Um ano após massacre de Realengo, amigos e família convivem com a dor

Um ano após massacre, amigos e família convivem com a dor

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:13

Com os olhos marejados a comerciante Noeli da Silva Rocha segura uma foto e pergunta: “Já viu como a minha filha é linda? Ela queria ser modelo. Não me conformo. Todos os dias acho que ela vai entrar por aquela porta perguntando se a comida está pronta”. Rapidamente a comerciante conduz a equipe do iG até o quarto que seria de sua filha do meio, Mariana Rocha, 13 anos, morta na chacina que vitimou 12 crianças na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona Norte do Rio de Janeiro, ocorrida no dia 7 de abril de 2011.

Na manhã daquela quinta-feira Mariana assistia à aula de português na turma 1801 quando foi morta com um tiro na cabeça por Wellington Menezes de Oliveira, ex-aluno que invadiu o colégio armado, matando 12 crianças e ferindo outras 12. A tragédia foi o maior massacre ocorrido em uma instituição de ensino no País. Dez das vítimas eram meninas. Todos os mortos tinham entre 12 e 14 anos. Cercado por PMs, Wellington se matou com um tiro na cabeça, segundo a polícia.

“Ela fez 14 anos agora em novembro. Esse ano completaria 15 e havia me pedido para mandar uma carta para o programa da Ana Maria Braga. Ela queria que conseguíssemos um bolo e sonhava em dançar a valsa com o Justin Bieber. Era apaixonada por ele”, recorda Noeli, sem conter a emoção.

Filho caçula sobreviveu

Mãe também de Eduardo, de 12 anos, e de Hudson, de 18, ela conta que o filho mais novo, que também estudava na Tasso, está tendo dificuldades para voltar à escola. “Não consegue estudar até hoje. Não sei se é ele que não consegue ou sou eu. Ele ganhou uma bolsa no colégio Piraquara logo que tudo aconteceu, mas mal chegava lá e me ligavam porque ele começava a chorar. E eu não conseguia botar ele na escola de novo. Não sei se é o medo da escola... Não sei”, explica Noeli nervosamente, acendendo um cigarro.

Com esforço ela recolocou o menino no colégio na última sexta-feira (30), mas desabafa: “Encaixei ele num colégio particular, mas por mim ele estava em casa. Juro. Ele estudava no terceiro andar, passou e viu a irmã morta. Imagina como ele está?”

Apesar de ter doado a maior parte dos pertences da filha, Noeli ainda guarda a roupa que ela usou na noite anterior ao massacre – “deixo embaixo do meu travesseiro e fico sentindo o cheirinho dela à noite” – e os cadernos escolares da menina. Em um deles, fotos de um modelo e do ator Fiuk enfeitam a capa. “Ela era ótima aluna! Não tinha uma falta, uma nota baixa”, completa a mãe.

Enquanto fala sobre Mariana, Noeli mostra vídeos que amigos fizeram para a filha e postaram no site You Tube. “Às vezes assisto, mas tem dias que preciso até que tirem os porta-retratos da casa”, comenta, chorando muito. “A saudade dela dói demais. No dia que aconteceu eu a chamei para ir comigo em Madureira, para ela não ir para a escola, mas ela disse que não porque tinha aula”, lembra Noeli, que junto com as mães das outras vítimas fundou a Associação dos Anjos de Realengo.

“Nossa briga é para que o caso não caia no esquecimento e pela segurança nas escolas. Até que melhorou um pouco. Colocaram inspetores nas escolas da região”, conta ela. Para o aniversário de um ano da morte das crianças a associação encomendou camisetas e 700 anjos de cristal para uma passeata que acontecerá no sábado (7), a partir das 15h, saindo da escola, e uma missa, na Igreja Nossa Senhora de Fátima, no domingo (8). Elas planejam também distribuir fitas verdes para colocar nos carros das pessoas que quiserem mostrar solidariedade.

“Como é que o cara entra e sobe?”

“Conforme vai passando o tempo vai piorando. A ficha ainda não tinha caído. Agora eu vejo que ela não vem mais”, murmura Noeli, olhando para um cartaz com o nome da filha enviado por uma igreja da região. Ela ainda se revolta por Wellington ter conseguido entrar na escola e conta que uma vez foi até lá levar um lanche para a filha, mas não a deixaram entrar. “Como é que o cara entra e sobe? Na quarta-feira (um dia antes do massacre) ela me disse que estava fazendo educação física e tinha um moço estranho lá. Que ele estava rodando pela escola.”, recorda.

Mesmo um ano depois Noeli diz que o sentimento de incredulidade por perder a filha na escola é o mesmo. “Ela não ia para baile, nada. Agora morrer dentro de uma escola? É um absurdo. Ela ia no máximo para a pracinha perto da nossa casa onde morávamos, mas 22h eu já ia buscá-la”, conta ela, antes de acender mais um cigarro. O maço, neste ponto da conversa, já está pela metade. “Agora estou fumando mais ainda. A doutora me receitou um calmante para eu tomar um por dia, mas como eu tomava três ela não deu mais receita. Agora uso um natural que não adianta nada. Às vezes fico três dias sem dormir”, explica.

Para Noeli a filha já sabia que iria morrer e se despediu ao copiar um texto e publicá-lo em sua página em uma rede social. “No dia 5 ela deixou uns dizeres no Orkut dizendo que a morte não é nada. Uma coleguinha dela que copiou e me deu. Ela estava se despedindo. Sou católica, mas sinto a presença dela aqui muito forte”, afirma.

Tênis novo

A certeza de que Mariana havia morrido aconteceu ainda no pátio da escola, quando o irmão mais velho da menina reconheceu o tênis que ela estava usando. “Eu tinha comprado um All Star para ela usar numa festa de 15 anos no sábado seguinte e nesse dia ela me pediu para ir com o tênis para a escola. Eu não queria deixar, mas ela insistiu e acabei permitindo. Quando meu filho chegou ele viu e soube que era ela. Graças a Deus eu não vi nada”, diz Noeli, que chegou ainda a receber uma ligação da filha quando estava num ponto de ônibus esperando uma condução para ir a Madureira. “O telefone tocou, eram 8h15, atendi, apareceu o nome dela, mas ela não disse nada”, lembra.

Minutos depois Noeli ouviu rumores de que alguém havia entrado na Tasso e matado várias crianças. Nesse momento ela recebeu a ligação de seu irmão avisando que um homem entrara na escola atirando, que haviam encontrado o caçula, Eduardo, mas não haviam achado Mariana.

“Ela não quer me ver chorando”

Aos 13 anos Mariana já tinha planos para a vida adulta. Queria ser modelo, viajar para a Europa, se casar, se formar. Noeli e os filhos têm recebido atendimento psicológico desde o ocorrido. “Minha vida virou de cabeça para baixo, não tenho mais vontade de nada. Minha mãe fala ‘Sua filha era tão vaidosa, não ia gostar de te ver assim’. Eu sonhei com ela. No sonho ela dizia ‘Para de chorar mãe, a minha roupa está toda molhada’”, conta.

“Eu prometi para a minha filha que não ia chorar mais. Ela não quer me ver chorando de jeito nenhum. Converso com ela todo dia quando falo com as minhas plantinhas porque ela adorava planta. Mando flores para ela por pensamento”, conta Noeli, que reconhece na tragédia um trauma familiar. “Eu e minha mãe a criamos, me separei do pai dela quando a Thayane tinha 1 ano, então era como se minha mãe também fosse mãe dela.

Todo mundo se acabou com isso. Se eu disser a você que tenho um lar estou mentindo”, diz, e acrescenta: “Tem dia que não levanto da cama. Já fiquei quatro dias na cama e veio assistente social para me levantar”.

Noeli assinou um acordo com a Prefeitura e aceitou receber uma indenização (o valor não pode ser revelado). Entretanto, ela afirma que mal mexeu no dinheiro. “Eu tinha um namorado de seis anos, mas acabamos porque ele não teve paciência comigo. Recebi a indenização e levei um mês para mexer. Comprei uns móveis para a casa que ficou pronta e mais nada. Não tem graça nenhuma viver mais”, diz.

Este conteúdo foi útil para você?

Sua avaliação é importante para entregarmos a melhor notícia

Siga-nos

Mais do Guiame

O Guiame utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência acordo com a nossa Politica de privacidade e, ao continuar navegando você concorda com essas condições