Violência, tráfico e milícias marcam retorno do Bope aos livros e cinemas

Violência, tráfico e milícias marcam retorno do Bope aos livros e cinemas

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:11

Nesta sexta-feira (08), "Tropa de Elite 2" estreia nos cinemas . Contando o que aconteceu com o Capitão Nascimento, 15 anos depois do primeiro filme, promete tocar em outro ponto delicado. Além do tráfico, as milícias são o tema desta continuação.

Assim como aconteceu no primeiro filme, Rodrigo Pimentel ajudou a escrever o roteiro. Com isso nasceu "Elite da Tropa 2" , sequência do livro "Elite da Tropa" . Pimentel é um ex-policial que, junto com o companheiro André Batista e o antropólogo Luiz Eduardo Soares, revelou os bastidores das operações do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais).

O delegado Cláudio Ferraz lembrou ao policial que ele deixou de lado outro sintoma da violência carioca. Criadas para ocupar o lugar da polícia dentro dos morros, as milícias cresceram em poder. Estes grupos armados chegam a extrapolar o círculo de atuação e ganham importância política, elegendo candidatos.

A violência e a realidade das situações continuam retratadas fielmente, tanto no livro quanto no filme. Os personagens são sacrificados sem piedade, desde que a história permita.

Leia abaixo um trecho em que o Bope mata um traficante procurado:

A morte de Tomate

O morro da Aroeira, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, faz fronteira com São Tomé, outra favela importante na economia do tráfico e do fluxo de armas. O Bope fez dezenas de operações na área ao longo daquele ano. Em praticamente todas eu estava presente. Muitas vezes comandando a tropa. Vivi ali duas situações extremas, de sentidos muito diferentes e consequências opostas. Uma fez de mim um capitão vitorioso; a outra, um vilão. Para falar a verdade, talvez tenha acontecido o contrário. Pelo menos de um certo do ponto de vista - a paisagem vista da laje? -, a primeira história poderia ser lembrada com orgulho, mas um orgulho cheio de sangue. Na segunda, em que fiz o papel de vilão - segundo a perspectiva dos senhores do bem e do mal, deuses dos carimbos, donos da verdade -, na realidade eu era o herói. Houve também uma terceira aventura que não sei se devo contar. Vou pensar a respeito. Quando terminar de descrever as duas primeiras eu decido. Foi um caso delicado. Não gostaria de criar problema depois de tanto tempo, desfazendo o que me custou tanto fazer. De fato, se na primeira situação senti o gosto amargo do triunfo e, na segunda, o doce sabor da derrota, na terceira não sei até hoje de que lado estava o certo, de que lado estava o errado.

Subi devagarinho o plano inclinado na lateral de um largo platô para atingir a plataforma, de onde eu teria um amplo controle visual da favela. A posição me daria uma visão de 360 graus. Sargento Tenório veio comigo, carregando o fuzil G3-SG1, com a excelente luneta Leopoldi que aproximava seis vezes a imagem natural. O G3-SG1 acertava um alvo a 60 metros com precisão e se fixava em um bipé suficientemente firme. Tenório não era o sniper do grupo, mas era fiel, corajoso e disciplinado. Pau para toda obra.   Pisei nas pedras e nos galhos caídos com muito cuidado para não fazer barulho. Não tinha a menor ideia sobre onde estariam os traficantes. Éramos 16 homens. Os oito da segunda equipe mandei entrarem pelo morro de São Tomé. Eu e os sete da primeira equipe viemos diretamente para a Aroeira, margeando a via principal. Escolhi a frente de um beco e algumas lajes como pontos estratégicos. Distribuí meu grupo pelos pontos. Os movimentos foram conduzidos com muita atenção e cautela. Os traficantes da Tijuca já conheciam bastante bem as técnicas do Bope. Tinham aprendido que não vale a pena nos enfrentar. A única saída para eles era reconhecer sua inferioridade, evitar o confronto e reagir só na covardia, armando alguma cilada contra nós. Por isso eu sabia que não era inteligente confiar no silêncio e na calma aparente. Pelo contrário. A mansidão era sinal preocupante de que nossos inimigos estavam nos observando, à espera de algum tropeço. Qualquer erro podia ser fatal. Não há nada pior para um soldado em guerra do que a autoconfiança. Quer dizer, autoconfiança excessiva. Aquela que beira a soberba. Como garante a sabedoria popular: só morre afogado quem sabe nadar.

Cheguei ao plateau e me ajoelhei. Explorei o lugar, lentamente, caminhando abaixado, enquanto Tenório montava os pés do fuzil. O capim-limão crescido subia pela encosta e produzia uma espécie de barricada verde na margem dianteira da plataforma. Não era preciso ficar de joelhos, mas tampouco seria prudente adotar a postura normal. A vegetação não era tão alta assim. De todo modo, a noite estava escura. Seu manto negro nos protegia. Tenório, além de religioso, era metido a poeta. Dizia coisas desse tipo. Eu não me incomodava, desde que ele mantivesse os pés na terra e os olhos bem abertos.

Não precisei nem de um minuto para matar a charada. Fantástico. Isso sim era um presente dos céus. Bem debaixo do meu nariz, a uns cinquenta metros, sob uma amendoeira frondosa, quatro traficantes conversavam. Olhei pelo binóculo, mas não tive certeza se o Tomate estava entre eles. Tomate era o dono do morro. O chefe do tráfico. Meu alvo naquela incursão e em tantas anteriores, frustradas. Sem pensar duas vezes, deixei meu corpo deslizar de costas pelo declive que me separava dos vagabundos e sobre o qual se erguia o plateau.

Estanquei um metro e meio abaixo de Tenório, encarando o céu, deitado, o binóculo no peito. Em silêncio, elevei o binóculo à altura dos olhos e, movimentando uns trinta centímetros a cabeça para cima, estudei a cena. Lá estava Tomate. Não havia mais nenhum dúvida. Conhecia aquela cara das fotos que o Bope recebia da P2 e da polícia civil. Não tinha erro. Abaixei a cabeça, voltei a apoiar o binóculo no peito e sussurrei, no meio da relva alta, para Tenório.

- O cara de short vermelho é o Tomate.

Dei um tempo ao sargento e inalei o cheiro do mato à minha volta. O capim cobria parcialmente meu corpo. Levantei de novo a cabeça apenas o suficiente para observar os movimentos do grupo. Deitei a cabeça e tentei relaxar - como se fosse possível relaxar a cinquenta metros do inimigo, protegido só pela noite e pelo leve cobertor vegetal. Não sei exatamente quantos minutos se passaram. O que eu sei é que nunca vou esquecer o que senti quando me dei conta de que o dia amanhecia. Amanhecia numa velocidade irreal. Era quase como se a natureza tivesse acendido a luz, subitamente, apertando o interruptor cósmico. Meu corpo soube antes de minha consciência. Talvez um segundo. Mas garanto que soube antes. Sei disso porque recebi uma carga extra de adrenalina, bombeada direto no estômago, e o conceito claridade, luz, dia, sei lá, o conceito que dava sentido ao fenômeno veio em seguida. Não seria exagero dizer que o conceito foi transportado até a consciência pelos jatos sucessivos de adrenalina que o metabolismo bombeava em ritmo frenético. Não estou fazendo diagnóstico médico. Descrevo impressões e sentimentos.

Com a luz vieram o perigo e a lucidez. O medo também - por que mentir?

- E aí, Tenório? Porra.

- O cara de short vermelho foi para o outro lado da amendoeira. Estou esperando ele voltar para o lado de cá.

Eu disse baixinho mais algum palavrão, mas duvido que meu subordinado tenha ouvido. Fui obrigado a redobrar os cuidados. Parei de me mexer e de alçar a cabeça. A claridade trouxe os bandidos para perto. Uma coisa são cinquenta metros no meio da madrugada escura. Outra, ao amanhecer.

Suspendi um pouco o pescoço e vi que o grupo olhava em nossa direção. Olhava fixamente. Em alerta. Teriam visto o fuzil, mesmo camuflado? Temi que meu corpo pudesse ser percebido na forma de mancha na relva.

Um instante depois os vagabundos começaram a atirar. O coração socava mais forte. Logo deduzi que não éramos nós os alvos. Ou eles nos teriam acertado. Atiravam para a área à nossa esquerda, de onde viemos. Felizmente, meus homens eram disciplinados e cumpriam ordens. E eram preparados tecnicamente. Sabiam que quem atira a esmo é traficante e polícia convencional. Só os despreparados atiram aleatoriamente. As consequências a gente conhece: vítimas inocentes, balas perdidas e baixa eficiência. Se minha tropa respondesse aos tiros, revelaria sua posição, que permanecia ignorada pelos criminosos. Era esse nosso trunfo. Se o grupo do Tomate não tinha identificado nossa presença, por que atirava? Muito simples: àquela hora, cinco da manhã, o movimento da favela em um dia normal já teria começado. A partir das cinco os trabalhadores descem para o trabalho. Acontece que, naquele dia, ninguém descia. Por quê? Por que a imobilidade? Claro que era artificial. Evidente que estava sendo provocada por algum fator externo à vida da comunidade. A conclusão era óbvia. Alguma coisa estranha estava ocorrendo no morro. Nós éramos essa coisa estranha.

A explicação para o ataque sem alvo dos traficantes me acalmou por alguns segundos, mas não era motivo para tranquilizar quem estava deitado de costas na terra na iminência de virar foco da mira de armas inimigas. Eles continuavam estranhando o silêncio, a imobilidade. Percebi com um leve alçar do pescoço que davam alguns passos cautelosos em nossa direção, os fuzis já nas mãos.

Eu não queria transmitir insegurança ao Tenório. Ele não era experiente. Não era um sniper. Tinha tudo para tremer.

Usei a voz mais calma disponível no meu repertório:

- Consegue ver?

Tenório apertava o olho direito na luneta.

- Achou?

Ele finalmente respondeu:

- Está no retículo.

Retículo é aquela cruzinha que focaliza o alvo e calcula para o sniper a trajetória do tiro. Se eu mandasse ele atirar e ele errasse, eu estaria liquidado. Não foi bem essa a palavra que me veio à mente. Na hora falei fodido. Ou melhor, pensei. O jeito era dividir com Tenório a decisão. Eu só daria a ordem se ele estivesse se sentindo seguro.

Perguntei se ele achava que poderia fazer o tiro.

- Positivo, capitão.

- De short vermelho?

- De short vermelho.

- Dá pra fazer?

- Positivo. Está bem no retículo.

- Então faz.

O bando dispersou no instante em que Tomate foi atingido. Cada um correu em uma direção. A surpresa e o choque, o eco do estampido no relevo sinuoso do morro, tudo isso misturado confundiu a bússola dos traficantes: fugindo, buscando abrigo, atiravam sem norte. A quantidade de sangue ao redor de Tomate formava um círculo cujo diâmetro não cessava de crescer. Não sei o que fiz para ficar de pé tão rápido. Quando dei por mim estava acelerado, descendo, a pistola apontada para o dono do morro, que ameaçava atirar mas não conseguia manter o equilíbrio nem fixar a mira. Desorientado, prestes a tombar, ferido de morte, sangrando feito um porco, Tomate movia o braço direito com o fuzil em todas as direções, os joelhos dobrados. Parecia uma dança bizarra. Antes que ele me acertasse ou atingisse alguém, disparei minha pistola e ele tombou. Entretanto, não morreu logo. A agonia se prolongou. Vivi anos em guerra e não me lembro de ter visto sangue jorrando feito petróleo daquele jeito. Ele era gordo e os jatos faziam barulho. Um chiado sinistro. Um balão desinflando. Não digo isso para fazer graça. Não é engraçado. Na verdade, é triste, repugnante, ruim relembrar. E foi horrível a cena quando eu estava lá, debaixo da amendoeira, ordenando a meus homens que avançassem.

Tomate era meu troféu. A missão era matá-lo. Dezenas de vezes muitos de nós tentamos em vão. O homem era o diabo. Mesmo assim, vitorioso, acompanhando sua passagem borbulhante e penosa para o inferno, eu não me sentia feliz nem gratificado. Os soldados comemoraram, meu superior me fez um elogio público, o Bope foi celebrado em prosa e verso por mais aquela conquista, mas eu me sentia oco. Vazio como a carcaça ressecada do dono do morro.

Um fato envenenou minha vaidade e o sentimento de realização. Quando parei diante de Tomate agonizante - enquanto contemplava a vida em fuga, o sangue revirando o corpo pelo avesso -, uma criança de cima de uma laje próxima gritou. Não gosto de recordar o grito e a voz da criança, mas a memória tem autonomia e goza do direito de ir e vir. O que fazer? Ela gritava "meu pai" e me chamava de assassino.     Postado por: Guilherme Pilão

Nesta sexta-feira (08), "Tropa de Elite 2" estreia nos cinemas . Contando o que aconteceu com o Capitão Nascimento, 15 anos depois do primeiro filme, promete tocar em outro ponto delicado. Além do tráfico, as milícias são o tema desta continuação.

Assim como aconteceu no primeiro filme, Rodrigo Pimentel ajudou a escrever o roteiro. Com isso nasceu "Elite da Tropa 2" , sequência do livro "Elite da Tropa" . Pimentel é um ex-policial que, junto com o companheiro André Batista e o antropólogo Luiz Eduardo Soares, revelou os bastidores das operações do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais).

O delegado Cláudio Ferraz lembrou ao policial que ele deixou de lado outro sintoma da violência carioca. Criadas para ocupar o lugar da polícia dentro dos morros, as milícias cresceram em poder. Estes grupos armados chegam a extrapolar o círculo de atuação e ganham importância política, elegendo candidatos.

A violência e a realidade das situações continuam retratadas fielmente, tanto no livro quanto no filme. Os personagens são sacrificados sem piedade, desde que a história permita.

Leia abaixo um trecho em que o Bope mata um traficante procurado:

A morte de Tomate

O morro da Aroeira, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, faz fronteira com São Tomé, outra favela importante na economia do tráfico e do fluxo de armas. O Bope fez dezenas de operações na área ao longo daquele ano. Em praticamente todas eu estava presente. Muitas vezes comandando a tropa. Vivi ali duas situações extremas, de sentidos muito diferentes e consequências opostas. Uma fez de mim um capitão vitorioso; a outra, um vilão. Para falar a verdade, talvez tenha acontecido o contrário. Pelo menos de um certo do ponto de vista - a paisagem vista da laje? -, a primeira história poderia ser lembrada com orgulho, mas um orgulho cheio de sangue. Na segunda, em que fiz o papel de vilão - segundo a perspectiva dos senhores do bem e do mal, deuses dos carimbos, donos da verdade -, na realidade eu era o herói. Houve também uma terceira aventura que não sei se devo contar. Vou pensar a respeito. Quando terminar de descrever as duas primeiras eu decido. Foi um caso delicado. Não gostaria de criar problema depois de tanto tempo, desfazendo o que me custou tanto fazer. De fato, se na primeira situação senti o gosto amargo do triunfo e, na segunda, o doce sabor da derrota, na terceira não sei até hoje de que lado estava o certo, de que lado estava o errado.

Subi devagarinho o plano inclinado na lateral de um largo platô para atingir a plataforma, de onde eu teria um amplo controle visual da favela. A posição me daria uma visão de 360 graus. Sargento Tenório veio comigo, carregando o fuzil G3-SG1, com a excelente luneta Leopoldi que aproximava seis vezes a imagem natural. O G3-SG1 acertava um alvo a 60 metros com precisão e se fixava em um bipé suficientemente firme. Tenório não era o sniper do grupo, mas era fiel, corajoso e disciplinado. Pau para toda obra.   Pisei nas pedras e nos galhos caídos com muito cuidado para não fazer barulho. Não tinha a menor ideia sobre onde estariam os traficantes. Éramos 16 homens. Os oito da segunda equipe mandei entrarem pelo morro de São Tomé. Eu e os sete da primeira equipe viemos diretamente para a Aroeira, margeando a via principal. Escolhi a frente de um beco e algumas lajes como pontos estratégicos. Distribuí meu grupo pelos pontos. Os movimentos foram conduzidos com muita atenção e cautela. Os traficantes da Tijuca já conheciam bastante bem as técnicas do Bope. Tinham aprendido que não vale a pena nos enfrentar. A única saída para eles era reconhecer sua inferioridade, evitar o confronto e reagir só na covardia, armando alguma cilada contra nós. Por isso eu sabia que não era inteligente confiar no silêncio e na calma aparente. Pelo contrário. A mansidão era sinal preocupante de que nossos inimigos estavam nos observando, à espera de algum tropeço. Qualquer erro podia ser fatal. Não há nada pior para um soldado em guerra do que a autoconfiança. Quer dizer, autoconfiança excessiva. Aquela que beira a soberba. Como garante a sabedoria popular: só morre afogado quem sabe nadar.

Cheguei ao plateau e me ajoelhei. Explorei o lugar, lentamente, caminhando abaixado, enquanto Tenório montava os pés do fuzil. O capim-limão crescido subia pela encosta e produzia uma espécie de barricada verde na margem dianteira da plataforma. Não era preciso ficar de joelhos, mas tampouco seria prudente adotar a postura normal. A vegetação não era tão alta assim. De todo modo, a noite estava escura. Seu manto negro nos protegia. Tenório, além de religioso, era metido a poeta. Dizia coisas desse tipo. Eu não me incomodava, desde que ele mantivesse os pés na terra e os olhos bem abertos.

Não precisei nem de um minuto para matar a charada. Fantástico. Isso sim era um presente dos céus. Bem debaixo do meu nariz, a uns cinquenta metros, sob uma amendoeira frondosa, quatro traficantes conversavam. Olhei pelo binóculo, mas não tive certeza se o Tomate estava entre eles. Tomate era o dono do morro. O chefe do tráfico. Meu alvo naquela incursão e em tantas anteriores, frustradas. Sem pensar duas vezes, deixei meu corpo deslizar de costas pelo declive que me separava dos vagabundos e sobre o qual se erguia o plateau.

Estanquei um metro e meio abaixo de Tenório, encarando o céu, deitado, o binóculo no peito. Em silêncio, elevei o binóculo à altura dos olhos e, movimentando uns trinta centímetros a cabeça para cima, estudei a cena. Lá estava Tomate. Não havia mais nenhum dúvida. Conhecia aquela cara das fotos que o Bope recebia da P2 e da polícia civil. Não tinha erro. Abaixei a cabeça, voltei a apoiar o binóculo no peito e sussurrei, no meio da relva alta, para Tenório.

- O cara de short vermelho é o Tomate.

Dei um tempo ao sargento e inalei o cheiro do mato à minha volta. O capim cobria parcialmente meu corpo. Levantei de novo a cabeça apenas o suficiente para observar os movimentos do grupo. Deitei a cabeça e tentei relaxar - como se fosse possível relaxar a cinquenta metros do inimigo, protegido só pela noite e pelo leve cobertor vegetal. Não sei exatamente quantos minutos se passaram. O que eu sei é que nunca vou esquecer o que senti quando me dei conta de que o dia amanhecia. Amanhecia numa velocidade irreal. Era quase como se a natureza tivesse acendido a luz, subitamente, apertando o interruptor cósmico. Meu corpo soube antes de minha consciência. Talvez um segundo. Mas garanto que soube antes. Sei disso porque recebi uma carga extra de adrenalina, bombeada direto no estômago, e o conceito claridade, luz, dia, sei lá, o conceito que dava sentido ao fenômeno veio em seguida. Não seria exagero dizer que o conceito foi transportado até a consciência pelos jatos sucessivos de adrenalina que o metabolismo bombeava em ritmo frenético. Não estou fazendo diagnóstico médico. Descrevo impressões e sentimentos.

Com a luz vieram o perigo e a lucidez. O medo também - por que mentir?

- E aí, Tenório? Porra.

- O cara de short vermelho foi para o outro lado da amendoeira. Estou esperando ele voltar para o lado de cá.

Eu disse baixinho mais algum palavrão, mas duvido que meu subordinado tenha ouvido. Fui obrigado a redobrar os cuidados. Parei de me mexer e de alçar a cabeça. A claridade trouxe os bandidos para perto. Uma coisa são cinquenta metros no meio da madrugada escura. Outra, ao amanhecer.

Suspendi um pouco o pescoço e vi que o grupo olhava em nossa direção. Olhava fixamente. Em alerta. Teriam visto o fuzil, mesmo camuflado? Temi que meu corpo pudesse ser percebido na forma de mancha na relva.

Um instante depois os vagabundos começaram a atirar. O coração socava mais forte. Logo deduzi que não éramos nós os alvos. Ou eles nos teriam acertado. Atiravam para a área à nossa esquerda, de onde viemos. Felizmente, meus homens eram disciplinados e cumpriam ordens. E eram preparados tecnicamente. Sabiam que quem atira a esmo é traficante e polícia convencional. Só os despreparados atiram aleatoriamente. As consequências a gente conhece: vítimas inocentes, balas perdidas e baixa eficiência. Se minha tropa respondesse aos tiros, revelaria sua posição, que permanecia ignorada pelos criminosos. Era esse nosso trunfo. Se o grupo do Tomate não tinha identificado nossa presença, por que atirava? Muito simples: àquela hora, cinco da manhã, o movimento da favela em um dia normal já teria começado. A partir das cinco os trabalhadores descem para o trabalho. Acontece que, naquele dia, ninguém descia. Por quê? Por que a imobilidade? Claro que era artificial. Evidente que estava sendo provocada por algum fator externo à vida da comunidade. A conclusão era óbvia. Alguma coisa estranha estava ocorrendo no morro. Nós éramos essa coisa estranha.

A explicação para o ataque sem alvo dos traficantes me acalmou por alguns segundos, mas não era motivo para tranquilizar quem estava deitado de costas na terra na iminência de virar foco da mira de armas inimigas. Eles continuavam estranhando o silêncio, a imobilidade. Percebi com um leve alçar do pescoço que davam alguns passos cautelosos em nossa direção, os fuzis já nas mãos.

Eu não queria transmitir insegurança ao Tenório. Ele não era experiente. Não era um sniper. Tinha tudo para tremer.

Usei a voz mais calma disponível no meu repertório:

- Consegue ver?

Tenório apertava o olho direito na luneta.

- Achou?

Ele finalmente respondeu:

- Está no retículo.

Retículo é aquela cruzinha que focaliza o alvo e calcula para o sniper a trajetória do tiro. Se eu mandasse ele atirar e ele errasse, eu estaria liquidado. Não foi bem essa a palavra que me veio à mente. Na hora falei fodido. Ou melhor, pensei. O jeito era dividir com Tenório a decisão. Eu só daria a ordem se ele estivesse se sentindo seguro.

Perguntei se ele achava que poderia fazer o tiro.

- Positivo, capitão.

- De short vermelho?

- De short vermelho.

- Dá pra fazer?

- Positivo. Está bem no retículo.

- Então faz.

O bando dispersou no instante em que Tomate foi atingido. Cada um correu em uma direção. A surpresa e o choque, o eco do estampido no relevo sinuoso do morro, tudo isso misturado confundiu a bússola dos traficantes: fugindo, buscando abrigo, atiravam sem norte. A quantidade de sangue ao redor de Tomate formava um círculo cujo diâmetro não cessava de crescer. Não sei o que fiz para ficar de pé tão rápido. Quando dei por mim estava acelerado, descendo, a pistola apontada para o dono do morro, que ameaçava atirar mas não conseguia manter o equilíbrio nem fixar a mira. Desorientado, prestes a tombar, ferido de morte, sangrando feito um porco, Tomate movia o braço direito com o fuzil em todas as direções, os joelhos dobrados. Parecia uma dança bizarra. Antes que ele me acertasse ou atingisse alguém, disparei minha pistola e ele tombou. Entretanto, não morreu logo. A agonia se prolongou. Vivi anos em guerra e não me lembro de ter visto sangue jorrando feito petróleo daquele jeito. Ele era gordo e os jatos faziam barulho. Um chiado sinistro. Um balão desinflando. Não digo isso para fazer graça. Não é engraçado. Na verdade, é triste, repugnante, ruim relembrar. E foi horrível a cena quando eu estava lá, debaixo da amendoeira, ordenando a meus homens que avançassem.

Tomate era meu troféu. A missão era matá-lo. Dezenas de vezes muitos de nós tentamos em vão. O homem era o diabo. Mesmo assim, vitorioso, acompanhando sua passagem borbulhante e penosa para o inferno, eu não me sentia feliz nem gratificado. Os soldados comemoraram, meu superior me fez um elogio público, o Bope foi celebrado em prosa e verso por mais aquela conquista, mas eu me sentia oco. Vazio como a carcaça ressecada do dono do morro.

Um fato envenenou minha vaidade e o sentimento de realização. Quando parei diante de Tomate agonizante - enquanto contemplava a vida em fuga, o sangue revirando o corpo pelo avesso -, uma criança de cima de uma laje próxima gritou. Não gosto de recordar o grito e a voz da criança, mas a memória tem autonomia e goza do direito de ir e vir. O que fazer? Ela gritava "meu pai" e me chamava de assassino.     Postado por: Guilherme Pilão

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