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Desconfie da ciência

Desconfie da ciência

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:29

Nem sempre o que as pesquisas mostram condiz com a verdade. Aprenda a identificar os velhos truques dos novos estudos.   Pense em quantas notícias você já leu sobre os riscos de se fazer isso ou aquilo. Nos últimos anos, pesquisas alertaram que beber chá quente aumenta em 8 vezes o risco de câncer de esôfago, usar talco íntimo representa 36% mais chances de câncer de ovário e 50g de bacon por dia fazem crescer em 20% a chance de câncer colorretal. Assustador, né?  

Há muitas formas de manchetes como essas causarem um impacto maior do que realmente deveriam. A informação do bacon, por exemplo, não foi divulgada em conjunto com o risco que qualquer pessoa teria, mesmo sem consumir o produto, de ter câncer colorretal durante a vida: 5%, de acordo com o Instituto para Pesquisa de Câncer do Reino Unido. Ou seja, comer bacon faz com que o risco suba de 5% para 6%. Já o efeito do talco faz a mulher passar de uma chance de contrair a doença de 1,9% para 2,5%. Não deve ser desconsiderado, mas não é tão alarmante.  

Esse tipo de falsa impressão é um dos enganos na produção e divulgação de pesquisas. A questão é tão séria que motivou o psicólogo alemão Gerd Gigerenzer a produzir um livro inteiro. “Escrevi Reckoning with Risk [Reconhecendo o risco] para apresentar ferramentas que ajudem as pessoas a entender e comunicar essas incertezas”, diz o pesquisador. As ferramentas de Gigerenzer para “entender como os erros se constroem” são resumidas por ele em duas regras: 1) saber que a ciência nunca apresenta certezas, apenas probabilidades; 2) tentar colocar as porcentagens do jeito mais simples para não ser enganado.  

OS NÚMEROS MENTEM  

A importância da segunda regra é confirmada por uma série de testes mostrando que as pessoas nem sempre entendem o que os números têm a dizer. Um deles, do psicólogo japonês Kimihiko Tamagishi, da Universidade Shukutoku, constatou que, para a maioria, ouvir que uma doença mata “1.286 a cada 10.000” é muito mais ameaçador do que ser informado que mata “24,14 a cada 100” — mesmo que a segunda estatística represente quase o dobro de risco. Da mesma forma, ouvir que a enfermidade mata 100 pessoas por dia causa menos percepção de risco do que ouvir que mata 36.500 por ano, o que, na prática, dá na mesma.  

Mas o engano não para aí. Outro erro frequente é construir uma relação de causa e efeito duvidosa entre dois fatores. Exemplo disso é um levantamento de pesquisadores australianos publicado em 2010 no Journal of the American College of Cardiology, que dizia haver uma correlação entre o número de horas passadas em frente à TV e o risco de morte. Dentre os 8.800 pesquisados, o grupo que passava 4 ou mais horas por dia em frente à tela teve 46% mais ocorrências de mortes do que o grupo moderado (até 2 horas). Se você der um Google, encontra facilmente títulos como “Televisão em excesso aumenta risco de morte”, escondendo nas entrelinhas um fato que os próprios pesquisadores admitiram: há razões para não levar esse número tão ao pé da letra. Uma delas é fácil descobrir: é mais provável que pessoas com problemas graves de saúde, impossibilitadas de fazer atividade física, fiquem mais tempo na frente da televisão. Nesses casos, uma maior proximidade da morte leva à TV e não o oposto.  

Outra dica para contextualizar uma pesquisa é checar o número de voluntários. Quando o argumento é uma relação estatística, ele não pode ser pequeno. Isso fica claro em artigo publicado em março no prestigiado periódico Neurology, que causou furor no debate sobre o uso de maconha com fins medicinais. O estudo de Anthony Feinstein, da Universidade de Toronto, no Canadá, sugere que os consumidores da droga com esclerose múltipla têm o dobro de probabilidade de demonstrar problemas de cognição, principalmente danos na velocidade de raciocínio. Quantos voluntários foram usados? Dois grupos de 25 pessoas (um de fumantes e outro de não fumantes). O próprio Feinstein admitiu que “a base de dados é pequena” e que seriam necessários mais participantes para consolidar os resultados. Além disso, não foi divulgada a probabilidade de um doente que não use maconha ter os mesmos problemas pesquisados – se o risco fosse de um em 1 milhão, dando um exemplo exagerado, dobraria para 2 a cada milhão, o que não seria motivo para tanto alarde.  

“Na imensa maioria dos casos, os jornalistas não inventam números”, diz Nigel Hawkes, da ONG britânica Straight Statistics, dedicada a mostrar os abusos e enganos produzidos pela mídia. “Mas eles não podem ser completamente inocentados. Se é preciso escolher um número, sempre pegam o maior. E estão muito inclinados a engolir direto o que as notas à imprensa dizem.”  

OS ERROS DA CIÊNCIA  

Isso não exclui a responsabilidade dos cientistas. No caminho até a verdade eles erram, e muito. Recentemente, por exemplo, descobriu-se que o ômega 3, substância há muito tempo vendida para prevenir problemas do coração, pode, na verdade, agravar uma situação cardíaca. Um estudo recém-publicado no JAMA, famoso periódico da Associação Médica Americana, avaliou 663 pacientes e viu que, ao contrário do indicado por pesquisas anteriores, consumir ômega 3 piora as chances de ter fibrilação atrial, uma arritmia muito comum. Esse conflito de pesquisas nem de longe é um caso isolado. Um dia, comer ovo ajuda o coração; no dia seguinte, aumenta risco de enfarte. Aspirina um dia ajuda a mitigar o avanço do mal de Alzheimer; no outro, não tem efeito contra a doença. Mas por que tanta diferença entre os estudos?  

“Por que a maioria das descobertas de pesquisas é falsa.” Este é o título de um ensaio escrito pelo epidemiologista John Ioannidis, Ph.D. na Universidade Tufts, nos Estados Unidos. Para ele, especialista em descobrir erros científicos, falta mais rigor matemático. Em trabalho publicado no importante periódico PloS Medicine, ele demonstra, por meio de simulações e cálculos, que várias das conclusões obtidas com manipulação estatística possuem, dentro de si, uma probabilidade altíssima de serem apenas um “acidente” de contabilidade.  

“Alguns dos estudos biomédicos mais citados foram refutados anos depois de sua publicação”, diz Ioannidis. “Pesquisas nos anos 90 diziam que vitamina E reduzia pela metade acidentes cardiovasculares. Sabemos hoje que não ajuda e pode até aumentar a mortalidade”, exemplifica. Além de erros nos cálculos, contribuem para resultados falhos a pressão para publicar rápido as descobertas (o que ajuda a manter o financiamento da pesquisa) e o fato de que cientistas, como qualquer ser humano, montam teses enviesadas para confirmar resultados que já esperam.  

Mas, ainda que o pesquisador se esforce para eliminar posturas tendenciosas, ele pode ser “enganado” pelos resultados. Muitas vezes o que parece uma correlação clara entre causa e efeito é apenas uma infeliz coincidência, defende Ioannidis. Se você não é um especialista, a forma mais indicada de separar o joio do trigo é ter postura crítica frente a pesquisas, tentar identificar os erros mais comuns, como o uso falho de estatísticas e relações que parecem não ter sentido. E, antes de mudar um comportamento após ler que alguma coisa faz mal, consulte um médico para saber se o estudo é confiável ou se é um ponto fora da curva.  

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