A cultura e o cristão: qual o limite desse relacionamento?

A questão principal é: como podemos nos proteger da influência da cultura a fim de sermos nós os influenciadores?

Fonte: Guiame, Alisson MagalhãesAtualizado: segunda-feira, 5 de abril de 2021 às 18:33
(Foto: Bible Way)
(Foto: Bible Way)

Uma das questões mais relevantes e polêmicas dentro da Igreja Evangélica brasileira é o relacionamento entre o cristão e a cultura. Seja na forma do irritante debate sobre ‘se é pecado ou não ouvir músicas seculares’, que pode contaminar até mesmo um simples “parabéns p’ra você”, até o acesso a outras formas mais elaboradas de expressões culturais.

É fato que a igreja brasileira tem uma antiga mania de demonizar tudo o que ela não entende e não consegue controlar, afinal de contas, é mais fácil proibir do que educar e ensinar o povo a ter senso crítico e maturidade para separar o que presta do que não presta.

Pois bem, depois de assistir novamente a mais um interminável debate sobre o assunto da música secular (não consigo acreditar que discutimos isso no século XXI), decidi dar uma pesquisada e escrever sobre o assunto, não da música (não aguento mais isso), mas sobre o relacionamento entre o cristão e a cultura, afinal de contas, isso, de fato, sempre representou um desafio para a igreja; afinal de contas, como o cristão pode viver os valores bíblicos quanto à família, trabalho, lazer, estudos inseridos na cultura em geral?

Sim, inseridos – e não adianta espiritualizar – na realidade que cerca o mundo natural. Quero iniciar citando Paulo em Filipenses 2:15: “…para que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis NO MEIO (OU ENTRE) de uma geração corrompida e perversa…”. Lembro também de Jesus que, quando orou pelos discípulos em João 17, pediu ao Pai “…não peço que os tires do mundo, mas que os guarde do mal”.

Jesus usa aqui a palavra grega “kosmos” que, entre outras coisas, significa o sistema de valores, crenças, práticas e a maneira de viver das pessoas sem Deus. A questão é que essa é a exata definição mais usada para definir o que seria cultura. Veja o que o dicionário Houaiss diz sobre cultura: “Conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social”. Parecido? Pois é.

Aí, você me pergunta: Pastor, como é então que a cultura nos influencia? Simples: Não existe cultura neutra. Ela sempre reflete a situação moral e espiritual das pessoas que fazem parte dela, ou seja, quando você vive no mundo, você tem duas escolhas: Influenciar ou ser influenciado. Não há alternativa.

O fato é que, histórica e sociologicamente, toda cultura é resultado de uma mistura de coisas boas e ruins. As coisas boas decorrentes dos traços da imagem de Deus remanescentes no homem, e coisas pecaminosas, resultantes da depravação e corrupção dessa mesma imagem. Logo, toda cultura traz valores bons e valores pecaminosos, que acabam se refletindo na arte, música, literatura, cinema, costumes, legislação e em tudo mais que a compõe.

É inegável, dentro do ponto de vista bíblico, que há uma relação e a necessidade de uma clara posição do cristão em relação à cultura, e isso é claramente expresso pelos apóstolos. E a posição correta é que sempre devemos nos posicionar contrários a todo e qualquer tipo de expressão pecaminosa, pois o mundo (kosmos) – ou seja, a cultura (os sistemas de valores dos ímpios) – é inimigo de Deus. Aqui você pode ver I João 2:15-16; Tiago 4:4; Romanos 12:2.

ENTÃO, NÓS DEVEMOS DESTRUIR A CULTURA, NÃO É MESMO?

A resposta é NÃO. Mil vezes não. Não devemos destruir a cultura. Devemos influenciá-la. Veja, ao mesmo tempo em que a Bíblia traça um perfil negativo do mundo, ela admite que existem coisas boas na sociedade. Esse é o resultado da graça comum e da imagem de Deus no homem que, mesmo corrompida, ainda leva Deus a agir de maneira graciosa na humanidade. Independentemente de ser cristão ou não, Deus concede às pessoas capacidades e habilidades naturais para as artes ou para outras áreas específicas de atuação.

Ironicamente, os primeiros instrumentos musicais aparecem na Bíblia dentro da descendência de Caim – Um assassino – (Gn 4:21), assim como os primeiros ferreiros (4:22), fazedores de tendas e fazendeiros (4:20). O apóstolo Paulo conhecia e citou vários autores e filósofos de sua época (Ele citou Epimênides em Tito 1:12; Menander em 1 Co 15:32 e Aratus em At 17:28 – Para não falar em outros), mostrando o grande conhecimento cultural que possuía.

Jesus cita Platão em João 8:32, fazendo uma paráfrase ao Filósofo. Platão dizia, 300 anos antes de Cristo a frase: “O Conhecimento liberta”. Jesus o edita: “O Conhecimento – da verdade – liberta”. O Senhor ia a festas de casamento e se relacionava com aquilo que, segundo os sacerdotes da época, havia de pior em sua cultura e, por isso, era difamado e odiado pelos fariseus.

A questão central não é a proibição, é aquela questão do limite. A questão principal é: como podemos nos proteger da influência da cultura a fim de sermos nós os influenciadores? A fim de sermos nós a transformar a cultura que nos cerca?

Uma das maiores falhas e equívocos da igreja brasileira é sua tentativa de criar sua própria cultura e tentar impô-la ao mundo. Sem dúvida, esse não é o padrão bíblico e divino.

O que precisamos entender, de uma vez por todas, é que quando temos (e precisamos) que protestar não é contra a cultura em si, mas sim contra aquela parte pecaminosa presente naquele aspecto cultural. Aquela parte ruim da qual falei acima.

Quando missionários tentam fazer com que índios parem de matar crianças, eles não querem acabar com a cultura indígena, querem redimi-la deste traço pecaminoso. Quando rechaçamos as teorias de Darwin com relação à Evolução das espécies, não estamos deixando de reconhecer sua contribuição para nossos conhecimentos atuais sobre os processos naturais, mas nos posicionando contra a filosofia naturalista que controlou suas pesquisas e sua linha de pensamento. Podemos gostar de Jorge Amado, mas abominamos suas inclinações para a pornografia. Podemos admirar os Soneto e poesias, mas não aceitamos os cigarros e bebidas de Vinícius de Moraes.

O problema é que, quando demonizamos tudo que não está inserido em nossa “cultura evangélica”, acabamos marginalizando e antagonizando aqueles que deveriam ser o alvo da igreja. Perdemos a ponte de diálogo por transformar o que deveria ser um relacionamento num embate ideológico e perdemos o direito de sermos ouvidos.

Ao perder essa ponte, acabamos fechando canais de comunicação que seriam fundamentais no esforço de tentar influenciar os que mais precisam. E enquanto o diabo consegue fazer a igreja se distrair com suas próprias mazelas e se isolar do resto do mundo – que morre de rir ao ver essas pendengas – a cultura secular permanece entregue nas mãos de satanás, afinal de contas a igreja anda mais preocupada com sua (falta de) cultura gospel, cerrada numa cara de santidade de fachada.

ONDE ESTÁ O CAMINHO, ENTÃO?

Para variar, a lição, mais uma vez, está na história. Está num Lutero que, ao finalizar suas poesias, fazia uso de músicas populares (SECULARES) de sua época para lhe darem adornos musicais (Castelo Forte, o grande hino da Reforma, é o maior exemplo disso). Falei aqui de Jesus, que citou Platão, de Paulo, que citou filósofos de sua época, lembro aqui de C.S. Lewis e dos puritanos, que tinham um profundo apreço pela pintura, pela música, pela literatura e poesia de sua época, e se empenharam fortemente em impregnar na sua cultura os traços da imagem de Deus que eles conheciam mais do que os outros poetas, músicos e pintores.

Mas, pastor – alguém vai argumentar – se o cristão tiver contato com tudo isso, ele não pode se contaminar? Claro, há o risco. Reconheço que nem sempre os cristãos percebem a distinção entre o mundano e o cultural, mas insisto que isso não constitui desculpa para a igreja deixar de exercer o seu papel. Lutero não pregava e nem acreditava que a salvação era alcançada pela reforma da sociedade (como dizem os comunistas), mas cria profundamente que a sociedade podia ser reformada pelas ações do homem que Deus reformou.

Não existe música de Deus ou do diabo. Há músicas seculares muito mais corretas teologicamente do que a maioria das músicas produzidas pelos artistas gospel do momento. Não, a política não é do diabo. O Rádio, a televisão, a internet, nada disso é do diabo. Somos nós que entregamos a Ele com medo de assumir a responsabilidade de buscar influenciar esses veículos, pois para influenciar precisamos pagar o preço de ser exemplo.

O desafio que Jesus deixou para seus discípulos não envolve destruir a cultura. É o desafio de estar no mundo, mas não ser dele ou ser influenciado por ele (João 17:14-18). O desafio é de não se conformar ao presente século, mas renovar-se diariamente, mesmo estando no presente século (Romanos 12:1-3). É o desafio de ser Luz no meio de uma geração corrompida (Fp 2:15).

Mas pastor, qual então é o nosso limite?

Quero finalizar postando a definição de pecado mais linda que conheço, e que pode auxiliar o leitor a encontrar tal linha. É o que Suzana Wesley ensinava a seus filhos. Ela dizia: “Tudo que enfraqueça tua razão, diminua a sensibilidade da tua consciência, obscureça tua percepção de Deus ou atenue teu gosto pelas coisas espirituais, tudo o que aumente a autoridade do teu corpo sobre a mente, essa coisa para ti será pecado”.

É hora de parar de ser gospel e começar a sermos mais cristãos de fato.

Alisson Magalhães é Ministro Ordenado na Igreja do Nazareno, formado em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil, professor de Teologia em cadeiras teológicas, pastorais e na área de música e adoração. Autor do livro Cristianismo 4.0 - Desafios para a comunicação cristã no século XXI, à venda pela Book Up Publicações. Atualmente serve com sua esposa, Elaine, como Pastor na Igreja do Nazareno em Otacílio Costa, na Serra Catarinense, onde também atua como jornalista e Secretário de Administração e Comunicação Institucional na Prefeitura de Palmeira/SC.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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