Montreal, a cidade do riso

Montreal, a cidade do riso

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:32

O Quartier des Spectacles, bairro das artes e espetáculos no coração de Montreal, vive os espasmos finais do 28º festival anual Just for Laughs.

Nos últimos dez minutos fui cercado por Les Androïdes, equipe de hip-hop formada por robôs humanoides que dão a impressão de terem sido desenhados pela Peugeot ou pela Studebaker, difamado (creio eu, eles falam francês) pelos espertinhos do Mauvaises Langues, artistas de rua vestindo elaboradas fantasias de línguas e abraçado por Victor, a rechonchuda mascote de chifres vermelhos do festival.

Ele era seguido por um grande bando de alunos do primário usando chifres que piscavam seu nome – 'Victor’ – em vermelho. “Onde posso comprar os chifres?”, grito para eles, que apontam em todas as direções, mas antes que consiga escutá-los, 'Thunderstruck’, o estridente rock clássico do AC/DC, explode nos alto-falantes.

Sou levado por uma multidão que corre para um enorme canhão pintado que está prestes a disparar 'L’Homme Canon’, David Smith, a bala, por uns 50 metros até uma rede que, vejo agora, está amarrada a foguetes explodindo. Até que enfim conheci um bairro dedicado ao entretenimento que faz jus ao nome! Montreal chama a si mesma de a “cidade dos festivais” em função do ambicioso calendário anual de eventos que propõe algo para a maioria das pessoas, envolvendo música, dança, teatro, cinema e comédia. O humor explica em parte o que faço aqui – apesar de minha fracassada carreira de cômico, que começou como um sonho em Austin, Texas, até se transformar num pesadelo numa noite, 20 anos atrás, diante de uma plateia embriagada no The Comedy Store, em Hollywood. Desde então, nunca mais subi ao palco para 'esquentar’ o público.

Felizmente, a única coisa a lembrar remotamente um pesadelo em Montreal até agora tem sido escolher que espetáculos ver. O conceito inicial do Just for Laughs, lançado no verão de 1983 como um evento de quatro dias apresentando 16 artistas, num total de 35 shows para cerca de cinco mil espectadores, era fazer rir o máximo possível de espectadores. Neste ano, o festival contratou aproximadamente 2 mil artistas para entreter mais de 1,5 milhão de pessoas ao longo de 24 dias, transformando-o no maior evento do tipo no mundo. Tem sido um desafio escolher quem ver na seleção impressionante de humoristas de primeira, concertos, peças, esquetes, teatro de rua e desfiles.

Comecei minha aventura cômica vendo a Noite de Gala de um Milhão de Opiniões, apresentada pelo mordaz comediante americano Lewis Black no teatro St-Denis, a última palavra em sala de espetáculos no centro do bairro latino de Montreal. Não existe traje obrigatório, mas como o evento de gala é transmitido ao vivo pela televisão, muitas das cerca de 1.700 pessoas que compareceram vestiam algo bacana; a senhora sentada ao meu lado veio com um vestido iridescente que brilhava no escuro e retinia feito uma cota de malhas quando ela ia ao bar comprar coquetéis. Esta foi uma de minhas fala favoritas de Lewis Black: sua descrição do Velho Testamento como “uma história maravilhosa contada para as pessoas no deserto não perceberem que não tinham ar-condicionado”.

Sagacidade e apreço pelo absurdo podem ser encontrados o ano todo em Montreal. Em minha opinião, o Canadá sempre mostrou aos Estados Unidos o que é ter senso de humor. Para começar, foi o lar do SCTV, comédia televisiva que ajudou a lançar pessoas como Martin Short e John Candy.

E também há a cordialidade geral, que vivencio na viagem de táxi do aeroporto ao hotel. O taxista, ao ficar sabendo que é minha primeira visita a Montreal, começa a tecer uma ode à cidade natal. “É a cidade mais linda da América do Norte! Na verdade, Montreal é uma ilha em formato de croissant, margeada ao sul pelo rio São Lourenço e, ao norte, pelo rio Prairies. Ao redor de 65 por cento dos habitantes falam francês, mesmo que os parisienses finjam não nos entender. Tudo bem. Não somos franceses”. Nesta hora ele faz um gesto obsceno. “Sim, temos sangue francês, pegamos o melhor da cultura francesa – a comida, a moda, a 'joie de vivre’ _, mas aqui”, ele estica os braços, “temos muito mais espaço para aproveitar essas coisas”. Enquanto encostamos no meu hotel, ele dá um último conselho. “É costume cumprimentar os amigos em Montreal dando beijos nas bochechas, sempre começando pela direita”. Ao longo dos próximos dias acabarei me esquecendo de começar pela direita e baterei em narizes ou beijarei olhos.

Escolhi o Auberge Bonaparte, na Rue St-François-Xavier, porque fica numa rua secundária a pouca distância das margens do rio São Lourenço na Velha Montreal, lugar de nascimento da cidade. Assim que pego o jeito de atravessar desatentamente as sinuosas ruas de pedra daqui, percebo que me hospedei num bairro muito chique. Vários dos restaurantes, galerias de arte e comércios deste popular destino turístico ocupam prédios muito bem preservados no estilo neoclássico e vitoriano, numa exibição de 350 anos de história arquitetônica. Temos lojas de suvenir cheias de itens do Canadá francês: bandeiras com a flor de lis, camisetas, globos de neves, discos de hóquei, considerados pesos de papel exóticos no Texas, meu estado natal. Da janela do meu quarto posso ver a basílica de Notre-Dame, impressionante amostra da alvenaria neogótica do século 19.

Marcado como católico ao nascer, me sinto atraído pelo incenso, vitrais e santos, quanto mais, melhor. Assim eu entro, acendo uma vela de quatro dias, depois fico zanzando entre grupos turísticos para apreciar a iluminação dramática da basílica, vitrais imponentes, estátuas douradas de santos, um órgão de sete mil tubos e estações da via sacra majestosas, cada uma ostentando um confessionário feito à mão. Eles devem manter em movimento a fila de pecadores. “Perdoa-me, padre, pois pequei. Minha última confissão foi quando Richard Nixon era presidente”.

Eu pretendia ficar para ver o show de som e luzes da basílica, mas havia um espetáculo de Fred Willard no Hyatt Regency do centro. Willard forjou uma posição especial nos anais da comédia com sua habilidade para improvisar, seu desempenho como o locutor sem noção em 'Fernwood 2 Night’, paródia dos programas de entrevista dos anos 1970, e suas participações roubaram a cena em filmes como 'O Âncora: A Lenda de Ron Burgundy’, 'Spinal Tap’ (também conhecido como 'O ocaso de uma lenda’) e 'O Melhor do Show’.

Preciso vislumbrar pelo menos um relance de sua eminência.

A multidão está maior do que nunca nesta noite no Quartier des Spectacles, e volto a me ver como um participante de um desfile felliniano. Les Grosses Tetes, caricaturas altas de humoristas marcadas por cabeças imensas, animam a multidão. Quando esbarro numa, ela se inclina e dá um tapinha na minha cabeça. “Preciso de chifres do diabo”, imploro. Acabei de ver Victor, a mascote do festival de chifres vermelhos, acompanhado nesta noite pelos magníficos membros de uma banda de dixieland e rave.

Quando chego ao Hyatt Regency, centro nervoso não oficial do festival, não há nem sinal de Fred Willard – embora uma garçonete (usando chifres vermelhos de diabo; onde ela os conseguiu?) garanta que a lenda estava ali do lado do elevador até minutos atrás.

Chateado, volto a sair, torcendo para topar com o homem entre as festividades na rua. Quem sabe ele fique intrigado pela apresentação 'Auto-Fiction: Human Trio and One Car’, do peculiar grupo de dança contemporânea Human Playground. Eu com certeza fico quando vejo os três dançarinos de rua saltarem, deslizarem para dentro e fazerem piruetas ao redor de uma perua. Suponho que os passos sejam um comentário ao papel centro do automóvel na vida moderna.

Ou, sei lá, Willard seja mais um sujeito do estilo 'cerque-me com cores’, e nesse caso ele pode estar vagando pela gigantesca escultura inflável de túneis e domos chamada 'Architects of Air Luminarium’. Tiro os sapatos e começo a caminhar pelo que parece o quarto psicodélico de algum moleque traquina iluminado com luz líquida. O interior labiríntico me lembra os capilares e vasos sanguíneos do filme 'Viagem Fantástica’, de 1966. Os outros visitantes rastejam, sentam ou 'viajam’. Como é feita de vinil, a luminária quase não oferece risco de ferimentos; provavelmente a única forma de se machucar seria batendo cabeça com alguém pulando de um túnel adjacente. Opa! “Desculpe”, murmuro sem graça.

Calçando meus sapatos, caio no meio de crianças com chifres de diabo seguindo para uma cabine de bolhas. Peça a música preferida ao entrar na cabine. Enquanto as luzes piscam, bolhas de espuma aparecem de todas as direções, incentivando você a se esculpir como animal ou herói de ação – qualquer coisa com que a imaginação sonhar. Parece um lugar perfeito para o Fred. Mas bem na minha vez, aquelas línguas encrenqueiras, os Mauvaises Langues, reaparecem e acham engraçado eu estar na fila com crianças – e, alegremente, falam disso à multidão ao redor.

A crítica da língua brincalhona e o fato de Willard não ter aparecido me fazem rever meus planos, assim caminho de volta para o hotel. Em algum momento do caminho percebo que entrei numa área que não conheço e, para minha grande surpresa, mudaram o pôr do sol para o norte. “Será coisa do Canadá?”, me pergunto. Acontece que o desenho original das ruas de Montreal foi organizado em relação ao velho porto no São Lourenço. O norte na verdade é noroeste e assim o sol parece nascer no sul, não a leste, e se pôr a norte, não a oeste.

Entre esse deslocamento geográfico e a balbúrdia desorientadora dos eventos de rua do festival, me sinto trombando no escuro. Só que existe o escuro e o escuro de Montreal. É o que está me contando Mert, estudante da Universidade McGill, nos arredores, com quem, bem, trombei num café. “Vá conhecer o O.Noir. Você come na mais completa escuridão e os garçons são cegos”.

Notando minha perplexidade, ele acrescenta: “Acredite. É uma experiência única na vida”.

Anoto a dica e desejo a Mert boa sorte nos estudos. Sons de tambores vindos do vizinho Parque do Monte Royal me convidam, assim vou para lá – e encontro o Tam-Tam Jam, outra apresentação, a pleno batuque. 'Tam-tam’ é a palavra francesa para tantã (ou gongo); o Parque do Monte Royal oferece 31 hectares de espaço verde bem no meio da cidade, com trilhas que serpenteiam por 200 metros até o topo do supracitado Monte Royal, que deu nome à cidade.

Uns 60 percussionistas estão levando o ritmo em tudo quanto é tipo de coisa, como bongôs, 'djembês’ africanos e um balde plástico. Há 'frisbees’ voando, camisetas 'tie-dye’ em todo lado e espíritos livres de todas as idades e níveis de habilidade dançam seguindo a batida. O vovô está ali, sem camisa, descalço e queimado de sol, se acabando como quando um show do Grateful Dead podia durar semanas. “Entre no ritmo, cara”, sussurro. Se descolasse um balde plástico, eu iria tocar 'Wipe Out’.

Em vez disso, subo num ônibus sigo para o cume do Monte Royal para procurar o Oratório de São José, um dos santuários católicos mais visitados na América do Norte. Alguns dos meus melhores trabalhos diante de uma plateia aconteceram quando eu era coroinha; aquele público da igreja que só ficava em pé provou servir de grande inspiração. Todavia, logo conheci meus limites. Ser pego fazendo teatro de variedades sob a cruz implicava em várias penalidades (sem mencionar as confissões), assim, nas performances improvisadas, menos era mais.

Que pena que eu não tinha meu próprio Oratório de São José onde me apresentar. A basílica em estilo renascentista, finalizada em 1967 e recoberta com um domo de 97 metros – quase a altura do domo de Michelangelo na basílica de São Pedro, em Roma – tem tamanho para abrigar um dirigível inteiro. Tento compará-la com o oratório original, uma capela de madeira do tamanho de um galpão, fundado em 1904, pelo humilde irmão André, cuja reputação de curador miraculoso o levou à santificação pelo Vaticano em 2010.

Pego um táxi vazio na frente do centro de serviço dos peregrinos. Alguma coisa no oratório e minhas lembranças da igreja com padres pregando sobre a privação me levam a querer conhecer o O.Noir do Mert. Enquanto arrancamos, o motorista informa ser bipolar “e como estou deprimido, tenha paciência”.

Fico sabendo que ele acabou de se mudar para Montreal, vindo de “Toronto, aquela cidade suína que cresceu demais”, revelando outro dado acerca de Montreal. A cidade se considera a meca cultural do Canadá e nunca se cansa de dizer que Toronto, capital financeira do país, já foi o principal frigorífico suíno do Império Britânico.

“Em Toronto só querem saber de ganhar dinheiro e desfilar em carros chiques”, diz o motorista. ``Quem mora lá não vê a hora de chegar a manhã de segunda para voltar à labuta. Os montrealenses vivem pelo fim de semana.

Nunca perguntam sua profissão nem a marca do seu carro; apenas curtem o momento ao seu lado. Quando paramos no O.Noir, ele parece ter passado para a euforia. ''Bom apetite. E não deixe o garfo cair``, diz, gargalhando.

O O.Noir fica espremido entre o Salon Barbier e o Fat’s Pub and Billiards na Rua Ste-Catherine. Uma placa na janela diz: ''O primeiro restaurante canadense a convidá-lo a provar comida, bebida e conversa de uma forma inédita – no escuro! Depois de algumas horas na mais completa escuridão você terá uma compreensão melhor do que é ser cego – como toda nossa equipe de atendentes``. Para incentivar, parte do lucro do restaurante vai para associações locais que ajudam os cegos e pessoas com problemas de visão.

Quando entro, uma das garotas que enxergam e trabalham no bar da frente anota meu pedido e me apresenta ao Philip, colega estudante que usa óculos escuros ao estilo do Elvis. ''Serei seu garçom esta noite“, ele diz e depois coloca minha mão no seu ombro e me conduz através de pesadas cortinas pretas, que deslizam sobre meu rosto. Estamos entrando na área de jantar, escura como breu. Ouço conversas e o barulho dos talheres. Philip me leva até a mesa e me ajuda com a cadeira. ”Sua cerveja ficará à esquerda, perto da parede``.

''Bem pensado``, respondo.

A ausência da visão não parece fazer meus ouvidos prestarem mais atenção, causando uma sensação interessante, até divertida – até que uma barragem de guinchos e gritinhos agudos brota de algum lugar atrás de mim. Parece um ônibus lotado de garotas animadas. À medida que me entrego ao camarão marinado com ervas, o zunido cresce a ponto de me pegar rosnando em voz alta para a escuridão: ''Fechem essa matraca``. O resmungo só parece incentivá-las a subir o barulho em algumas centenas de decibéis, quando me ocorre que elas dariam uma plateia perfeita para os shows de humor da cidade.

Diacho, se elas fossem o público do meu ato, talvez eu estivesse no palco agora em vez de pedir ajuda às cegas para meu garçom.

''Philip! Por favor, preciso de uma ajudinha aqui. Ei, Phil...``.

''Estou bem aqui``, ele sussurra, vindo do nada.

''Vamos deixar para lá a sobremesa surpresa, amigo. Está muito barulhento aqui``. Deixo uma gorjeta graúda, me agarro nele com as duas mãos e surjo da Rue Ste-Catherine de barriga cheia e um renovado apreço pelo precioso dom da visão.

O que me faz pensar que o dom da visão faz parte integral de qualquer show cômico sendo apresentando nos palcos de Montreal. A comédia, afinal, é tanto o que vemos como o que ouvimos. Como se para destacar a ideia, vejo um bando de dançarinas de cancã de pernas longas usando saias-balão transparentes e andando de pernas de pau. A visão me transfixa – até que meus velhos amigos, os Mauvaises Langues, aparecem. Agora, eles acham meus sapatos (macios brogues pretos) dignos de escárnio. A multidão concorda. Estou revivendo meu momento de Hollywood. Indignado, recorro ao meu francês mínimo (em sua maior parte vindo do cardápio do café da manhã) para um contra-ataque de duplo sentido. ''Monsieur, oeufs plus faciles, s’il vous plaît!“ Percebo que estão tremendo. Eu me sinto redimido. Demoro alguns minutos para perceber que gritei: ”Senhor, ovos bem moles, por favor!`` Eles não estão tremendo de medo.

Sendo intencional ou não, a comédia e o riso parecem fazer parte da própria atmosfera de Montreal. No meu último dia, vou a outra apresentação, onde sou tomado por uma sensação estranha. ''Meu lugar é aqui``, penso com meus botões.

''Esta é a cidade onde a alegria criativa do humor é venerada. Vou pedir dupla cidadania e começar a trabalhar nas noites de microfone aberto nas dezenas de clubes de comédia. Então quem sabe, em um ano ou dez, veja meu nome listado ao lado de ‘Fred Willard``.’ Em confirmação – ou será repúdio? – um caminhão de lixo ronca e percebo que o motorista está usando os chifres vermelhos de diabo. Os meus chifres vermelhos de diabo.

O editor colaborador Patrick J. Kelly e o fotógrafo Will van Overbeek juntaram forças pela última vez em nossa reportagem ''A Thousand Islands of Summer``.

The New York Times News Service/Syndicate

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