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Projeto pioneiro de transplante de uretra é realizado com sucesso no HC

Projeto pioneiro de transplante de uretra é realizado com sucesso no HC

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 3:31

O Brasil é o único país do mundo que atua em projeto experimental de transplante de uretra em humanos. Resultado preliminar indica 90% de eficácia entre os transplantados, sem exigência de compatibilidade. A técnica foi criada há oito anos por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em São Francisco, nos Estados Unidos, e aprimorada pelo urologista brasileiro Leopoldo Alves Ribeiro Filho, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

É indicada ao paciente com estreitamento do canal uretral (estenose de uretra), com causa hereditária, trauma de fratura de bacia ou cicatriz causada por gonorréia. São casos graves, em que a cirurgia convencional não corrige o problema. A pessoa sofre porque a uretra é total ou parcialmente fechada, urina pouco ou não tem dificuldade para eliminá-la.

Quem tem estenose, drena a urina com a passagem de sonda no canal uretral. Quando é acentuada, o médico sugere a cistostonia, cirurgia para inserir sonda na bexiga através da parede abdominal, por onde será drenada a urina. O paciente usa sonda e coletor, trocados a cada 15 dias, e enfrenta constrangimentos sociais. A doença não é fatal, mas causa estresse físico e psicológico. O médico diz que 70% dos homens têm depressão e deixam de trabalhar.

Preconceito - Ribeiro, assistente da Divisão de Urologia do HC da FMUSP, fez o primeiro transplante na instituição há cinco anos: "O paciente está muito bem e deixou de usar a sonda". Desde 2004, o médico fez 30 transplantes de uretra, sendo que 90% dos pacientes estão curados e os demais, algumas vezes, têm a uretra dilatada, mas levam vida quase normal. Outros 30 doentes graves são acompanhados pela equipe urológica do HC, foram operados por técnicas convencionais (sem êxito) e aguardam o transplante.  

A cirurgia experimental não exige compatibilidade entre doador e receptor, porque a uretra de cadáver é tratada com reagentes enzimáticos que destroem as células e o DNA do órgão doado e preservam a estrutura de colágeno e elastina, chamada matriz acelular. "Não há reação imunológica e nem rejeição do receptor, porque a matriz não tem célula", explica Ribeiro, especialista em oncologia urológica e engenharia de tecidos. Após algum tempo do transplante, as células do receptor migram de forma ordenada para o órgão enxertado e se regeneram completamente na nova uretra.

O HC está apto a fazer mais cirurgias, mas depende da doação dos órgãos e de verbas para comprar reagentes químicos (atualmente oferecidos pelo Japão e EUA). A ajuda de fora não é constante e, no Brasil, o ato voluntário esbarra no preconceito da família. "Embora as pessoas desconheçam, não abrimos a genitália masculina para retirar a uretra", explica Leopoldo.

Inovação - Como é experimental, a captação de uretra ocorre só nos hospitais situados na área de cobertura do HC. O próprio médico Ribeiro retira a uretra, trata-a no laboratório, faz o transplante e o acompanhamento pós-cirúrgico.

Prioriza-se a uretra masculina porque é maior, cada uma mede de 13 a 16 centímetros (após tratamento químico) e beneficia até dois receptores, de acordo com a extensão do canal uretral comprometido.

Ainda neste ano, quando os dez primeiros homens completarem dois anos da cirurgia, o urologista divulgará os resultados em jornal científico: "Estou confiante, sem falsas expectativas. Para provar a eficácia, seguimos avaliação criteriosa, operamos e tratamos todos da mesma forma". Após a publicação, é possível que o transplante de uretra seja reconhecido e difundido como inovação médica.  

Sem remédios - O mineiro Marcelo Gonzaga de Carvalho, 35 anos, fraturou a bacia e rompeu o canal da uretra, num acidente envolvendo caminhão. Conviveu com a sonda durante cinco anos, fez sete cirurgias para refazer o canal e perdeu seis centímetros do órgão. "Não conseguia urinar e, mesmo após a cirurgia, a uretra fechava", lembra. Um médico de sua cidade sugeriu a colocação de stent - espécie de tubo de arame de aço para impedir o bloqueio da uretra. Mas o urologista diz que o procedimento não é recomendado, pois o tecido do órgão cresce, penetra no material e a uretra fecha novamente.

Marcelo desistiu do stent e foi encaminhado ao HC, onde esperou três anos até o transplante. Está em recuperação, mas já se livrou da sonda e diz que a vida está ótima: "Era incômodo viver com aquela sacolinha e com as pessoas observando". Após a alta, quer voltar ao trabalho, mas o urologista frisa que não deve realizar atividades como dirigir, andar de bicicleta ou moto, pois comprime a região comprometida.

No caso de Valter Vilela, 48 anos, de Itaquera, zona leste da capital, o estreitamento da uretra é congênito: "Meu jato de urina sempre foi fraco, como não doía, não ia ao médico." Aos 14 anos fez cirurgia para reconstruir a uretra e só em 2003 ela começou a fechar. Fez cistostomia (cirurgia para abrir orifício na bexiga e passar a urina pela sonda), mas como o problema persistia foi encaminhado ao HC para transplantar 11 centímetros de uretra.  

Persistência rende reconhecimento

Há oito anos, Leopoldo Alves Ribeiro Filho, do HC da FMUSP, iniciou estudos na Universidade da Califórnia com orientação do pesquisador norte-americano Emil Tanagho. Fizeram experimentos com ratos para testar a eficácia do transplante de fragmentos de bexiga, tratada num laboratório com enzimas para destruir DNA e células. "Após quatro semanas, a bexiga acelular cresceu e se regenerou completamente no outro animal, sem rejeição", explica o especialista. Testes com coelhos também registraram bons resultados.

Com a autorização da Food and Drug Administration, órgão norte-americano que controla equipamentos médicos, transplantaram uretra em seres humanos pela primeira vez em 2001. Dos sete operados, a experiência falhou em quatro. Diante da descrença dos pesquisadores da Califórnia, Ribeiro retornou ao Brasil e continuou os estudos no HC, com bolsa de pesquisa norte-americana.

Após vários testes, aprimorou a técnica original e descobriu que, durante o transplante, o cirurgião precisa observar detalhes no implante do enxerto, como, por exemplo, suturar a uretra do cadáver com pontos largos para que "as células da uretra do receptor migrem ao outro órgão". O aperfeiçoamento rendeu ao HC prêmio em congresso norte-americano de urologia, em 2006, e reconhecimento médico na Europa e América do Sul.

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