ao investigar o que estava ocorrendo, a antropóloga do grupo entendeu que a embalagem do remédio dava rosto à Aids. Os pacientes que retiravam o medicamento passaram a ser estigmatizados pela população local, ao serem reconhecidos com a doença. Era melhor ficar sem o remédio a ser rechaçado nas ruas", acrescenta o Souza.
São múltiplos os problemas sociais e individuais capazes de impedir a eficiência de um tratamento. Segundo especialistas, analfabetismo funcional talvez seja ainda mais agravante. Os pacientes acham que entenderam, mas quando se encontram sozinhos com a receita não têm a mais vaga idéia de como proceder.
Para Souza, há uma relação hierarquizada entre médicos e pacientes que afasta o profissional das pessoas. Quando esse contato acontece dentro de um posto de saúde ou hospital público, a dicotomia é ainda mais pungente.
O doutor é um ser muito superior. Apresentar-se como analfabeto ou dizer que não entendeu uma indicação aparentemente simples provoca vergonha e humilhação. No SUS, todos sabem o tamanho da fila. Conseguir uma consulta passa a ser sinal de sorte, ou para os mais religiosos, uma benção, mesmo sem entender o que foi indicado."
Educação se tem no posto
Apesar dos entraves, não são escassas as formas de garantir que a indicação seja compreendida. Lara Rodrigues Felix, médica do Programa de Saúde da Família de Tiradentes, em Minas Gerais, inverteu a lógica de atendimento do Posto de Saúde onde trabalha.
A fila permanece longa e o tempo de espera para ser atendido é ainda maior. Lara é uma das duas médicas responsáveis por atender uma população de 11 mil habitantes em dois Postos de Saúde da pequena cidade mineira. A população idosa tem uma grande dificuldade para compreender as razões de suas dores e, principalmente, para organizar os horários das medicações.
Embora encontre resistência da equipe médica e dos próprios pacientes que a cada hora se somam à fila, ela insiste em gastar no mínimo 30 minutos em cada atendimento. Para contornar o analfabetismo agressivo que existe na comunidade, ela usa desenhos, símbolos e colagens nas receitas médicas.
Alguns pacientes precisam tomar 20 comprimidos por dia. Para não passar o tempo em função da medicação, eles tomam todos de uma vez. Para que isso não ocorra, colo ao lado do nome do remédio, uma amostra do comprimido e oriento com calma como eles devem proceder.
Quando o posto não tem o medicamento recomendado, Lara pede ao paciente compre e a procure novamente. Ela repetirá a explicação e prescrição. Além do trabalho artesanal, ela sempre questiona o entendimento da receita médica. Sem pudores, pergunta se o paciente sabe ler e o faz repetir a orientação em voz alta para que ele não deixe o consultório confuso e sem tratamento.
A receita com amostras e desenho ajuda bastante, mas com a demanda, nem sempre é possível fazer isso. A resistencia é grande. O interesse não é do atendimento criterioso, mas que eu dê conta da demanda, não ultrapasse os horários. De qualquer forma, faz parte do meu papel educar o paciente, fazer com que ele entenda a doença que tem e como será cuidado. Se ele não aderir ao tratamento, meu trabalho foi em vão.
Os resultados são verbalizados pelos pacientes. A intimidade e o apoio fazem com que a orientação seja seguida à risca. A especialista conta que uma paciente atendida por ela em 2009 com Transtorno Obssessivo Compulsivo, retornou este ano ao posto. Sem consulta marcada, a senhora de 40 anos queria apenas mostrar o quão bem estava. Antes de se despedir da médica, confessou que nunca havia confiado em nenhum profissinal da área até ser atendida por Lara.
Postado por: Thatiane de Souza
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