Da prateleira para o fogão

Da prateleira para o fogão

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:09

Já faz algum tempo que os cadernos de culinária da vovó têm perdido espaço nas estantes para os livros de gastronomia. A gaveta da cozinha, que antes guardava aquele manuscrito de receitas de família reproduzidas a mão, deve estar ocupada agora por algum livro classudo, capa dura, com dicas de pratos extraordinários (e fáceis de fazer, claro) de algum cozinheiro badalado. Os livros de gastronomia, aliás, viraram os aliados modernos para aquele jantar que fazemos para receber os amigos ou uma visita especial. É a eles que recorremos à procura de uma receita capaz de surpreender nossos convidados. Quem é que ainda liga para a mãe ou para a avó para saber como se fazia aquele ensopado familiar quando se tem o último lançamento literário do chef do momento?

A verdade é que, além de o próprio mercado de gastronomia ter se tornado febre no mundo todo, com muita gente mais antenada naquilo que come, em que restaurante vai jantar, onde encontrar ingredientes raros etc., os livros gastronômicos também viraram tendência porque vieram preencher uma lacuna na nossa sociedade contemporânea. "Na falta de alguém em casa que realmente goste de cozinhar e que possa nos ensinar muitas coisas, como uma avó cheia de segredos de cozinha, o que temos de mais próximo são os programas de culinária da TV e os livros de gastronomia", afirma Dianne Jacob, editora americana especializada em títulos dessa área e ela mesma autora de livros.

"Acabamos encontrando nos livros as informações de que precisamos para vestir o avental e encarar o fogão", diz ela, justificando o atual aumento de títulos que chegam (e que são rapidamente consumidos, diga-se) ao mercado. Ficamos, então, rendidos aos lançamentos que enchem as prateleiras das livrarias. E que pregam, cada vez mais, que "qualquer um pode cozinhar", como diz o título do livro que inspira o ratinho Remy em Ratatouille, a fábula gastronômica da Pixar. Com um bom compêndio de receitas (e um bocado de paixão, como mostra o filme), até um roedor pode virar um bom cozinheiro. Mas não será coisa de desenho animado?

Cozinheiro em 24 horas Um rato mestre-cuca pode mesmo ser demais, mas a máxima de que a cozinha é uma zona bastante democrática e aberta é real para o celebrado chef inglês (e apresentador de TV e escritor de best-sellers) Jamie Oliver. Um de seus mais recentes livros, Revolução na Cozinha, tem como subtítulo justamente o mandamento de que "qualquer um pode aprender a cozinhar em 24 horas". Oliver, que em seus programas transmitidos pelo mundo todo busca mostrar que a destreza com facas e panelas pode ser mais simples do que imagina o aprendiz de cozinheiro, vale-se de um programa adotado pelo governo inglês durante a Segunda Guerra para justificar seus argumentos.

Com os tempos difíceis da Primeira Guerra, uma terrível escassez de alimentos tomou o país e fez com que muitas pessoas acabassem mal nutridas. Para não correr o mesmo risco durante os conflitos da Segunda Guerra, o governo criou o Ministério da Comida, que tinha como objetivo educar as pessoas sobre alimentação para que elas se mantivessem saudáveis. "Eles então trataram de mobilizar milhares de mulheres que sabiam cozinhar e depois as enviaram para todo o país para dar apoio e dicas à população. Assim, as pessoas aprenderam como usar apropriadamente seus racionamentos de comida para se alimentar e viver melhor", conta Oliver.

Com as informações passadas por esse verdadeiro exército de mulheres em um único dia, qualquer um podia se virar com o que tinha na despensa e aprender – na prática! – a cozinhar. Na falta de cozinheiras de mão cheia mandadas pelo governo para nos visitar e dividir conosco suas receitas e técnicas, Oliver trata de recrutar seus próprios leitores e de educálos a se tornarem mestres em pelo menos uma receita e passarem suas experiências na cozinha a outras pessoas, como forma de democratizar o aprendizado culinário. "O movimento de passar adiante é essencialmente uma versão atual do modo como as pessoas costumavam transmitir suas receitas através de gerações, quando nem todos se preocupavam somente em trabalhar", escreve ele

Como (não) fazer Porque aprender a cozinhar (assim como aprender a andar de bicicleta ou qualquer outra coisa na vida, aliás) fica mais fácil quando se tem alguém disposto a nos ensinar, certo? Exatamente por isso, o escritor Adam Gopnik rechaçou a avalanche de livros de receita lançados nos Estados Unidos em um artigo nas páginas da The New Yorker no fim do ano passado. "Só mesmo quando observamos é que somos capazes de aprender a fazer um prato, por mais detalhado que ele esteja escrito e explicado", escreveu. Mesmo que você siga a receita, o produto final pode não parecer em nada com a foto colocada ali na página. "A primeira coisa que um iniciante na cozinha aprende é que as palavras podem, sim, se transformar em sabores, mas a segunda é que existe um espaço entre aquilo que a regra promete e o que a comida se transforma. Afinal, como saber quando algo está fervendo de fato? Ou quando perceber se o leite vai aferventar, mas não queimar?", questiona. Chegar a uma resposta pode lhe custar a perda da receita toda.

Depois de uma série de tentativas frustradas na cozinha, a artista plástica russa Aleksandra Mir percebeu que, assim como Gopnik, várias pessoas cometem erros ao fogão e resolveu selecionar receitas malsucedidas para um livro de culinária às avessas, em um projeto que ela chamou de The How Not to Cookbook ("O livro de receitas do que não fazer", em uma tradução livre). Democraticamente, reuniu as mil primeiras receitas recebidas de pessoas do mundo todo (que vão de técnicas que saíram errado até ingredientes que não vão nada bem misturados) no livro e criou uma instalação em uma galeria de arte em Edimburgo onde as pessoas podiam consultar ou comprar mil cópias. "Perceber que não estamos sozinhos em receitas fracassadas é um consolo, além de ser divertido ler as tentativas frustradas de outras pessoas", diz

Aleksandra, fã confessa e colecionadora de livros de culinária. "Como a maioria das pessoas, adoro ler sobre comida, olhar as fotos e fantasiar sobre o que poderia fazer, mesmo que meus pratos saiam sempre pelo menos um pouco diferentes do que é proposto pelo autor", confessa ela, que está produzindo um segundo volume sobre as receitas que desandaram (e que aceita sugestões pelo email [email protected]).

Além das receitas A bem da verdade, não é só um livro que faz um bom cozinheiro. "Aprender a cozinhar, independentemente se lendo ou assistindo, só é possível quando você desempenha a função e põe mesmo a mão na massa", diz a colunista de gastronomia do The New York Times Monica Bhide. "Mas vale lembrar que existem muitos livros de gastronomia que ajudam o leitor a cumprir a missão de se sair bem em uma receita", afirma. "Muitos ensinam como cozinhar um ovo, como preparar aspargos e qual é o verdadeiro gosto do ruibarbo. Mas também há os livros que são repletos de ensaios e histórias, e não apenas repositórios de receitas."

Essa, aliás, é uma tendência no mercado editorial de gastronomia hoje. "Os leitores não querem saber só como executar uma boa receita, mas também descobrir, através da leitura, os prazeres culinários e culturais da mesa", afirma Marcus Vinicius Barili Alves, da Editora Senac São Paulo, que tem mais de 150 títulos na área. Por isso o volume de títulos voltados para o assunto tem se tornado cada vez maior, assim como o interesse pela gastronomia e os assuntos que a cercam.

No começo deste ano, Paris recebeu a primeira Feira Internacional do Livro de Gastronomia do mundo. Já a Feira de Frankfurt, a mais importante do mercado editorial, também deu novo destaque aos livros voltados ao assunto, assim como a Bienal do Livro de São Paulo, que ganhou na edição deste ano até um Espaço Gourmet, provas de que esse é um ramo em ascensão. Os livros de culinária podem mesmo não transformar qualquer um em mestre-cuca, mas oferecem um bocado de informações para aqueles que querem um verdadeiro, digamos, banquete de conhecimento sobre a gastronomia. Mas uma coisa não dá para negar: com tanta informação disponível, cozinhar ficou fácil (aliás, não era esse o título daquele livro do chef Gordon Ramsay?)

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