Doces deleites de Tiradentes

Doces deleites de Tiradentes

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:09

Quem visita a histórica Tiradentes, em Minas Gerais, na última quinzena de agosto, encontra uma cidade fervilhante. Todo ano, nessa época, os holofotes estão voltados para os estrelados chefs de cozinha, nacionais e estrangeiros, que participam do Festival de Cultura e Gastronomia. Entre outras atrações artísticas do evento, esses cozinheiros comandam glamourosos jantares harmonizados. O público é seleto. Os cenários, luxuosos: mesas lindamente enfeitadas, muitos talheres, muitos pratos, muitas taças. É alta gastronomia aos pés da serra mineira.

Nesta 13ª edição do evento, que ocorreu de 20 a 29 de agosto, as mulheres foram homenageadas e os convites para os tais banquetes montados por elas esgotaram-se em questão de horas, mesmo com os preços altíssimos – 280 a 330 reais por pessoa. Não é preciso muito esforço para deduzir que se trata de um encontro para poucos.

Mas, por detrás dos refletores, há também outra festa. Menos badalada, porém genuína. Ela acontece o ano todo. É simples, acessível, dispensa convite e, por isso mesmo, se mostra encantadora. Seus personagens ou nasceram ali ou são "forasteiros" que adotaram a cidade como morada. Esses últimos costumam ser carinhosamente chamados de "ETs" (ou extratiradentinos). Juntos, eles compõem a mais pura expressão do jeitinho mineiro de fazer boa comida.

A reportagem do iG Comida esteve lá e trouxe na bagagem algumas dessas autênticas histórias. Elas serão contadas em série – ou aos "bocados", como preferem os mineiros.

A começar por uma gostosura que é praticamente patrimônio da cozinha mineira: o doce de leite. Em decorrência da fartura da bacia leiteira do Vale do Jequitinhonha, a receita fez fama em Minas Gerais. Quando começou a ser produzida, no século XVIII, foi para estender a vida útil do leite. Em Tiradentes, há pelo menos dois endereços imperdíveis para prová-la: o do Bolota e o do Chico Doceiro. As duas versões são artesanais, feitas de açúcar e leite fresco de vaca – mencionar o de caixinha soa quase como um insulto. Embora estejam aparentemente em pé de igualdade, as receitas conseguem ser diferentes.

De um lado, tem-se um doce de leite com pouco açúcar e demorado cozimento. De outro, uma versão inversamente proporcional, com mais açúcar e menos tempo no fogo. O primeiro é suave, ligeiramente mais claro e desce macio na garganta. O segundo, mais moreninho, é de estalar os dentes e carrega a indiscutível marca afetiva dos doces feitos no tacho de cobre. A briga é boa. Um deleite para o paladar.

Doce de leite do Bolota

Dá para imaginar um doce de leite sem açúcar? O do Bolota é quase assim. Quase. A receita, improvável e curiosa, existe há mais de três décadas. Foi criada por José de Oliveira, um comedor de doces inveterado que ganhou o apelido de Bolota por estar sempre acima do peso ideal. O doce de leite – e também o de figo, mamão, cidra, limão, laranja e goiaba – sempre foram a alegria de Oliveira, que aprendeu com a mãe o ofício à beira do fogão. Ele passou uns bons anos fazendo e comendo os dulcíssimos quitutes até se descobrir diabético. "Foi uma tristeza só", conta a filha caçula Karine.

Segundo ela, a orientação médica para que se afastasse do açúcar o deixou consternado. Bolota só não imaginava que dessa terrível desventura nasceria sua famosa receita do doce de leite. Para tentar driblar a doença, ele diminuiu drasticamente a quantidade de açúcar, aumentou a de leite e estendeu também o tempo de cozimento*. "Como não conseguia viver sem o doce, o sacrifício de ficar até quatro ou cinco horas mexendo a panela valia a pena para ele", diz a ex-merendeira Célia, mulher de Bolota.

Foram várias tentativas até obter a receita final, com quinze litros de leite e apenas duzentos gramas de açúcar. O resultado fez sucesso: um creme bem mais claro do que os doces de leite tradicionais e com sabor também mais suave. "Até hoje, todo mundo que experimenta fica admirado. Ele não arranha a garganta", garante Célia, que assumiu a produção do doce de leite desde que Bolota morreu, em 1990.

O atendimento aos turistas é informal, no quintal da casa da família. Uma breve degustação para os visitantes e todos saem ao menos com um potinho de trezentos gramas na sacola (ao preço de 15 reais). A caçula trata da venda enquanto Célia, incansável aos 69 anos, estica e puxa o braço na panela fervente de leite, sempre munida de uma colher de pau, avental e uma touca na cabeça. Se os músculos doem no fim do dia? "Um pouco", responde ela. Nada que a impeça de seguir levando adiante a doce herança de Bolota.

Ingredientes: 15 litros de leite + 200g de açúcar refinado

Modo de preparo: em uma panela grande, ferva o leite em fogo médio por uma hora, mexendo sempre. Mantenha a altura da chama e acrescente o açúcar. Siga mexendo por mais três horas, trocando a mistura de panela na medida em que o doce for reduzindo.

Chico Doceiro

Francisco de Paula Xavier tem fama de passar boa parte do dia debruçado em seu fogão a lenha. Qualquer um que visite sua modesta loja de doces, atração turística de Tiradentes, poderá vê-lo atrás do balcão às voltas com seus tachos de cobre. O movimento na porta do estabelecimento era grande quando nossa reportagem estacionou por ali. Mas, cadê o Chico? "Está lá dentro, descansando. Ele esteve um pouco doente nos últimos dias", respondeu o filho José, que atendia a gulosa clientela. Com a típica simpatia mineira, nos convidou a entrar.

Para nossa alegria, encontramos um Chico Doceiro que, nem de longe, aparentava ter acabado de sair do hospital após dez dias de internação. "Foi um mal-estar, sabe? Fiz nove exames. Não tenho nada, graças a Deus. Estou ótimo", disse aliviado, enquanto agachava e levantava para mostrar sua boa disposição – fez questão de repetir o movimento três vezes para garantir que não estava mentindo.

Em dezembro ele completa longevos 80 anos, mas a fala é ligeira como a de um menino. A memória também é boa. Há 45 anos fazendo doce de leite em Tiradentes, Chico se lembra de quando carregava os latões de leite por quilômetros até chegar à cidade. Hoje o transporte facilitou o trabalho, mas ele não abre mão do tradicional tacho de cobre na hora de preparar o doce. "O ponto do creme, a cor e o sabor da massa nem se comparam àqueles feitos em panelas comuns", avisa. E ensina que também é preciso saber mexer direito a colher de pau: "Você faz um movimento reto para frente, um reto para trás, outro para frente e dá uma volta completa".

Difícil decidir o que é mais prazeroso: vê-lo trabalhar com tanta energia ou provar seus canudinhos recheados de doce de leite (cada um custa 50 centavos). A massa é crocante feito a de um pastel. Dentro, o doce é moreninho, bem cremoso e tão açucarado quanto deve ser um legítimo doce de leite. "O pessoal gosta e nunca para no primeiro canudinho. Depois dele sempre vem outro e mais outro", se diverte o doceiro. Enquanto esteve de repouso, ele confiou ao filho toda a produção da loja – que também vende cajuzinho, brigadeiro, bananinha, ambrosia, cocada e beijinho. Mas, ao que tudo indica, Chico Doceiro está preparadíssimo para continuar na ativa.

Ingredientes: 10 litros de leite + 3 quilos de açúcar cristal

Modo de preparo: em uma panela grande e grossa, ferva o leite em fogo médio por uma hora, mexendo sempre. Mantenha a altura da chama e acrescente o açúcar. Siga mexendo por mais uma hora, trocando a mistura de panela na medida em que o doce for reduzindo.

Para o canudinho

500g de farinha de trigo 200ml de água 1 colher (sopa) de óleo 1 litro de óleo para fritar Sal a gosto

Modo de preparo: em um recipiente, misture aos poucos a farinha de trigo e a água, mexendo com a mão. Acrescente o óleo e o sal. Mexa até obter a aparência de uma massa de pão. Abra a massa com um rolo até deixá-la fina. Corte em quadrados de 9 centímetros e enrole num tubinho de alumínio. Frite no óleo quente até dourar, escoe e tire o tubo. Espere esfriar e recheie com o doce de leite. Rende 60 canudinhos.

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