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Mais espirituais que religiosos

Mais espirituais que religiosos

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:25

Antonio Carlos Ribeiro

A crise religiosa se aprofunda em nossas sociedades, nas diversas igrejas e religiões, com impacto visível nas expressões culturais e impactos na vida institucional das igrejas cristãs. Nas últimas décadas, o debate no mundo ocidental evoluiu do conflito entre protestantes e católicos, passando pela tensão entre denominacionalismo e ecumenismo e, recentemente, como postulado entre vida religiosa e a espiritual, com a substituição da pertença doutrinária a um grupo ou à expressão de uma espiritualidade.

Essas mudanças se expressam através de rupturas com movimentos religiosos tradicionais, criação de novos grupos religiosos ou de simples comunidades, cuja ligação é mais afetiva, fraternal e comunitária, e menos doutrinária, confessional e eclesial. As comunidades religiosas surgidas desse processo são institucionalmente mais leves, por vezes sem estrutura formal e tendo nas relações afetivas a melhor expressão de sua fé.

Dos grupos das comunidades cristãs tradicionais, os jovens formam o grupo em que conflitos, rupturas e novos acordos talvez melhor se mostrem. Com variações em relação à percepção e enfrentamento consciente da crise, as famílias - ligadas às comunidades tradicionais - buscam explicações para os sintomas, expressos no comportamento da juventude.

Uma pesquisa publicada no jornal estadunidense USA Today (28/04/2010), refletindo a visão sobre o cristianismo protestante tradicional daquele país, constata que a maior parte dos jovens de hoje - com idade entre 18 e 29 anos de idade - não ora, não cultua e não lê a bíblia. Thom Rainer, presidente da LifeWay Christian Resources, usa uma linguagem de mercado para mostrar a situação ao afirmar que se a tendência continuar "a geração do milênio verá igrejas fechando rapidamente como as concessionárias da GM".

A pesquisa com os jovens mostrou que 72% dizem que são "muito mais espirituais do que religiosos", destacando o fato que as pessoas nessa faixa etária se mostram "menos religiosas, mas não necessariamente "mais secularizadas'". As explicações de Rainer mostram traços de expectativas conservadoras, ao afirmar que os 65% dos jovens que se dizem cristãos balançam entre "cristãos piegas ou cristãos apenas de nome". E também no seu esforço de enquadramento: "A maioria é apenas indiferente. Quanto mais precisamente você tentar medir o seu cristianismo, menos você irá encontrá-lo comprometido com a fé".

Ao constatar que 65% nunca ou raramente ora com outras pessoas, 38% quase nunca ora sozinha, 65% dificilmente frequenta cultos e 67% não lê a Bíblia ou literatura religiosa, ele parece agarrar-se às expectativas estruturais das quais a comunidade de fé tradicional jamais se desprendeu. Essas constatações da comunidade são transformadas num discurso que passa da cobrança à exclusão, sem que tenha refletido sobre o fato de que na atualidade ela já não tem mais a importância que tinha décadas atrás.

O discurso ressentido da comunidade - seja a tradicional, a associação religiosa ou a cúpula da instituição - não demove o jovem de sua busca e nem o dissuade da insatisfação em relação ao que lhe é oferecido. O discurso religioso se torna defensivo da identidade religiosa do grupo, procurando descaracterizar o novo comportamento. Entretanto, Rainer se diz incentivado por cerca de 15% que parecem estar "profundamente comprometidos" com estudo, oração, adoração e ação.

Essa falta de causas com as quais os jovens estariam dispostos a se envolver tem diversas explicações. Mas provavelmente a interligação das diversas frustrações com a vida religiosa, o engessamento de um modelo eclesial, a atuação pastoral e o papel da instituição criam dificuldades crescentes para quem tem melhor formação e rejeita o uso ideológico da religião e da fé, seja ela de traço simplesmente militante ou propriamente terrorista, em nome do enfrentamento entre os mundos ocidental e oriental. Outra situação é mostrarem um rosto jovial como atestado de genuinidade, legitimidade e atualidade que instituições religiosas gostam de fazer.

Igrejas e religiões aprimoraram técnicas de uso ideológico da imagem dos jovens - com pano de fundo moderno e digital ou pompa barroca de proximidade com líderes políticos e governos - que os meios de comunicação expandem para criar um simulacro de poder, frente ao qual os jovens estão reagindo. As aparições de líderes religiosos com a juventude de grupos carismáticos tradicionais ao mesmo tempo em que anunciam uma moral sexual conservadora mostram mais do que disfarçam as contradições.

A maior espiritualidade que religiosidade, cobrada pelos jovens, não é circunstancial, nem será aplacada com religiosos cantores e outros espetáculos, e nem será resolvida de forma cosmética. Não é um problema da epiderme das sociedades, mas bastante enraizado nas culturas e numa conjuntura sócio-econômico-política, às quais serve um discurso religioso domesticador, que tem mais política eclesiástica que teologia pastoral e cujo objetivo é mais autopreservação institucional, societária e cultural ocidental do que o anúncio da salvação e os sinais do Reino, que invariavelmente o acompanham.

Há alguns anos o teólogo Hans Küng, em Razões porque ainda sou cristão, alertava sem provavelmente ter sido ouvido: "não se trai os sonhos da juventude". Talvez por isso os jovens estejam cansados de pedir, dialogar, estabelecer trocas reais e insistir, ou serem religiosos, e agora prefiram ser espirituais. Isso lhes permite nutrir e se empenhar por seus sonhos, sem confiá-los à instituição, evitando que possam ser frustrados. Mais uma vez.

Antonio Carlos Ribeiro é mestre e doutor em Teologia pela PUC-Rio, bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Gama Filho e em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul. É jornalista e pastor voluntário na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil.

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