Daniel Ramos é professor de teologia deste 2013 pela EBPS (Assembleia de Deus em Belo Horizonte). Graduado em Teologia pela PUC Minas (2013), pós-graduação em Gestão de Pessoas pela PUC Minas (2015), especialista em Docência em Letras e
Introdução: Entre a Vocação e a Profissão
A questão da remuneração pastoral situa-se na complexa interseção entre teologia, economia e eclesiologia. Frequentemente, o debate é polarizado entre uma espiritualização excessiva, que vê qualquer discussão financeira como contaminadora da pureza ministerial, e uma pragmática secularizada, que reduz o pastorado a uma mera profissão clerical.
Argumenta-se aqui que as Escrituras, longe de serem ambíguas ou meramente sugestivas, estabelecem um princípio teológico robusto e coerente para o sustento material daqueles que se dedicam integralmente ao ministério da Palavra e ao cuidado do rebanho.
Este princípio, fundamentado na reciprocidade da aliança, na autoridade apostólica e na analogia do Antigo Testamento, não apenas legitima o salário pastoral como o constitui numa questão de fidelidade doutrinária e justiça comunitária.
I. O Fundamento do Antigo-Testamento: O Sacerdócio Levítico como Paradigma e Prefi
A primeira camada da argumentação bíblica reside no sistema levítico do Antigo Testamento. A tribo de Levi foi escolhida por Deus para o serviço sacerdotal e para cuidar do Tabernáculo (Números 1:47-54). Em contrapartida, não recebeu uma herdade territorial como as outras tribos. O seu sustento provinha diretamente dos dízimos e das ofertas alçadas do povo (Números 18:21-24). Este arranjo divino estabelece um princípio teológico primordial: aqueles consagrados para o serviço religioso exclusivo devem ser sustentados pela comunidade que beneficiam.
Este modelo não era um mero expediente econômico, mas uma expressão da economia da aliança. O sustento dos levitas era um ato de adoração e reconhecimento de que Deus era o dono de todas as coisas (Malaquias 3:8-10). O profeta Malaquias chega a acusar a nação de roubar a Deus justamente por sonegar os dízimos e as ofertas, que resultava no definhamento do ministério levítico. No contexto neotestamentário, embora o sacerdócio levítico ritual tenha sido cumulado em Cristo, o princípio subjacente de sustento comunitário para os ministros religiosos permanece como uma analogia poderosa, conforme será explicitado pelos escritos paulinos.
II. A Explicitação Neotestamentária: A Autoridade Apostólica e o Princípio da Reciprocidade
O Novo Testamento não revoga este princípio; antes, o reafirma e o aprofunda, transferindo-o do contexto sacerdotal levítico para o ministerial apostólico e pastoral. A autoridade para esta transição é estabelecida pelo próprio Jesus Cristo. Ao enviar os setenta discípulos, Ele declara de forma inequívoca: "O trabalhador é digno do seu salário" (Lucas 10:7). Esta afirmação, citada posteriormente por Paulo, torna-se o locus classicus do argumento.
O apóstolo Paulo dedica uma atenção significativa ao tema em 1 Coríntios 9. Neste capítulo, ele apresenta uma defesa multifacetada do direito apostólico ao sustento material:
1. Argumento da Analogia: Ele recorre à experiência comum: "Quem jamais vai à guerra às suas próprias expensas? Quem planta uma vinha e não come do seu fruto? Quem apascenta um rebanho e não se alimenta do leite do rebanho?" (1 Coríntios 9:7). O princípio é universal e intuitivo.
2. Argumento da Lei Mosaica: Ele explicitamente vincula o sustento ministerial ao princípio do Antigo Testamento: "Não foi porventura por nós que ele disse isto? Certo que foi por nós que está escrito; porque o que lavra deve lavrar com esperança e o que debulha deve debulhar com esperança de ser participante" (1 Coríntios 9:10, referindo-se a Deuteronômio 25:4).
3. Argumento da Reciprocidade Espiritual-Material: Este é o cerne teológico da questão. Paulo estabelece uma troca de dons dentro do corpo de Cristo: "Se nós vos semeamos as coisas espirituais, será muito que de vós recolhamos as coisas materiais?" (1 Coríntios 9:11). Aqui, o sustento não é esmola ou um salário no sentido estritamente comercial; é uma contrapartida justa e um ato de participação (koinonia) da comunidade no ministério daqueles que a servem espiritualmente.
É crucial notar que Paulo, em sua missiologia específica, muitas vezes abria mão deste direito (1 Coríntios 9:15) para não criar embaraços ao evangelho. No entanto, sua renúncia voluntária pressupõe a existência do direito. Ele abdica de algo que lhe é legitimamente devido, o que reforça, em vez de negar, o princípio geral.
III. Desdobramentos Eclesiológicos e Objeções Contemporâneas
A aplicação deste princípio aos pastores locais (e não apenas aos “apóstolos” itinerantes) é confirmada nas epístolas pastorais. Paulo instrui: "Os presbíteros que governam bem sejam estimados por dignos de duplicada honra, principalmente os que trabalham na palavra e na doutrina" (1 Timóteo 5:17). O termo grego para "honra" (timē - τιμή) neste contexto carrega inquestionavelmente uma conotação material e financeira, como fica claro no versículo seguinte: "Porque diz a Escritura: Não ligarás a boca ao boi que debulha. E: Digno é o trabalhador do seu salário" (1 Timóteo 5:18).
Uma objeção comum, frequentemente de inspiração anabatista ou pentecostal primitivista, alega que o modelo do Novo Testamento era puramente carismático e voluntário, não profissional. Esta objeção, contudo, confunde a natureza do chamado (que é indeed vocacional e espiritual) com a necessidade do sustento (que é prática e material). Um ministério eficaz de pregação, ensino e cuidado pastoral exige dedicação integral (Atos 6:2-4). Esperar que um pastor sustente a si mesmo através de um trabalho secular (o modelo do tentmaker, em português “fazedor de tendas”), enquanto possível e por vezes necessário, pode, em muitos contextos, levar ao esgotamento ministerial e à negligência dos deveres espirituais para os quais foi chamado. A prática neotestamentária não proíbe o trabalho secular, mas estabelece o sustento comunitário como a norma ideal para permitir a dedicação plena ao ministério.
Conclusão: Entre a Graça e o Dever
Portanto, a fundamentação bíblico-teológica para o salário pastoral é sólida e multifacetada. Ela emerge do princípio levítico de sustento, é explicitamente ordenada por Cristo, é defendida com rigor lógico e teológico por Paulo e é codificada como norma para a liderança eclesial local.
O salário pastoral, assim entendido, não é um "pagamento por serviços prestados" em um contrato mercantil, mas sim um ato de justiça comunitária ("o trabalhador é digno") e de reciprocidade na graça ("se nós vos semeamos as coisas espirituais..."). É um mecanismo prático que permite o exercício fiel do ministério da Palavra e, como tal, é uma das marcas de uma igreja que leva a sério tanto a sua missão espiritual quanto o bem-estar daqueles que nela labutam.
Negar este princípio, por conseguinte, não é apenas uma questão de frugalidade financeira, mas um potencial descumprimento de um mandamento escriturístico e uma falha em reconhecer o valor do ministério que sustenta a própria vida da comunidade de fé.
Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor, possui Licenciatura em Letras Português-Inglês (UNICV, 2024) e bacharelado em Teologia (PUC MINAS, 2013). Pós-graduado em Docência em Letras e Práticas Pedagógicas (FACULESTE, 2023). Mestre em Teologia (FAJE, 2015). Atualmente é colunista do Portal Guia-me, professor de Língua Portuguesa no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e Ensino Médio e de Língua Inglesa no Ensino Fundamental (ll) da SEE-MG, professor de Teologia no IETEB e professor de Português Instrumental do IE São Camilo. Escreveu dois livros, "Curso de Teologia: Vida com Propósito" (AMOB, 2023) e "Novo Curso de Teologia: Vida com Propósito (IETEB, 2025). Além de possuir mais de 20 anos de experiência na ministração da Palavra. É membro da Assembleia de Deus em Belo Horizonte (desde sempre), congrega no Templo Central.
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
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