A violência nossa de cada dia!

Radicalismos existem, sendo praticados por extremistas, sejam eles de esquerda ou de direita, ateus ou religiosos.

Fonte: Guiame, Eduardo SilvaAtualizado: quarta-feira, 4 de dezembro de 2019 às 18:58
(Foto: Reprodução/Facebook)
(Foto: Reprodução/Facebook)

Em publicação recente, o portal Guiame noticiou sobre um episódio de violência e vandalismo contra um templo no Chile: “Igreja é vandalizada e saqueada por manifestantes no Chile”

A matéria nos abre a possibilidade de termos um enfoque maior sobre os fatos, para não ficarmos presos apenas ao episódio da igreja que foi atacada, devemos falar das manifestações e dos movimentos de rua entre outros que acontecem nesse momento em diferentes países.

As manifestações recentes no Equador, Chile e Bolívia e agora na Venezuela (para nos atermos à América Latina) estão nos noticiários trazendo preocupação quanto às consequências desses protestos, uma vez que, não raro,  terminam em confrontos, violência e mortes.

Essa é uma questão muito delicada e envolve não só o cenário atual, mas uma triste história de séculos de colonização, desigualdade social, genocídio da população indígena e extração inescrupulosa de riquezas naturais, ditaduras e governos frágeis do ponto de vista do bem-estar social.

Proponho introduzir aqui duas questões que podem e devem ser aprofundadas.

A primeira trata da realidade latino-americana; a segunda, da violência.

Sugiro inicialmente a leitura da matéria a seguir:

“Viezzer e Grondin, na apresentação de seu livro ‘O Maior Genocídio da História da Humanidade — mais de 70 milhões de vítimas entre os povos originários das Américas - Resistência e Sobrevivência’, citam documento que assegura que a invasão europeia nas Américas, desde 1492, provocou um extermínio entre 90 e 95% da população total. Assustados com esses dados, foram pesquisar e chegaram à conclusão de que a conquista e ocupação territorial pelos europeus provocou, ao longo dos séculos, cerca de 70 milhões de mortos. Sem dúvida, o maior genocídio da história da humanidade.”

Se você se emociona e fica indignado assistindo os filmes “A lista de Schindler”, “O menino do pijama listrado”, “Diário de Anne Frank”,  se se revolta quando lê sobre os campos de concentração e os horrores perpetrados pelo nazismo, certamente também irá se sensibilizar com os milhões de índios que foram mortos nos processos de colonização. Salvo se você for daqueles (creio fortemente que não é o caso do caro leitor) que creem que índio não é gente, ou é preguiçoso e indolente, por isso sofre as consequências, não tem alma ou coisa do gênero. Digo isso pois os países da América Latina têm forte presença indígena em sua formação e é preciso reconhecer sua luta por sobrevivência e afirmação de seus direitos.

Sugiro ainda para os que quiserem se aprofundar em nossa história, a leitura do livro do escritor uruguaio Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”.

Tendo feito essa ressalva sobre a complexidade do tema e das demandas das populações, passemos ao segundo tema: a violência, no caso, das manifestações.

A violência existe tanto de um lado quanto do outro, não só na América Latina, mas em outras partes do mundo. Além da tensão gerada entre manifestantes e forças do Estado, existem movimentos violentos que se infiltram nas manifestações para vandalizar e existe também a violência policial e ou militar, por vezes excessiva e desnecessária. O ambiente por vezes se transforma em uma verdadeira guerra onde, ao final, todos precisam contabilizar seus mortos e feridos, o que só faz aumentar o ressentimento, a revolta, o fortalecimento do ódio como afeto mobilizador e o desejo de vingança.

Quero fazer um alerta: não podemos dar lugar à generalização tão em voga em nosso tempo. Precisamos diferenciar o que são as legítimas reinvindicações de um povo e o que são os excessos cometidos por um determinado grupo de manifestantes que não representam a maioria; o mesmo vale para as forças policiais, repito, não se pode generalizar. Em um passado recente assistimos a manifestações na Inglaterra, no Brasil, e agora nos países vizinhos, além de Hong-Kong, do outro lado do planeta, que foram marcadas, em alguns casos, por esse tipo de movimento violento, sendo os “Black blocks” um dos mais conhecidos, mas não único. Veja que não são eles que comandam as manifestações, não são eles que se sensibilizam com as demandas da população e organizam os movimentos, mas se aproveitam desse cenário para atuarem de forma agressiva e violenta. Eles se autointitulam anarquistas. Essa atitude também está presente em movimentos de ultradireita e que fazem uso do mesmo expediente. Podemos citar movimentos neonazistas e de supremacia branca entre outros. Vale aqui a menção a um grupo de “skinheads”  que ficou famoso no Brasil nos anos 1980 e 1990, os “Carecas do ABC”, cujo lema era “Deus, pátria e família” (lema interessante, não é mesmo?) e sua marca registrada era o uso da violência. No ano 2000, espancaram até a morte Edson Neri da Silva por ser homoafetivo. Os responsáveis foram julgados e condenados. Portanto, a violência não é uma questão ideológica, pois radicalismos existem, sendo praticados por extremistas, sejam eles de esquerda ou de direita, ateus ou religiosos. Como afirma Jack David Eller em seu livro “Introdução à antropologia da religião”: “A violência, a agressão e a destrutividade fazem parte não só da condição humana, mas também da condição natural.” (p. 392)

Antes de terminar, vamos voltar à matéria inicial que tratava de vandalização de um templo. Ora, isso certamente é inaceitável, mas pergunto: É aceitável que templos de religiões africanas sejam invadidos e vandalizados como tem acontecido em diversos lugares no Brasil?

A resposta é não! Nossa moral não pode ser seletiva, ou uma “moral dupla” como diria Freud, onde o que o outro faz é errado, mas se eu o fizer está tudo bem.

A gramática da violência não condiz com o Evangelho e vivemos em uma época em que as pessoas (até dentro da igreja) destilam ódio e chamam esse afeto de “indignação”.  Isso é uma falácia e seus efeitos estão em toda a parte em nossa sociedade. Fica aqui um apelo: Cabe a nós adotarmos uma ética que valorize a vida e não a morte, a edificação e não a destruição, tanto em nossa vida pessoal quanto em nossa sociedade. Adotarmos uma cultura de paz e não de guerra, de amor e tolerância e não de ódio e segregação.

As palavras finais eu deixo com Tiago e o mestre Jesus de Nazaré:

“Ora, o fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz”  Tg 5,18

“Bem-aventurado os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus” Mt 5,9

Fonte:

https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/direitos-humanos/58765/maior-genocidio-da-humanidade-foi-feito-por-europeus-nas-americas-70-milhoes-morreram

Por Eduardo Silva é Teólogo, Psicanalista e Pós-Graduado em Teoria Psicanalítica. Atende na Clínica de Psicanálise em São Paulo. Promove seminários sobre saúde emocional, relações afetivas, sobre crianças e adolescentes no mundo contemporâneo e curso para formação e treinamento de conselheiros. É um dos idealizadores do Grupo de Estudos sobre “Religião, Laço Social e Psicanálise”, que reúne pesquisadores da USP, PUC e Universidade Metodista entre outras.

* O conteúdo do texto acima é de colaboração voluntária, seu teor é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

 

 

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