A despedida dos reféns e o megafone de Deus

É inerente a nós, seres humanos, questionarmos a Deus ou buscar compreender o porquê de uma tragédia.

Fonte: Guiame, Getúlio CidadeAtualizado: quarta-feira, 5 de março de 2025 às 18:04
Família Bibas. (Captura de tela/YouTube/Embajada de Israel en Argentina)
Família Bibas. (Captura de tela/YouTube/Embajada de Israel en Argentina)

No último dia 26 de fevereiro, a nação de Israel parou literalmente para se despedir de Shiri Bibas e seus dois filhos, Ariel (4 anos) e Kfir (9 meses). O mundo inteiro viu o trauma dessa família, no dia 7 de outubro de 2023, quando os terroristas do Hamas invadiram vários kibbutzim no sul do país, assassinando adultos, crianças, bebês e animais de estimação, estuprando mulheres, sequestrando e levando reféns para Gaza.

Em Nir Oz, mataram friamente os pais de Shiri, separaram-na de seu esposo, Yarden Bibas, que foi levado cativo sozinho. Em seguida, levaram-na com suas duas crianças. A imagem de Shiri envolvendo seus dois filhos, abraçando-os com uma colcha de cama, com um olhar aterrorizada ao ser sequestrada, é desoladora.

Yarden Bibas permaneceu quase 500 dias isolado em cativeiro e foi liberto na negociação de reféns, no final de janeiro, regressando a Israel para encarar a dura realidade da ausência da mulher e dos filhos que ainda eram mantidos cativos pelo Hamas. Alguns dias depois, em mais uma etapa da primeira fase do cessar-fogo, soube-se que Shiri e as duas crianças haviam sido assassinadas em cativeiro, em novembro de 2023. Elas foram estranguladas fria e cruelmente pelos terroristas, segundo perícia dos médicos legistas das FDI e do governo israelense, contrariando a alegação do Hamas de que foram mortas por bombardeio das FDI em Gaza.

Por serem os prisioneiros mais novos entre os cerca de 250 sequestrados naquele trágico dia, Ariel e Kfir passaram a ser um símbolo da luta de Israel, que já dura quase um ano e meio, para trazer todos os reféns de volta. Seus retratos e pôsteres estavam em todo lugar, em Israel e em todas as comunidades judaicas do mundo. Não houve uma só manifestação, dentro ou fora de Israel, que suas fotos não fossem exibidas ou seus nomes não fossem pronunciados. Shiri virou um exemplo de supermãe que, nas palavras do primeiro-ministro Netanyahu, buscou proteger seus filhos como uma leoa. Havia grande expectativa na volta dos três, especialmente após a libertação de Yarden, mas a notícia de sua morte devastou o país inteiro.

Um funeral nacional

No dia 26 de fevereiro, o país inteiro parou para participar do funeral dos três. Calcula-se que centenas de milhares de pessoas foram às ruas para prestar suas homenagens. As pessoas pareciam ter perdido um ente querido próximo. A família pedira privacidade e tentou fazer uma cerimônia simples, mas isso foi impossível, tendo todo o cortejo sido transmitido ao vivo e em rede nacional por toda a mídia. A dor uniu o país de modo tão forte que todos se sentiam parentes dos falecidos. O deslocamento da van com os corpos se estendeu por mais de 100 km, atraindo um mar de pessoas que choravam compulsivamente como se tivessem também perdido um filho, refletindo o impacto tremendo que suas mortes tiveram na nação.

Muitos seguravam bandeiras de Israel e bandeiras laranjas. Muitos também se vestiam com lenços laranjas e soltavam balões da mesma cor. O laranja passou a ser um símbolo dos reféns por causa do cabelo ruivo de Ariel e Kfir. Então, usar laranja foi uma forma carinhosa de se referir à família Bibas. Na noite que antecedeu o funeral, o Knesset e a casa do presidente de Israel foram iluminados de laranja e as FDI usaram laranja em suas postagens ao longo do dia. Todos, sem exceção, incluindo as FDI, usavam a palavra Slicha que significa “perdão”. Ouvia-se gritos pungentes de Slicha no meio da multidão. Pediam perdão como forças armadas e como cidadãos por não terem conseguido proteger Shiri e seus filhos dos monstros terroristas. Foi uma comoção nacional inédita. 

Ao assistir ao funeral, pareceu-me que essa dor sentida pelo país inteiro será a marca mais profunda do 7 de outubro por muitas gerações. Shiri e seus filhos foram sepultados juntos em um mesmo caixão, inseparáveis na vida e na morte. Sobre a sepultura, havia uma montanha de flores, a maioria de cor laranja. Yarden, usando um quipá laranja, fez um discurso de despedida para sua amada Shiri e seus amados filhos. Ele conseguiu falar, apesar do choro incontido. Não era preciso entender hebraico para ficar com o coração despedaçado.

Por quê?

Enquanto ouvia seu discurso, inevitavelmente me veio a pergunta: Por quê, Senhor? Quem acompanhou a história dessa família, ainda que de longe, talvez tenha feito essa mesma pergunta. É inerente a nós, seres humanos, questionarmos a Deus ou buscar compreender o porquê de uma tragédia. Jó também o questionou perante todo seu sofrimento.

Questionar a Deus não é pecado. O problema é que nem sempre teremos a reposta esperada, assim como Jó não a teve. E aqui está o ponto principal que quero abordar. A tragédia e o sofrimento, por mais difícil que seja aceitar isso, cumprem algum propósito divino. Foi assim com Jó e não é diferente em nossas vidas. Independentemente da responsabilidade do homem em suas ações, pautadas pelo livre arbítrio e pelo qual será julgado pelo Justo Juiz, Deus usa a tragédia e o sofrimento para nos ensinar algo muito importante ou nos corrigir, por mais doloroso que seja. Todos que já experimentaram um sofrimento profundo podem assim atestar.

Isso me remete às palavras de Oséias 6: “Ele nos despedaçou, mas nos sarará; fez a ferida, mas a ligará”. Ao assistir ao funeral dessa mãe dedicada e suas crianças, não tive dúvida que Deus está lidando não apenas com a família Bibas ou com os habitantes de Nir Oz, mas com toda a nação de Israel, quebrantando seu coração, tocando no que lhe é mais valioso, para humilhá-la e transformá-la. Não significa que Deus esteja alheio ao sofrimento humano (é exatamente o contrário).

O megafone de Deus

C.S. Lewis, um dos meus autores favoritos, escreveu em O Problema do Sofrimento que Deus fala à nossa consciência, mas brada em nosso sofrimento. E que o sofrimento é o megafone de Deus para o mundo. Ele não escreveu isso por ser um ganhador do prêmio Nobel de Literatura (o que de fato ganhou), mas da sabedoria adquirida na dor de ter experimentado na pele o sofrimento de perder sua esposa muito cedo para um terrível câncer. Não há maneira mais eficaz de ouvir a Deus do que em meio ao sofrimento. Minha percepção é que todo Israel está ouvindo a voz de Deus agora, de um modo ou de outro, além de estar unido como uma só família pelos últimos acontecimentos.

A guerra, ou as guerras travadas em Israel estão longe de acabar. O conflito é permanente, independente de cessar-fogo ou até mesmo do mirabolante plano do presidente norte-americano de tornar Gaza uma Riviera do Oriente Médio. O problema é muito mais profundo e complexo, pois sua origem, como não canso de falar e escrever, é espiritual.

Por ora, vamos nos unir como corpo do Messias em oração por Israel, para que Ele se revele a cada coração humilhado e quebrantado nessa hora tão difícil para a nação. Ao fazer isso, apressaremos a vinda do Messias, pois seu Reino só será instaurado na Terra após a restauração de Israel, a Oliveira Natural na qual fomos enxertados para sermos participantes de sua seiva pela misericórdia e graça divinas.

 

Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor de A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br. 

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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