Não há uma lei ou princípio sequer, nacional ou supranacional, que vede o acesso de pessoas a cargos públicos em razão das suas convicções religiosas.
Causou espécie a recente tentativa de Procuradores da República de, por meio de uma ação civil pública, impedir a nomeação do antropólogo e pesquisador evangélico Ricardo Lopes Dias como Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da FUNAI1. Foi presumido que ele, embora desvinculado de uma agência missionária há mais de 10 anos, teria por objetivo, na verdade, evangelizar tais povos indígenas. Desta forma, estaria, segundo alegado, agindo em sentido contrário à política indigenista e em conflito com as exigências para o cargo.
A Juíza Federal competente, acertadamente, não concedeu a tutela de urgência (liminar) que pretendia suspender a nomeação do antropólogo, mas, nesta mesma decisão, também não aceitou a Associação Nacional de Juristas Evangélicos como amicus curiae no processo. Ora, a ANAJURE pretendia defender a liberdade religiosa, a de expressão e a promoção dos deveres e direitos humanos fundamentais, fornecendo elementos técnicos-jurídicos importantes para o deslinde do feito2.
A Constituição, cujo teor é exigido com rigor no concurso para o cargo - e para o exercício - de Procurador da República, foi afrontada em pelo menos dois dispositivos na instauração da demanda.
O inciso VIII do art. 5, da CF/88, reza que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política...”. Portanto, a “fundamentação” da demanda ministerial intencionando obstar a nomeação do antropólogo por ter sido missionário, se mostra preconceituosa e afrontosa a esse fundamental princípio, cuja observância, ao contrário do que foi feito, deveria ser defendida pelo MPF3.
Não há uma lei ou princípio sequer, nacional ou supranacional, que vede o acesso de pessoas a cargos públicos em razão das suas convicções religiosas; na verdade, essa postura assemelha-se mais ao crime de discriminação (Lei n. 7.716/89) e não é uma ação legítima.
Outro dispositivo violado foi o art. 19, inciso I, da CF/88 que dispõe “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”. É o marco constitucional da laicidade estatal brasileira.
A esse respeito, é comum ouvirmos, discursos garantindo o óbvio, isto é, que o Estado brasileiro é laico. Mas as falas que normalmente vêm em seguida demonstram, a contrario sensu, uma abjeta aversão a laicidade, defendendo-se, na verdade, o odioso laicismo que é uma forma de exclusão completa da religião do espaço público – o que é frontalmente contrário ao texto constitucional brasileiro. Surge aí uma falácia, pois se propaga a laicidade, mas com conteúdo laicista, o que inverte completamente o princípio. Pensamos que isso ocorreu no presente caso.
Mas, deixando de lado a violação pelo MPF ao caro direito fundamental de liberdade religiosa do antropólogo, que, diga-se, independentemente de sua fé, é altamente capacitado para exercer as funções do referido cargo4, observa-se que os cristãos brasileiros estão sofrendo uma violência velada e, pior, advinda de alguns setores e agentes públicos os quais deveriam proteger os Direitos e Liberdades Fundamentais e não atacá-los.
Diante desse lamentável fato, o que nos vem à mente é a antiga segregação - até a morte - de doentes para o vale dos leprosos; mais recentemente, eles eram enviados para os leprosários. A hoje chamada hanseníase era altamente contagiosa, sem cura. Os doentes eram retirados da sociedade para evitar o contágio social. Na Bíblia, encontramos registros de pessoas segregadas dessa forma. No épico filme Ben-Hur (MGM, de 1959) imortalizou-se a imagem de como era a “vida” dos leprosos nesses locais.
E é bem assim que alguns desejam fazer com os cristãos, em especial com os que se alinham às igrejas históricas: segregá-los para bem longe do espaço público, pois, presumem, equivocadamente, que pessoas como Ricardo (que já somam mais de 50 milhões só no Brasil!) contaminam a sociedade (no caso, os indígenas) com a “doença” chamada fé evangélica, muito embora não seja a evangelização – e nem poderia ser – tarefa a ser desempenhada por ele no exercício do cargo público.
Oportunamente, necessário esclarecer que, embora deva ser preservada a autonomia dos povos indígenas em suas terras e assegurados todos os direitos humanos e fundamentais (Decreto n. 5.051/04 e Convenção n. 169, da OIT), não há uma orientação sequer, nos principais documentos sobre o tema, que vede a presença de religiões ou crenças nestas áreas. Vide, por exemplo, o caso paradigmático das diretrizes do Supremo Tribunal Federal sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR) e as várias decisões judiciais sobre o assunto, nas quais não há tal obstáculo.
Diante deste cenário, preferimos presumir que os procuradores equivocaram-se, talvez motivados por algum preconceito que os levaram à discriminar o Ricardo. Esse tipo de sentimento reside no emocional do sujeito e impede-o de agir com clareza. Talvez também, antes de peticionar, tenham deixado de dar uma olhadinha na Carta Constitucional, nos documentos estrangeiros e na jurisprudência nacional e internacional, cuja leitura os fariam lembrar dos dispositivos mencionados.
De todo modo, é preciso reafirmar que preconceito, discriminação e presunção deste jaez é que não podem mais encontrar guarida no espaço público, muito menos na atividade do Ministério Público Federal, instituição de grande importância para o Brasil. Enviemos para o “vale dos leprosos” de hoje esses sentimentos e não os cristãos, os quais muito contribuíram, e ainda contribuem, para o progresso social da nação.
2. Sobre o requerimento de ingresso como amicus curiae, a ANAJURE já manifestou contrariamente ao entendimento esposado na decisão, em razão da negativa ter adotado fundamentos estranhos ao texto legal. Para mais detalhes, acesse: www.anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-a-decisao-no-processo-referente-a-nomeacao-do-coordenador-geral-de-indios-isolados-e-de-recente-contato-da-funai/
3. Vale destacar que os predicados técnicos do pesquisador, para o exercício da função, já foram destacados na Nota Pública emitida em conjunto pela Frente Parlamentar Mista da Liberdade Religiosa, Refugiados e Ajuda Humanitária (FPMLRRAH) e pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE. Para mais detalhes, acesse: www.anajure.org.br/anajure-e-fpmlrrah-se-pronunciam-sobre-acao-do-mpf-para-suspensao-da-nomeacao-do-antropologo-e-missionario-ricardo-lopes-dias-na-funai/
4. Imbróglio semelhante ocorreu com a nomeação do Dr. Benedito Guimarães à Presidência da CAPES, conforme defendido pela ANAJURE em Nota de Apoio. Para mais detalhes, acesse www.anajure.org.br/nota-de-apoio-ao-dr-benedito-guimaraes-neto-presidente-da-capes/
Por Acyr de Gerone, Diretor Jurídico da ANAJURE.
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS - ANAJURE é uma entidade brasileira composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
Leia o artigo anterior: O papel da ANAJURE no Brasil e no Mundo
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