Caminhando pelo deserto australiano perto do Rochedo Ayers

Caminhando pelo deserto australiano perto do Rochedo Ayers

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:28

New York Times Syndicate *Os rigores de uma caminhada por um deserto pedregoso são recompensados por certos prazeres serenos - como dormir olhando pela tela no teto da sua tenda para um céu imponderavelmente grande, repleto de estrelas. Quem precisa de teto de barraca quando a média de chuva é de um centímetro por mês?

Nós estávamos acampados nas margens do Rio Hugh, um sulco sem água no vazio tingido de óxido de ferro do Centro Vermelho da Austrália, a dois dias inteiros da estrada mais próxima e a uma distância de nove horas atrás de qualquer outra pessoa caminhando. Eu refleti que provavelmente eu nunca estive tão distante de quaisquer outros seres humanos, fora a forma inerte da minha noiva ao meu lado.

Logo, foi com surpresa, e um leve senso de traição, que despertei de um sonho poucas horas depois com gotas de chuva batendo na minha testa. Eu rapidamente armei o teto e fiz uma anotação mental enquanto me enfiava de novo no meu saco de dormir: nunca espere a média em uma terra de extremos.

Nossa viagem ao centro geográfico da Austrália foi motivada, inicialmente, pelo desejo de ver o Uluru, o monólito icônico de arenito antes conhecido como Rochedo Ayers. Cercado pela maior coleção de nada do mundo, o Uluru fica a cerca de 435 quilômetros a sudoeste de Alice Springs, a única cidade digna de nota no interior, e mais de 1.600 quilômetros fora da rota turística costeira habitual. É uma longa distância apenas para um rochedo.

Para ampliar as atrações da região, o governo do Território do Norte gastou 12 anos polindo uma rota de caminhada de 224 quilômetros, a Trilha Larapinta, a oeste de Alice Springs, a concluindo em 2002. Crucial para o plano era a rede de tanques de água de chuva em intervalos de cerca de 16 quilômetros -um dia de viagem- que os guardas do parque monitoram e completam com água da cidade quando necessário.

A Trilha Larapinta leva de duas a três semanas para ser caminhada de um extremo ao outro, com trechos mais curtos e até mesmo caminhadas de um dia acessíveis a partir de Alice Springs. Para nossa viagem, Lauren e eu planejamos uma caminhada de cinco dias por algumas das áreas mais esparsas de deserto e gargantas mais rochosas, deixando dois dias para a peregrinação obrigatória ao Uluru.

No voo com partida de Sydney, eu folheei o "The Songlines", a exploração por Bruce Chatwin dos lendários seres de totem que, nos mitos da criação dos aborígines, perambularam pelo continente "cantando o mundo para trazê-lo à existência".

Pela janela do avião, após duas horas de cerrado indistinto, eu finalmente vi um longo e fino rochedo, brotando da areia como a Estátua da Liberdade no final de "O Planeta dos Macacos". Era o primeiro sinal das Cordilheiras MacDonnell, uma coleção de cumes paralelos supostamente criados por lagartas gigantes chamadas Yeperenye e lar da Trilha Larapinta.

Nós arranjamos junto a uma empresa local, a Tailormade Tours, para sermos levados diretamente do aeroporto para nosso ponto de partida no Riacho Ellery, parando apenas para abastecer na cidade. Após duas horas em uma estrada vazia, nosso motorista nos deixou com algumas poucas palavras alegres de alerta sobre algo chamado "spinifex" e prometeu nos pegar em cinco dias na Fenda Standley, a próxima trilha acessível por veículos comuns.

O Riacho Ellery abriu a fenda estreita e funda nas MacDonnells ao longo dos últimos 350 milhões de anos, fornecendo abrigo para um raro lago permanente. O calor de 35ºC na tarde era um recorde para agosto e nos juntamos aos turistas e campistas que se refrescavam em suas águas marrom-esverdeadas.

Nós deixamos o campo antes das sete horas da manhã seguinte, e após dez minutos as árvores e verde -sem contar as multidões- aglomerados em torno do lago pareciam uma lembrança distante. Diante de nós estava uma vasta planície avermelhada, pontilhada por moitas cinzentas e sem folhas, adormecidas até a próxima chuva.

Após algumas poucas horas de caminhada por esta paisagem tranquila, nós fomos surpreendidos por uma explosão de cores vívidas nas margens do um riacho seco. Devia haver água suficiente no subsolo para sustentar uma árvore "ghost gum" (um variedade de eucalipto) de raízes profundas, com uma luminosa casca branca, folhas verdes vibrantes e uma leve e muito necessária sombra em sua base.

A única coisa marcando nosso próximo local de acampamento, ao qual chegamos às 13h, era um tanque de metal cheio de água preciosa, ainda fria da noite no deserto. Nós passamos a tarde deitados o mais imóveis que podíamos, nos levantando a cada meia hora para nos reposicionarmos no retângulo móvel de sombra que criamos amarrando a base de nossa tenda entre duas moitas. Às 16h30, já tinha refrescado o suficiente para subirmos um cume próximo e observar as planícies que se estendiam por quilômetros em todas as direções. Fora as moscas buscando agitadamente a umidade de nossas narinas e canais auditivos, não havia nenhum sinal de movimento.

Enquanto caminhávamos por condições semelhantes as de um forno no dia seguinte, a busca por uma sombra se transformou em uma obsessão. Árvores de aparência promissora de longe revelavam ser atrofiadas e sem folhas quando chegávamos, de forma que seguíamos em frente. No final, nós desistimos e nos encolhemos nos 15 centímetros de sombra oferecidos por um tronco pelado, bebendo nossa água cuidadosamente racionada - sete litros, pesando sete quilos, entre nós - e desenvolvendo planos elaborados caso precisássemos sobreviver se o tanque de água na próxima parada estivesse vazio.

Foi naquela noite que veio a chuva, dando vida ao deserto curiosamente inerte. Nós acordamos no dia seguinte e descobrimos que nosso acumulador de água de dois litros tinha desaparecido, um mistério solucionado em parte por Lauren, que o encontrou a algumas poucas centenas de metros adiante na trilha, e em parte por mim, quando notei dois dingos (cães selvagens) de pelo dourado nos observando por trás de algumas rochas próximas.

Ao seguirmos caminho ao longo do fundo repleto de rochas da Garganta Hugh, pássaros guinchavam com vozes quase humanas, uma cobra rastejava entre o junco próximo e nós ficamos com a impressão de que os dingos estavam nos seguindo.

O terreno também mudou dramaticamente na segunda metade da caminhada. A trilha agora subia seguindo uma série de cumes vertiginosos, chegando até a 1.200 metros de altitude.

Apesar do alívio bem-vindo fornecido pelo céu nublado que fornecia chuva e pelas temperaturas que caíram para 15ºC, a trilha agora nos exigia em nosso limite. Cada passo na descida de duas horas da Razorback Ridge era um salto, com o impacto da gravidade em nossas pernas amplificado pela carga em nossas costas.

Nós dormimos por 11 horas naquela noite, acordando às 6h para iniciar nosso último dia na trilha. Aqui nós finalmente descobrimos a relva spinifex (afiada), agrupada no tamanho e forma de um porco-espinho assustado, que cobria as encostas rochosas. Elas derramam seu sangue sem esforço, como eu redescobria toda vez que esticava a mão para me equilibrar, após tropeçar nas rochas com as pernas cansadas e sem firmeza.

Às 17h nós finalmente entramos cambaleando na Fenda Standley, uma abertura de três metros de largura e 79 metros de profundidade, gasta no arenito por outro riacho fantasma. Nosso acampamento ficava a 400 metros descendo a trilha, ao lado de um estacionamento onde os aborígines proprietários da fenda possuem um pequeno café e loja de suvenires que atende os ônibus de turismo.

Naquela noite, enquanto deitávamos sob as estrelas, novamente sem cobertura na tenda, escutamos os proprietários cantando juntamente com uma gravação de uma estranha e serena música aborígine. Eu penso nas terras inesperadamente diversas que atravessamos - as areias desoladas e picos rochosos, o sol quente e a chuva alquímica - e em Bruce Chatwin, assim como nos seres que cantaram esta terra para que passasse a existir.

Houve um breve silêncio e então aguçamos nossos ouvidos à medida que outra melodia teve início. Nós demoramos um minuto para perceber que estávamos ouvindo "Who Will Save Your Soul" (quem salvará sua alma), o sucesso de Jewel de meados dos anos 90. Após a quebra do encanto, nós rolamos para o lado para dormir um pouco, antes de nos juntarmos às hordas de turistas a caminho do Uluru na manhã seguinte.

Planeje sua viagem

Informações detalhadas sobre a Trilha Larapinta estão disponíveis no site do governo do Território do Norte, www.nt.gov.au/nreta/parks/walks/larapinta. As caminhadas são recomendadas apenas de abril até outubro, fora dos meses mais quentes de verão. Maiores informações sobre viagens às MacDonnell Ranges estão disponíveis no guia aos visitantes en.travelnt.com/explore/alice-springs/macdonnell-ranges.aspx.

Para chegar lá

A Qantas (www.qantas.com.au) voa para Alice Springs de Brisbane, Sydney, Melbourne, Adelaide, Perth, Darwin e Cairns. Voos de ida e volta de Sydney, em abril, estão disponíveis por US$ 697, segundo uma recente pesquisa online.

Alice Wanderer (61-8-8952-2111; www.alicewanderer.com.au) e Tailormade Tours (61-8-8952-1731; www.tailormadetours.com.au) oferecem transporte de ida e volta para vários pontos da trilha, juntamente com entrega de alimentos. Nós pagamos 345 dólares australianos (quase em paridade com o dólar americano) pela viagem de ida e volta, incluindo translado ao aeroporto e uma parada na cidade para abastecermos.

Caminhadas com guias

Várias empresas oferecem caminhadas com guias e com duração diversa ao longo da trilha, incluindo a Trek Larapinta (61-428-402-027; www.treklarapinta.com.au) e a Peregrine Adventures (61-3-8601-4333; www.peregrineadventures.com). Uma lista delas está disponível em www.nt.gov.au/nreta/parks/walks/larapinta/links.html.

Por Alex Hutchinson

Tradução: George El Khouri Andolfato

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