A 43ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU teve início no dia 24 de fevereiro de 2020 e se estendeu até o dia 13 de março, quando foi suspensa em virtude do COVID-19. Na ocasião, chamou atenção o relatório apresentado pelo Relator Especial sobre Liberdade de Religião ou Crença1. O Relator abordou a violência e a discriminação de gênero sofrida por mulheres, meninas e pessoas LGBT, segundo ele, por razões religiosas. O texto trata da necessidade de combate a sérias violações de direitos humanos, como mutilação feminina, estupros, casamentos precoces forçados e espancamentos.
No entanto, o relatório vincula, em muitos momentos, o exercício da liberdade religiosa à prática de discriminação, sem estabelecer ressalvas ou parâmetros claros. O documento não se aprofunda na identificação do que constituiria discriminação, gerando insegurança. Afirmações de textos sagrados, como a Bíblia, por exemplo, referentes à pecaminosidade de relações entre pessoas do mesmo sexo, seriam classificadas como discriminatórias?
O texto parece caminhar para uma resposta positiva, e defende, implicitamente, mudanças doutrinárias nas religiões, com base nas disposições dos órgãos de direitos humanos2. Além disso, expressa “preocupação particular” quanto às objeções de consciência de indivíduos que se opõem, por exemplo, à prática do aborto ou casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Antes de mais, importa afirmar que o exercício da liberdade religiosa não comporta condutas tendentes a sujeitar qualquer indivíduo, seja homem ou mulher, hetero ou homossexual, à situação humilhante, vexatória ou que busque sua exploração, escravização ou eliminação. Inclusive, já nos pronunciamos nesse sentido anteriormente3, e concordamos com a recomendação do Relatório aos Estados, no sentido que devem “combater todas as formas de violência e coerção perpetradas contra mulheres, meninas e pessoas LGBT+ justificadas com referência à prática ou crença religiosa, garantir sua segurança e liberdade pessoais e responsabilizar os autores de tal violência e garantir que as vítimas obtenham reparação”4.
Observamos, porém, que há uma busca pela superação de eventuais divergências que o discurso religioso pode ter em temas moralmente sensíveis, por meio de uma
estratégia de uniformização das cosmovisões, e não pelo estímulo à convivência pacífica entre as diferentes concepções mundividenciais. Seguir tal lógica implica em afronta ao princípio do pluralismo e incentiva um entendimento errado sobre a tolerância. Quanto a isso, as considerações de André Ramos Tavares5 são elucidativas:
Tolerância, no âmbito da liberdade de expressão religiosa, pressupõe, sim, um discurso contrário às demais religiões, em sua pretensão proselitista. A conversão dos adeptos das outras religiões há de se dar pela persuasão dos argumentos, e não pela força ou violência. Este é o sentido constitucionalmente adequado da tolerância, no seio da liberdade religiosa, e não a imposição de que as religiões reconheçam, umas às outras, a validade das crenças opostas, discordantes ou concorrentes.
Quando se propõe que determinadas religiões abandonem seus preceitos, de longa tradição histórica, para aderir a novas interpretações, impostas em nome de uma pretensa proteção a novos direitos, há um risco de esvaziamento da liberdade de consciência e de crença, o que não nos parece a melhor abordagem numa comunidade constitucional.
O ambiente democrático, nesse sentido, onde se respeita a liberdade de consciência e de crença, deve possibilitar a participação cidadã, independentemente da fé adotada, nos debates públicos, vez que “a liberdade de consciência permite a referência a parâmetros suprapositivos na fundamentação, leitura e crítica da sociedade e dos poderes estabelecidos, abrindo aos indivíduos a possibilidade de exercer uma crítica moral ao direito positivo”6.
Não se deve, por conseguinte, silenciar o discurso religioso das pautas públicas moralmente sensíveis, a exemplo daquelas concernentes à sexualidade, ao casamento e ao aborto. A melhor estratégia, dentro de uma sociedade pluralista, tolerante e inclusiva, é a de abrir espaço para o diálogo, ainda que haja dissenso, permitindo-se que ideias opostas se sujeitem ao crivo dos debates democráticos.
Concordamos com o relatório no sentido de que, quando reivindicações baseadas na liberdade de religião ou crença colidem com reivindicações de não discriminação, “uma análise cuidadosa de todas as informações relevantes deve ser feita, para maximizar a proteção de ambos os conjuntos de direitos, por meio de uma análise de proporcionalidade”. A resolução desses conflitos, porém, não pode consistir em medidas que neguem a liberdade de consciência individual, ou que busquem interferir, de modo arbitrário e sem justificação, na confissão de fé das organizações religiosas.
Enfatizamos que a liberdade religiosa não pode ser utilizada como fundamento para a violência, humilhação ou exploração, nos termos, inclusive, de decisão do STF sobre a matéria7. Não representa violência, no entanto, a manifestação e adesão a princípios de fé que não são majoritariamente aceitos. E esta é a distinção que deve ser evidenciada ao se tratar da temática: nem toda discordância, mesmo que gere aborrecimento e contrariedade, é sinônimo de violação de direitos. A democracia precisa da livre expressão da consciência de todos os seus membros, mesmo quando eles apresentam desafios desconfortáveis ao status quo.
A vida em uma sociedade pluralista fortemente dividida quanto a questões que dizem respeito à vida, matrimônio e família, requer, tanto quanto possível, a acomodação de objetores por motivos de consciência, quanto o respeito por aqueles que não compartilham as mesmas visões. Concordamos com Ryan Anderson nesse ponto, no sentido de que “proteger a liberdade religiosa e os direitos da consciência é a personificação do princípio do pluralismo, que promove uma esfera civil mais diversa. De fato, a tolerância é essencial para promover a coexistência pacífica mesmo em meio a divergência”.8
Por Dra. Raíssa Martins, Coordenadora do departamento Jurídico da ANAJURE.
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS - ANAJURE é uma entidade brasileira composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).
Leia o artigo anterior: O MPF e a FUNAI: como a nomeação de um cristão demonstra falhas na Liberdade Religiosa
1. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session43/Documents/A_HRC_43_48.docx>. Acesso em: 24 mar. 2020.
2. https://www.catholicnewsagency.com/column/the-holy-see-slams-un-report-on-religious-freedom-says-it-is-an-attack-to-religious-freedom-4128
3. https://anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-a-tese-firmada-no-julgamento-da-ado-26-relativa-a-criminalizacao-da-homotransfobia/
4. A/HRC/43/48, p. 18.
5. TAVARES, André Ramos. O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização. Disponível em: <http://www.cjlp.org/direito_fundamental_discurso_religioso.html>. Acesso em: 25 mar. 2020.
6. LOPES CARVALHO, Felipe Augusto. Liberdade e Objeção De Consciência: Fundamentos Histórico-Dogmáticos E Funcionalidades Constitucionais. Revista Latinoamericana de Derecho y Religión, [S.l.], v. 5, n. 2, dic. 2019. ISSN 0719-7160. Disponível em: <http://www.revistalatderechoyreligion.com/ojs/ojs-2.4.6/index.php/RLDR/article/view/128/178>. Acesso em: 27 mar. 2020, p. 33.
7. (...) 5. O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior (STF – RHC: 134682 BA – BAHIA 4000980-28.2016.1.00.0000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 29/11/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-191 29-08-2017).
8. ANDERSON, Ryan T. The Defense of Marriage Isn’t Over, In: Public Discourse. Disponível em: http://www.thepublicdiscourse.com/2014/10/13889/
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