Tem circulado nas redes sociais um vídeo do ator e comediante Rowan Atkinson (conhecido pelo personagem “Mr. Bean”) defendendo a importância da liberdade de expressão. No clipe, de 2012, Atkinson declara que “a liberdade de ser inofensivo não é liberdade alguma”. Seu posicionamento fez parte de uma campanha para revogar ou reformar um estatuto que permitia a prisão de quem proferisse uma ofensa. O lema da campanha era “Sinta-se livre para me ofender!”.
Atkinson fez referência à defesa contemporânea da liberdade de expressão no Parlamento Inglês pelo Lorde Geoffrey Dear, seu cobeligerante na campanha. Dear, por vez, se respaldou na decisão de 1999, na qual o celebrado juiz (Lord Justice) Sedley declarou: “A livre expressão inclui não apenas o inofensivo, mas o irritante, o contencioso, o excêntrico, o herético, o indesejado e o provocativo - desde que não tenda a provocar a violência. A liberdade para falar apenas inofensivamente não vale a pena ter” (Sedley, 1999, apud Ezard, 1999).
No caso concreto, Sedley decidiu a favor da liberdade de expressão de um grupo cristão descrito como “fundamentalista”. Igualmente, o Parlamento — influenciado por Dear, Atkinson e outros — seguiu o precedente de Sedley e aprovou, ao fim, uma nova redação do estatuto removendo a possibilidade de prisão por ofensa.
Estes exemplos são breves recortes de como a liberdade de expressão frequentemente prospera nos países do Common Law (EUA, o Reino Unido, etc.) mais do que no Brasil. Nesses países, há um apreço maior pelo uso de precedentes: os juízes, ao decidirem, já têm em mente a construção de um direito que poderá ser reaproveitado, ao passo que reaproveitam o — e se submetem ao — que foi elaborado no passado. O direito é construído dentro de parâmetros de coerência e comprometimento normativo, fixando entendimentos que fornecem uma previsibilidade maior ao cidadão comum.
O contraste com a realidade do Brasil é marcante. Aqui — notavelmente no Supremo Tribunal Federal (STF) — se observa uma triste tendência de “decidir o caso sem decidir a questão”, situação na qual os julgadores evitam uma tomada de posição definitiva e buscam preservar sua liberdade de decidir casos futuros, sem compromisso (além, talvez, de um ambíguo “considerar” ou “levar em conta”) com decisões anteriores. O resultado é a arbitrariedade e insegurança jurídica (Leite, 2019).
Essa precariedade é particularmente evidente no debate público sobre a sexualidade humana.
A elevada importância do tema para grupos diferentes torna qualquer discussão crítica extremamente sensível e complexa. De certa forma, a sexualidade expressa a autocompreensão e a concepção de mundo dos indivíduos. Criticar a prática ou ética sexual do outro facilmente se confunde com uma crítica do indivíduo e seus princípios e valores mais íntimos.
A suposição crescente de que opiniões críticas reforçam estruturas de opressão e/ou despertam “gatilhos mentais” que desembocam na violência (sintetizado, por exemplo, na acusação “sua opinião mata!”) agrava ainda mais a situação.
Na Inglaterra, uma norma de 2008 estipulou que, “para evitar dúvida, a discussão ou a crítica de condutas ou práticas sexuais ou a exortação das pessoas para que se abstenham ou modifiquem tais condutas ou práticas não deve ser considerado por si só como ameaçador ou intenção de incitar ódio” (The Christian Institute). Apesar de muitos esforços para derrubar esta cláusula (inclusive sob o argumento de que a mesma era desnecessária), ela tem sido preservada e mantida intacta até então.
O correspondente brasileiro seria a decisão do STF na ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) 26, em 2019. Naquela ocasião, o STF criminalizou a discriminação motivada pela orientação sexual (homofobia) ou identidade de gênero (transfobia), real ou presumida, de alguém.
A decisão teve o cuidado de estabelecer uma dupla ressalva, estipulando que (1) a criminalização da homotransfobia não limitaria a liberdade de expressão dos religiosos, desde que (2) não se configurasse o discurso de ódio.
De 2019 para cá, a dupla ressalva tem sofrido contínuos ataques e tentativas de esvaziamento.
Em primeiro lugar, frequentemente se estica o conceito de discurso de ódio (fenômeno conhecido como “concept creep”). Quer em boa ou má fé, políticos, artistas e instituições diversas têm colaborado vigorosamente, promovendo a visão de que qualquer discurso que crítica, contradiz, desqualifica ou se opõe à homo e/ou transsexualidade — quer como fenômenos abstratos, condutas sexuais próprias de uma ética sexual pagã (anticristã), ou ainda como um movimento jurídico-político — é “odioso” e, portanto, o crime popularmente conhecido como discurso de ódio.
O efeito desta posição — que se opõe ao que diz a Constituição, a jurisprudência do STF e os direitos humanos — é um clima de censura e cancelamento, no qual os adeptos de uma linha de pensamento buscam intimidar e inibir quem pensa diferentemente. Este problema é conhecido na doutrina jurídica como o “chilling effect”, o “esfriamento” ou efeito inibitório que resulta quando um grupo ajuíza tantas ações e denúncias contra outro rival, que o grupo alvejado — desgastado emocional, social e financeiramente —deixa de exercer direitos legítimos para ter um pouco de paz.
Uma das estratégias que têm sido usadas, de 2019 pra cá, é o ajuizamento de Ações Civis Públicas (ACP) pedindo danos morais. Essas ações permitem que seus autores enfatizem seus sentimentos de ofensa, ultraje e incômodo, ignorando, ou minimizando a relevância da dupla ressalva da ADO 26. Ganhando ou perdendo, quem ajuíza a ação “ganha” ao desgastar a reputação e as finanças de quem acusa, e, assim, intimida-se outras pessoas que poderiam futuramente aderir ao discurso atacado.
Em regra, essas ações têm como alvos lideranças evangélicas e contam com o apoio do Ministério Público (MP). Observa-se uma tendência generalizada — dos acusadores, do MP e dos julgadores — a ignorar o limiar alto necessário para a restrição da liberdade de expressão (especialmente religiosa) e o frequente emprego da fórmula “MNA” - “a liberdade de expressão é importante, MAS não é absoluta”.
Este truísmo é citado como fundamento autoevidente para restringir a liberdade de expressão, sem que se justifique porque aquela restrição específica é o caminho juridicamente preferível ou necessário. A presunção implícita — mas inverídica — é que o acusado disse o que disse porque erroneamente presumiu a liberdade de expressão como absoluta, que poderia dizer qualquer barbaridade com impunidade — presunção que muitas vezes serve a quem acusa como ferramenta para não se dar o trabalho de justificar, juridicamente, por que aquela expressão específica merece sanção (criminal ou civil) (cf. Leahy e Leite, 2021).
Uma dessas ACPs (no 0708412-98.2023.8.07.0001) foi ajuizada no ano passado por duas ONGs LGBT+ contra a Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Brasília. A ação surgiu em resposta a uma pregação de 19/02/2023, na qual o Pr. David Eldridge disse (entre muitas outras coisas): “Todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lésbica tem uma reserva no inferno, todo transgênero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno”.
Nas ações parecidas, não se observa qualquer receio em processar a pessoa física do pastor — inclusive aqueles residentes no exterior, como nos casos do Pr. André Valadão e sua irmã, Pra. Ana Paula Valadão Bessa. É provável que o ajuizamento da ação diretamente contra a igreja se deu pelo preletor ser um convidado estrangeiro, sem patrimônio ou vínculo fixo com o Brasil.
O Caso David Eldridge teve grande repercussão inicial, quando a justiça atendeu o pedido de urgência para remover imediatamente o vídeo das redes sociais.
Os pedidos apresentados pelas ONGs são notáveis pela sua amplitude e severidade. As autoras da ação pediram, além da remoção dos vídeos, a condenação da Igreja, obrigando-a a fazer três coisas: (1) pagar R$5 milhões a título de danos morais, (2) se retratar publicamente, divulgando essa retratação por pelo menos um ano, e (3) instituir “medidas e mecanismos de compliance antidiscriminatório para prevenção, autorregulamentação e fiscalização” para prevenir contra futuros discursos discriminatórios.
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) manifestou-se favoravelmente aos pedidos, desconsiderando — ou pelo menos conferindo importância inferior — às liberdades de expressão e religião.
O que o Caso David Eldridge tem de diferente é o brilhantismo técnico da decisão proferida, no início de agosto de 2024, pela Juíza Vivian Lins Cardoso Almeida.
A decisão é uma verdadeira aula de Direito. Indo na contramão da tendência à arbitrariedade e sentimentalismo, diligentemente costura-se o que a Lei, os tratados internacionais de Direitos Humanos e o STF já elaboraram sobre o assunto. Produziu-se, assim, uma decisão sólida, bem fundamentada com critérios jurídicos.
Da jurisprudência do STF, a decisão aproveita explicitamente os precedentes consagrados na ADO 26 (2019), na ADI 2.566/DF (2018) e no RHC 134.682/BA (Caso Jonas Abib, 2016). São decisões recentes e que conjuntamente fixam (se respeitadas) um entendimento normativo coeso. Nas três ocasiões, o STF optou pela proteção do direito ao proselitismo — isto é, o direito de se buscar intencionalmente convencer os outros de que estão errados e devem aderir às convicções religiosas divulgadas pelo emissor — enquanto elemento inegável da liberdade religiosa, mesmo (ou especialmente) quando isto acomete incômodo e desconforto nos outros.
Resume a decisão: “não se mostra adequada a instrumentalização do Poder Judiciário para restringir a liberdade de expressão religiosa de uma corrente que prega valores contrários aos defendidos pelas autoras, mormente porque não se constata a existência de discurso de ódio”, especialmente “considerando que a conduta religiosa/proselitismo integra o núcleo essencial da liberdade de expressão religiosa – posição adotada pela [STF] seu afastamento, no caso concreto, acarretaria o sacrifício completo do referido direito fundamental.”
A conclusão natural — polêmica, mas juridicamente correta — decorre desse raciocínio. Como diz a decisão: “a afirmação de que pessoas não heterossexuais e transgêneros possuem ‘uma reserva no inferno’, constitui exercício legítimo do proselitismo religioso”.
Notando que “a crítica ao comportamento tido por ‘desviante’ pelo pastor não foi dirigida apenas a membros da comunidade LGBTQIA+” e que “em nenhum momento o pastor defende que pessoas que não se reconheçam como heterossexuais ou cisgêneros deverão ser convertidas à força, agredidas, escravizadas ou que não devem ter seus direitos respeitados/reconhecidos”, a decisão aplica os critérios desenvolvidos pelo STF — e frequentemente ignorados em tais casos — para dizer que não houve discurso de ódio.
Ausente o discurso de ódio, não há justificativa legítima para punir o preletor — ou, no caso, a igreja que o convidou e divulgou seu discurso — independente da percepção alheia da necessidade, qualidade, polidez, adequação ou cordialidade do mesmo.
Essa decisão merece ser celebrada não apenas pela forma que decide o caso, mas por fixar e se comprometer com um entendimento normativo que garanta maior previsibilidade e segurança jurídica no assunto. Seguindo o padrão que tem sido adotado pela ONU, no campo dos Direitos Humanos internacionalmente e pela Suprema Corte dos EUA, a decisão advoga como antídoto para discursos indesejados o “contra-discurso” (“counter-speech”).
Esse princípio diz que discursos ruins ou indesejados devem ser combatidos com mais discurso, e não a imposição do silêncio à força. Diz a decisão: “a (in)adequação da interpretação do texto bíblico [deve] ser relegado ao campo do debate público, não se incluindo no papel do Poder Judiciário endossar/reprovar qualquer posicionamento”.
Contraste-se a lucidez dessa “autocontenção” do Poder Judiciário com a infelicidade da decisão recente que condenou a Pra. Ana Paula Valadão a pagar milhares de reais a título de danos morais, com fundamento na compreensão do juiz que sua fala não tinha respaldo bíblico.
Por fim, a decisão é sagaz ao apontar o contrassenso de se alegar danos morais em nome da comunidade LGBTQIA+, já que “a afirmação de que certas pessoas irão para o Inferno não parece ser capaz de agredir moralmente, de forma justa e intolerável, toda a comunidade LGBTQIA+, porquanto certamente há membros do referido grupo social que praticam outras religiões em que não se acredita no Inferno, que não professam nenhuma religião, que são ateus ou mesmo que possuem cumpre destacar novamente, uma leitura mais inclusiva do cristianismo.”
Por vezes, o óbvio precisa ser dito: quem julga quem vai, ou não, pro céu é Deus. Quem ensina e interpreta o que as Escrituras dizem são, em regra, pastores e líderes religiosos. Tais falas devem importar somente aos que creem, já que por sua própria natureza religiosa/metafísica, não possuem relevância alguma para públicos externos. Aos juízes, cabe punir discursos que, se escondendo atrás da religiosidade, buscam arregimentar pessoas para cometer violência contra qualquer grupo ou pessoa — mas sendo o Estado laico, jamais poderá um juiz “prescrever o que será ortodoxo em religião”, como bem disse o Ministro-Relator Celso de Mello na ADO 26.
Referências:
Ezard, John. Preacher wins freedom of speech. 24 jul. 1999. UK News. The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/uk/1999/jul/24/johnezard. Acesso 13 ago. 2024.
Leahy, Victor. Leite, Fábio Carvalho. #062 Liberdade de expressão no Brasil. Podcast Onze Supremos. Entrevista concedida a David Sobreira. 24 set. 2021. Disponível em: https://onzesupremos.podbean.com/e/62-liberdade-de-expressao-no-brasil-com-fabio-leite-e-victor-leahy/. Acesso 01 ago. 2024.
Leite, Fábio Carvalho. Liberdade de expressão religiosa e discurso de ódio contrarreligioso: a decisão do STF no RHC 134.682. In: Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 7, n. 3, p. 227-242, out. 2019.
The Christian Institute. Incitement to ‘homophobic’ hatred offence. Disponível em: https://www.christian.org.uk/theology/apologetics/christian-freedoms-and-heritage/incitement-to-homophobic-hatred-offence/. Acesso 13 ago. 2024.
Sobre autor:
Joshua Fantini Blake é membro da ANAJURE, advogado em Belo Horizonte/MG e está concluindo seu Mestrado em Direito na Universidade FUMEC.
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS (ANAJURE) é uma entidade brasileira fundada em 2012, sendo composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP)
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
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