Os Konkombas e o processo de contextualização da mensagem bíblica - Parte 1

Os Konkombas e o processo de contextualização da mensagem bíblica - Parte 1

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:23

Uma breve introdução

Os Konkombas derivam de uma família étnica que habita o nordeste de Gana, noroeste africano. Receberam a denominação genérica Konkombas na década de 30 a partir de um senso estatístico patrocinado pelo governo ganense, apesar de constituirem etnias diferenciadas, linguística e culturalmente. O termo Konkomba é desconhecido por eles.  As quatro principais etnias que formam esta família são os Bichaboln, Bimonkpeln, Bisachun e Bikum que, juntos, somam mais de 300.000 pessoas entre Gana e o Togo.

Observando as 4 etnias conhecidas como Konkombas podemos perceber que de forma geral são patrilineares, polígamos, animistas, frequentemente fetichistas, com forte ligação totêmica com animais terrestres, especialmente entre os Bimonkpeln. A organização social institui os clãs como células centrais e os anciãos como representantes de cada célula, sendo um entre eles apontado como ubor, chefe da comunidade ou aldeia. Não há chefes que governem mais que uma aldeia, configurando assim etnias acéfalas e a dispersão é fomentada pela necessidade de cultivo do inhame em uma área onde a terra não permite plantações sequenciais. Para cada plantio anual reserva-se 7 anos de descanso da terra. Cada etnia e clã Konkomba é associado a um totem - objeto, planta ou animal - que representa aquele grupo e demanda para si certos tipos específicos de sacrifícios. Os três mais comuns são ''begangmanm'' - o leopardo - ''bwawintieb'' - o crocodilo - e ''bekumbwan'' - a hiena.

Há diversas categorias de funções sociais como sábios, conselheiros e ouvintes (apenas ouvem os problemas) bem como categorias espirituais bem demarcadas como curandeiros, sonhadores, feiticeiros e bruxos, sendo que esta última é observada apenas entre os Bikum. O medo da morte é o principal assunto de suas músicas e contos, e morrer em ditosa idade, com mulheres e filhos, e feitos notáveis, a aspiração de todo homem, condição para tornar-se um ancestral.

Em Gana, especialmente na capital, Acra, e em todo o sul, os Konkombas são conhecidos como sendo "Tiwoor  aanib" (povo do mato) por preferir  se isolar em regiões mais distantes. No imaginário popular são agressivos e  senhores de guerras  mas de fato são extremamente hospitaleiros e leais. Para eles a maior vergonha é mentir. O maior pecado a ganância. A maior virtude honrar os pais quando já velhos e lembrar-se deles quando se forem. Os filhos são criados por todos e não há órfãos. As células clânicas garantem sua força e organização social.

Desde 1994 estamos envolvidos no propósito de evangelizar uma destas etnias, que se autodenomina Bimonkpeln (''homens que vivem''), na região de Koni ao nordeste de Gana. Juntamente com minha esposa Rossana fomos enviados para esta parte do continente africano pela APMT (Agência Presbiteriana de Missões Transculturais) da Igreja Presbiteriana do Brasil em parceria com a A Missão de Evangelizacao Mundial - AMEM conhecida no exterior como WEC International.

A partir de 1995 presenciamos um rápido crescimento na Igreja Konkomba-Bimonkpeln. Na última reunião de presbíteros em outubro de 2000 pudemos contabilizar 17 igrejas plantadas com mais de 3.500 membros adultos, sendo tais igrejas estabelecidas nas aldeias de Koni, Nabukorá, Molan, Kadjokorá, Jimoni, Nbobo, Ipoalim, Sakoni, Bunache, Borla, Sibru, Katan, Naandigoon, Jimbo, Ketiman, Sabol e Koniuba. Em 2006 contabilizaram 23 igrejas mas sem estatística quanto ao número de membros. Até o momento pudemos treinar biblicamente 5 evangelistas (Labuer, Iagorá, Nprompir, Katal e Kimana) além de 30 presbíteros. Outros 60 líderes estão em treinamento através de cursos de vida cristã que estão sendo ministrados pelos evangelistas. No total, 87 líderes estão ativos nas diversas igrejas e ministérios, sendo apenas os 5 evangelistas sustentados pela Igreja e com tempo integral para o trabalho.

Como mencionamos antes, os Konkombas formam uma família étnica onde o alcance de uma destas etnias não pressupõe o alcance de todas. A distinção linguística e cultural faz com que se autodenominem biniil, primos. A primeira língua nesta família que recebeu o Novo Testamento foi o Lichabol (da etnia Bichaboln) traduzido pela missionária Mary Still da SIL, tendo completado recentemente toda a tradução da Bíblia. Um trabalho primoroso.

Inciamos o trabalho de análise linguística e consequente tradução do Novo Testamento em 1994, para a língua Limonkpeln. Recentemente a Missão Metodista de Gana trabalha na grafia da terceira língua da família, da etnia Bikuln.

Iniciamos o trabalho linguístico a partir da estrutura fonética, composição da gramática Limonkpeln e preparação de um pequeno dicionário. Logo após terminamos as cartilhas para alfabetização através das quais pudemos contabilizar no ano 2.000 mais de 500 adultos já alfabetizados na língua materna. Nesta altura já contávamos com alguns livros do Novo Testamento traduzidos e finalmente concluímos a tradução primária em 2002. Iniciamos então o processo de revisão, retrotradução e teste comunitário. Em Outubro de 2004 o Novo Testamento completo foi entregue à Igreja em um culto onde se ajuntaram crentes de todas as 23 igrejas da etnia, em uma grande festa.

Esta tradução foi resultado de um trabalho em equipe. Cinco irmãos Konkombas colaboraram exaustivamente durante vários anos, especialmente no processo inicial de coleta de informações e mais ao fim no teste comunitário quando todos os versos bíblicos eram apresentados sistematicamente para representantes de 3 diferentes dialetos Limonkpeln a fim de testarmos o nível de comunicação. Gostaria de destacar Balabon, que esteve comigo durante todos os 7 anos de trabalho e praticamente liderou toda a revisão do texto junto ao povo. Também Dambá que se especializou na coleta de informações linguísticas relevantes para uma melhor tradução textual. Ele é hoje o responsável pela distribuição do Novo Testamento. Também lidera o movimento de alfabetização na língua Limonkpeln.

Nosso objetivo para o trabalho entre os Konkombas, inicialmente, era o plantio de igrejas. Nossa motivação para traduzirmos o Novo Testamento teve início quando, nos primórdios da Igreja, reuníamos alguns crentes de cada aldeia evangelizada a fim de discipula-los. Seriam os futuros líderes. A cada mês, portanto, eles vinham de suas aldeias e passavam um final de semana conosco em Koni, uma aldeia central onde morávamos. Ali ensinávamos a Palavra e, por não tê-la na língua local, cada crente memorizava alguns versículos bíblicos para reproduzi-los para seu grupo ao voltar para casa. Uma mulher, Aadjo, vinha de Kadjokorá, uma das aldeias mais distantes que distava quatro dias de caminhada. Permaneceu conosco naquele fim de semana aprendendo a Palavra e memorizou, juntamente com os outros crentes, 13 versículos. Após o final de semana ela retornou para sua casa. Seriam quatro dias de viagem. Porém, após dois dias ela esqueceu-se de um dos versículos bíblicos. Decidiu então regressar imediatamente para nossa aldeia e tal foi nossa surpresa ao vê-la chegando. Ao narrar o motivo que a trouxe ela afirmou que ''a Palavra de Deus é importante demais para ficar ao longo do caminho''. Rememorizou o versículo que esquecera, descansou aquela noite e se pôs a caminhar, por mais quatro dias, para chegar à sua aldeia.

Este fato fez com que decidíssemos, imediatamente, iniciar o trabalho de tradução de maneira mais formal. Tivemos forte apoio da igreja local.

Perspectiva missionária

Dentro de uma perspectiva interna, missionária, identificamos o rápido crescimento da Igreja entre os Konkomba-Bimonkpeln, de Gana, ligado a 7 fatores essenciais.

Cobertura de oração

Observamos um número expressivo de irmãos e igrejas no Brasil que se comprometeram a interceder pelos Konkomba-Bimonkpeln desde 1993. Durante os anos de maior crescimento da Igreja na etnia, havia no Brasil um crescente interesse na intercessão pelo povo. Fora do Brasil a WEC levantou muitos intercessores especialmente durante os ultimos anos de finalização do projeto de tradução do Novo Testamento. Minha mãe, Euza Lidório, que lidera um movimento de intercessão missionária no Brasil com mais de 600 grupos que se reunem semanalmente para orar, priorizou os Konkombas durante muitos anos em seu boletim que guiava o povo para a intercessão.  Em diversas ocasiões vimos uma estreita ligação entre um súbido interesse da Igreja Brasileira em orar pelos Konkombas e uma posterior onda de aceitação do evangelho na tribo.

Estamos convictos que o movimento de oração pelo povo está intimamente ligado ao crescimento da Igreja naquele lugar.

Observação cultural

Cremos que a abordagem do povo Konkomba-Bimonkpeln a partir de uma observação cultural mais ampla proporcionou menores riscos de nominalismo e sincretismo durante a apresentação do Evangelho. Foram aplicados três métodos de avaliação cultural que denominados ‘Antropos’ (método de análise etnográfica, com certa ênfase etnológica), ''Pneumatos'' (método de análise fenomenológica) e ''Angelos'' (método de propostas para o desenvolvimento de uma teologia aplicável) os quais colaboraram de maneira vital para a elaboração de 27 pontos bíblicos que precisavam ser expostos de forma clara e culturalmente compreensível para que houvesse uma boa comunicação dos fundamentos do Evangelho.

No universo Konkomba-Bimonkpeln o religioso não é distinto do não religioso, o sagrado do secular, o espiritual do material ou o corpo da alma. O religioso está presente em toda forma de expressão de vida: trabalho, alimentação, guerras, procriação e descanso. Nascer na sociedade Konkomba-Bimonkpeln significa seguir um grupo de rituais e cerimônias que fazem parte da vida e sobrevida tribal. Não há ateus. Todos crêem nos espíritos, malignos ou a-éticos (não há bons espíritos), nos fetiches representados por montanhas, árvores, rochas ou ainda feitos por mãos humanas, nos ídolos feitos de madeira ou pedra, nos totens representados em geral por diferentes animais, em Satã - ''Kininbon'' - senhor de todos os maus espíritos, e nas almas dos ancestrais que demandam respeito e sacrifícios como forma de se evitar punição. Contrapondo este deprimente universo todos já ouviram falar em Uwumbor, um Deus antigo de épocas idas e sonhos distantes que já não mais se relaciona com o povo.

Dizem: ''Uwumbor já não deseja mais ser Deus entre a tribo'' por alguma ofensa grave registrada na cosmogonia do povo. Narram que no início dos tempos Uwumbor criou uma família que habitava uma ilha. Viviam bem e especialmente alegres porque o pacham (céu azul, visível por nós) era bem baixo e podia ser tocado se alguém subisse em uma árvore alta. Uwumbor permitiu, portanto, que o homem cortasse um pedaço do céu a cada dia pois ali havia muita carne, em abundância, para que a família se alimentasse. Durante muitos anos foram felizes e o homem subia diariamente em uma árvore alta para cortar um pedaço do pacham e trazer saborosa carne para a família. Certo dia, porém, o homem passou a pensar, no alto da árvore, como seria infeliz se aquele céu desaparecesse e não houvesse mais carne. Daí resolveu cortar pedaços enormes do céu lançando carne em grande abundância para a família. A mulher o preveniu que havia carne demais mas ele não a ouviu. Continuou cortando e, quando desceu, percebeu que havia muito mais do que poderiam comer naquele dia. No dia seguinte boa parte da carne havia apodrecido e ele percebera o mal que havia feito. Naquele momento Uwumbor chegou na ilha para conversar com a família, como ele fazia costumeiramente. Vendo, porém, a carne colhida em quantidade muito maior do que ordenara, e apodrecendo no chão, se entristeceu com o homem e o chamou de ujá-uleen (homem ganancioso) indo embora para longe, sem jamais voltar. Levou também consigo o céu, pacham, com toda sua carne e por isto é que ele pode ser visto até hoje, bem distante e ainda azul, mas inacessível.

Esta cosmogonia levou-nos a utilizar terminologicamente Uwumbor como Deus, desenvolver os elementos necessários para uma teologia bíblica de criação, pecado, queda e redenção. Junto a ela outras 12 cosmogonias e mais de 20 antropogonias ajudaram-nos a perceber o padrão de cosmovisão do povo em relação ao seu universo. Cremos que tínhamos os elementos necessários para comunicar a criação e queda descritas em Gênesis.

A observação sistematizada cultural proporcionou o ambiente para o desenvolvimento da comunicação do Evangelho de forma aplicável, em um primeiro momento, e ajudou-nos a pontuar as áreas de difícil comunicação onde o sincretismo poderia surgir.

Evangelismo abundante e intencional

Cremos que a abrangência e quantidade da evangelização é tão relevante quanto sua qualidade. Em um processo bíblico de plantio de igrejas é necessário sermos lembrados que a centralidade da Palavra define a fidelidade da Missão. Ou seja, não optaremos por mecanismos que simplesmente culminem em resultados atrativos mas sim por mecanismos fundamentados na Palavra e na visão de Deus.

Isto não elimina, porém, a necessidade de uma evangelização abundamente. A quantidade e constância da evangelização tornam-se fundamentais em um processo de plantio de igrejas. Em um campo missionário, seja culturalmente distinto ou geograficamente próximo, a abundância na evangelização deve ser uma prática intencional.

De 1993 até 2005 cremos que cerca de 100.000 Konkombas (majoritariamente da etnia Bimonkpeln, mas também Bikuln e Bisachuln) ouviram diretamente o evangelho seja pela atuação dos missionários, dos líderes Konkombas ou dos crentes em geral. A forma mais comum de evangelismo era fomentar ajuntamentos nas principais aldeias e apresentar-lhes a história de Uwumbor, Deus, a partir de Gênesis.

Sendo uma cultura com vasta cosmogonia, perfil messiânico e culturalmente tradicional, histórica, iniciamos a evangelização apresentando-lhes Deus, seu caráter e atributos. Apesar de o apresentarmos como justo, amoroso e misericordioso seu atributo mais chamativo para um povo espiritualista, totêmico e animista foi seu poder. Perguntavam várias vezes se estava bem claro na ''história de Deus'' (Bíblia) que Ele era maior que . Grumadii era o espírito a-ético mais temido e invocado na região. Na cosmovisão do povo não era digno de confiança, porém não era seguro desafiá-lo.

O evangelismo, portanto, abundante e intencional, era prática constante de aldeia em aldeia, com grandes e pequenos ajuntamentos. Cada um que se convertia juntava-se a nós para o próximo evangelismo.

Este evangelismo abundante e amplo envolvia pregações nos centros de cada aldeia em alta voz, de forma que mesmo os que não desejavam ouvir não tinham como faze-lo. Como resultado de um destes momentos converteu-se Mebá, feiticeiro de Koni e guardião de grumadi. Era ''kinyiang'', dia de descanso Konkomba, e Mebá estava sentado embaixo de uma árvore próxima à sua palhoça no limite oeste de Koni. O conhecíamos apenas como um feiticeiro que era temido pelo povo e protagonista de ''Kinyek aabauel'' - noites de sacrifícios - onde chegavam a imolar até 300 animais em uma só noite a grumadii e outros fetiches, em épocas bem especiais. Pouco contato havíamos tido com ele pessoalmente, até mesmo pelo estilo de vida arredio e isolado de um feiticeiro. Também já tínhamos ouvido a respeito do sacrifício de seu neto no tempo da sua chegada a Koni.

Ali estava ele sentado embaixo daquela árvore. Já havíamos exposto o evangelho ao seu clã e família e por duas vezes em sua palhoça, apesar dele mesmo nunca sair de seu pequeno quartinho enquanto falávamos ao restante da família. Era certo,porém, que nos ouvia e nunca nos proibiu de entrar em sua casa. Era um homem muito falante, porém estava quieto e pensativo naquele dia. Eu tomava banho na palhoça onde morávamos quando um rapaz aproximou-se e disse: ''Está acontecendo alguma coisa com Mebá''. Todos correram e uma pequena multidão logo se juntou ao seu redor. Aquele homem estava pulando, dançando e gritando. Uma pequena multidão o cercou e ele olhava para todos, se mexendo de um lado para o outro, como quem queria lhes falar algo. Eu me juntei ao grupo pensando que algo terrível teria acontecido com ele, como ser picado por uma cobra ou atacado por uma pessoa. Ao vê-lo imaginei se estaria sob alguma influência maligna.

Perguntaram-lhe: ''Mebá, o que está acontecendo?'' E ele respondeu euforicamente : ''Há algo novo em mim. Comecei a pensar e entender o que falam a respeito de Yesu Kristu. Ele é mesmo filho de Deus. Ele é mesmo mantotiib de Deus. Ele é mesmo a esperança de um dia vermos Uwumbor. Entretanto o que entendi hoje, e que era o meu único temor desde a primeira vez quando o evangelho começou a fazer sentido para mim, é que Yesu Kristu, é mais poderoso que grumadii. Não há o que temer''.

Suas palavras eram como flechas na multidão. Um feiticeiro, guardião grumadii, dizendo que o Deus da criação, Uwumbor, é mais poderoso! Uma cena inimaginável até então. Ele não fez nenhuma referência a mim, a outras pessoas ou a qualquer pregação em especial que teria ouvido. Estava tendo uma íntima experiência com Deus, e senti que o Senhor lhe retirava naquele momento todo o medo. ''Não há o que temer'', dizia ele repetidamente. A base de sua mensagem, até os dias de hoje, é que Uwumbor é mais poderoso.

Todo evangelismo, desenvolvimento histórico processual e as vezes cronológico do Evangelho a partir de Gênesis tinha como objetivo apresentar a Cristo. Os elementos fundamentais para o processo evangelístico eram:

a) Deus Criador, amoroso e maior que os espíritos;

b) O homem caído, com sua descendência, se distanciando do Criador;

c) O desejo do Criador para resgatá-lo, com um desenvolvimento de um plano universal, para todos os povos;

d) Jesus, o plano de Deus, filho de Deus e Deus, encarnado;

e) Jesus, sua morte, salvando os homens, sua ressurreição estando entre nós;

f) O Espírito Santo, enviado para estar e guiar a Igreja, está entre nós;

g) A Igreja, proposta de Deus para a comunhão e fortalecimento, para adoração bonita que alegra a Deus;

h) A Missão, responsabilidade do crente, para passar adiante o que ele sabe e experimentou;

i) A expectativa, Jesus voltará, o céu é nosso lar.

Desenvolvimento de uma identidade eclesiástica autoctone

Nosso pressuposto ao plantar igrejas é que a igreja local é a forma mais eficiente, auto-sustentável e duradoura de comunicar o evangelho dentro de um perímetro, seja um bairro, um segmento social ou uma etnia culturalmente definida pois:

a)    Gera demanda pela comunicação de um evangelho culturalmente compreensível;

b)    Estabelece localmente o Reino;

c)     Duplica o efeito missionário. Igrejas plantam igrejas.

Para que isto aconteça de forma enraizada é preciso que seja desenvolvida nesta Igreja (a partir das igrejas locais) uma identidade eclesiástica bíblica e própria, fazendo-os entender que não são apenas a reprodução de um modelo externo, mas sim o resultado da aplicação de um Evangelho supracultural e a-temporal, para todos os povos em todas as gerações, onde também estão incluidos.

Alguns valores precisam ser ensinados, biblicamente, desde o nascedouro desta Igreja.

A Igreja é a comunidade dos redimidos, foi originada por Deus e pertence a Deus (1 Co. 1:1-2); A Igreja não é uma sociedade alienante. Aqueles que foram redimidos por Cristo continuam sendo homens e mulheres, pais e filhos, plantadores e comerciantes que respiram e levam o evangelho onde estão (1 Co 6:12-20); A Igreja é uma comunidade sem fronteiras, portanto fatalmente missionária (Rm 15: 18-19); A vida da Igreja, acompanhada das Escrituras, é um grande testemunho para o mundo perdido. É necessário, portanto, que preguemos um evangelho que faça sentido tanto dentro como fora do templo (Jo 14:26; 16:13-15); A missão maior da Igreja é glorificar a Deus (1 Co. 6:20; Rm 16:25-27). Tentamos não ceder à tentação de caminharmos sós. Desde o momento em que Mebá se converteu e trouxe consigo sua família com 11 filhos iniciamos um esforço conjunto para que todo passo, fosse evangelístico ou o estudo cultural para melhor comunicação de um ensino bíblico aos novos crentes, pudesse ser dado lado a lado. Incluir os recem convertidos no processo de evangelização do próprio povo, estudo da Palavra para ensiná-la aos seus, processos de decisão para os ajuntamentos e cultos, liturgia, visita aos enfermos, resposta aos feiticeiros que nos desafiavam etc, mostrou-se uma atitude extremamente frutífera. Não é suficiente desenvolver uma eclesiologia bíblica e contextualizada. É necessário fazer isto junto ao povo e com sua participação.

Gostaria de enfatizar este ponto. Olhando para trás percebemos hoje que muitíssimos erros foram evitados, e alguns graves, porque desenvolvíamos a teologia bíblica e evangelismo junto com o povo local, os primeiros convertidos. Apesar da compreensão limitada do Evangelho, na época, a contribuição para o processo de comunicação (e discernimento do sagrado e profano na cosmovisão local) cooperou em áreas estratégicas. Lembro-me que gastei dias estudando os diversos toques de tambor utilizados na tribo a fim de compreender se algum deles era direcionado exclusivamente à invocação demoníaca, culto aos ancestrais ou nos rituais animistas de purificação. Certo dia, Mebá vendo meu esforço simplesmente comentou: ''você quer saber que toques são ruins - É simples, pergunte a uma criancinha Konkomba que ela mesmo saberá lhe mostrar''.

Envolvimento da Igreja com os conflitos sociais

A assistência médica, colaboração com educação e perfuração de poços de água limpa angariou muito mais do que a simpatia da etnia para a Igreja que nascia. Em um segundo momento a educação na língua materna também se aliou a este esforço. Estas atividades envolveram a Igreja nos conflitos sociais evitando que se transformasse em uma instituição alienada. As atividades sociais receberam bastante atenção, concentrada especialmente no trabalho de saúde (onde em média 3.000 pessoas eram tratadas a cada ano), educação (escola formal para crianças e alfabetização na língua materna para adultos) além da perfuração de poços de água dera vida e experiência confirmativa (aquilo que culturas sócio-interativas observam na tentativa de definirem se as palavras são confirmadas pelas ações). No universo Konkomba, e humano, seria impossível compreender um Cristo que ama apenas a alma e despreza o sofrimento presente e visível do corpo.

Um efeito extremamente positivo adveio desta sensibilidade social. Em um primeiro momento, quando os primeiros convertidos vinham para o Senhor Jesus, a sociedade Konkomba-Bimonkpeln esboçou excluí-los do convívio social. Alguns foram expulsos de suas casas e outros passaram a perder o direito ao rodizio de terras para o plantio do inhame. Os conflitos humanos como enfermidades, sêde e forme, porém, serviram de ponto de convergência e união. Ao tomarmos como Igreja uma iniciativa social (perfuração dos povos de água, por exemplo) nós sempre o fazíamos a partir da Igreja porém junto com a sociedade. O chefe de cada aldeia era procurado, juntamente com o concílio dos anciãos. Não raramente o feiticeiro da aldeia estava presente. E ali um grupo da Igreja expunha a necessidade humana, a possibilidade de solução, e a necessidade do trabalho conjunto. A medida que as iniciativas sociais avançavam víamos que a resistência da sociedade à Igreja era minimizada. Até mesmo a mensagem de Cristo passou a ser mais tolerada.

Lembro-me com exatidão do dia em que todos se juntaram na aldeia de Koni para testarem o poço de água recem perfurado. Havia muita expectativa e, como todos haviam participado, crentes e não crentes, era um projeto com pleno interesse comum. Enquanto a água jorrava Labuer, um dos líderes da Igreja em Koni, tomou a palavra e durante alguns minutos lhes falou sobre Jesus como a água viva para cada um. Todos gritaram alegres e talvez pela primeira vez Jesus foi apresentado publicamente sem oposição. A Igreja havia rompido a barreira da antipatia social naquela aldeia.

Envolvimento dos recem convertidos no evangelismo e testemunho

Assim que se convertiam, estes crentes eram envolvidos com algum trabalho que requeriria testemunharem. Praticávamos o rápido e integral envolvimento dos recem convertidos em ambientes onde pudessem testemunhar de seu novo nascimento. Cremos que isto os fortalecia e, em uma cultura oral, o testemunho é deveras importante em qualquer acontecimento marcante da vida. Também produzia um efeito multiplicador da pregação do Evangelho.

Voluntariado junto a um trabalho social, apoio a evangelistas, participação de cultos públicos eram algumas atividades das quais aqueles que se converteram com 24 ou 48 horas já participavam. Havia certamente o risco do desencorajamento a partir dos que, eventualmente, não permaneceriam na fé, porém no presente contexto era um número pequeno e, assim, o efeito do testemunho da sua fé era cativante e afirmador.

Kidiik foi o recem convertido que mais se destacou em seu testemunho. Ele havia desde criança sido preparado para atuar como o guardião dos fetiches familiares, uma função de destaque na religiosidade do povo. Para tal foi criado por um dos feiticeiros locais, distante de seus pais, e aprendeu toda a perícia na manipulação de elementos naturais e sobrenaturais. Tornou-se um rapaz excluído ao qual todos temiam. Era tímido, um pouco gago e franzino. Após sua conversão Kidiik passou a testemunhar de Cristo em muitos lugares e sempre que o fazia ele expunha o engano proposto pelos espíritos. Falava sobre as tecnicas ensinadas para manipulá-los e engana-los em detrimento do benefício humano. Também os ritos para produzir enfermidade ou perturbação a outras pessoas além do significado dos elementos de sacrifício, quando era exigido por grumadii, um espírito temido naquela região. Isto gerou um levante contra ele e diversas vezes foi ameaçado. Na época chegamos a pedir que ele não revelasse publicamente detalhes dos ritos praticados pelos feiticeiros. Porém, olhando hoje para trás, percebemos que esta intrepidez de Kiddik, e sua participação nos ajuntamentos evangelísticos contribuiram tremedamente para minimizar o temor que o povo tinha em relaçao aos espíritos e procurar o poder de Deus. Aquele recem convertido foi um diferencial no evangelismo entre os Konkombas nos primeiros anos e sua rápida integração em ambientes favoráveis ao testemunho foi um ganho para ele e para o avanço do evangelho.

Concentração no discipulado de líderes

Cremos que, ao avaliarmos o crescimento de uma igreja não devemos contabilizar os seus crentes locais mas sim o número daqueles que estão envolvidos em discipulado. Cremos que em um trabalho embrionário é mais relevante um ajuntamento de 6 pessoas sendo discipuladas no evangelho do que de 60 pessoas para cultos semanais.

Imediatamente à conversão dos primeiros que vieram ao Senhor Jesus em 1993 iniciamos o discipulado. Dos 5 pastores Konkomba-Bimonkpeln, 4 deles são frutos da primeira e segunda leva de discipulado.

Em média investíamos 2 anos com discipulado semanal (dois encontros por semana) com cada pessoa, de maneira formal. Informalmente estávamos sempre juntos.

Ronaldo Lidório   é pastor, teólogo, missionário e escritor. Atuou quase dez anos na África com plantio de igrejas e tradução bíblica para a língua Limonkpeln de Gana. Atualmente, lidera uma equipe missionária na Amazônia. É autor de vários livros, dentre eles ''Com a mão no arado'', ''Unafraid of the sacred forest'' e ''Restaurando o ardor missionário''.

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