A Teologia da Substituição e suas nefastas consequências

Essa doutrina antijudaica alega que todas as promessas feitas a Israel desde a aliança abraâmica teriam sido transferidas para a Igreja.

Fonte: Guiame, Getúlio CidadeAtualizado: terça-feira, 24 de janeiro de 2023 às 17:51
(Foto: Priscilla Du Preez/Unsplash)
(Foto: Priscilla Du Preez/Unsplash)

A Teologia da Substituição afirma que o povo de Israel foi rejeitado por Deus ao não receber Jesus como Messias e tê-lo assassinado. Tal rejeição teria anulado a aliança mosaica feita no Sinai e, logo, Israel teria deixado de ser o povo eleito, tendo sido substituído pela Igreja cristã com quem Deus fizera uma nova aliança, a partir do sacrifício de Cristo. Essa doutrina antijudaica alega que todas as promessas feitas a Israel desde a aliança abraâmica teriam sido transferidas para a Igreja.

Seus fundamentos foram lançados ainda no século II por Justino Mártir em seu Diálogo com Trifão. Aqui, Justino propõe em sua exegese que os cristãos são o “novo Israel” ou o “verdadeiro Israel”, termos constantes em suas argumentações.

No início do cristianismo, havia uma natural afinidade entre os cristãos e Israel, a nação da Torá. Porém, as ideias da Teologia da Substituição foram fermentando esse perigoso levedo e ganhando força com o tempo. Então, os Pais da Igreja Primitiva, com base nessa teologia, começaram a sufocar tal ligação. Dentre seus maiores defensores, está João Crisóstomo que, em suas famosas homilias, mostrou-se um dos agressores mais inflamados contra os judeus, a quem rotulou de “habitações de demônios, assassinos, sanguinários e piores que feras selvagens”.[1]

A separação do cristianismo de Israel e suas raízes judaicas foi se dando, então, gradativamente, logo nos primeiros séculos da era cristã. Diversos concílios foram realizados com o propósito de consolidar tal separação, como o Concílio de Elvira (306 d.C) que, por exemplo, proibiu que judeus e cristãos casassem entre si ou simplesmente compartilhassem refeições. No Concílio de Niceia (325 d.C), desvinculou-se a data da Páscoa bíblica para uma data que coincidisse com um domingo, passando a Igreja a celebrá-la em uma data móvel. Em uma carta circular, o imperador Constantino I esclarece que o motivo de tal separação era não celebrar a festa na mesma data que os judeus, “assassinos de Nosso Senhor”.[2] Esses são apenas alguns exemplos.

Há, porém, um sério problema com essa teologia. Se Deus realmente rejeitou Israel, como explicar seu renascimento como Estado moderno após dezenove séculos? Nenhuma nação ou povo antigo que tenha sido disperso, como foi Israel por duas diásporas, ou chegado à beira da extinção, conseguiu renascer mais tarde com a mesma força e vigor de outrora, incluindo o ressurgimento da língua falada, como é o caso do hebraico moderno.

Além disso, como pode uma teologia contrariar a própria Bíblia? Na carta aos Romanos, no capítulo 11, o apóstolo Paulo afirma justamente o contrário, alegando que Israel é a raiz que sustenta a Igreja gentílica e não o contrário. A propósito, se a Teologia da Substituição fosse válida, bastaria trocar “Israel”, em todas as vezes que esse nome aparece na carta, por “Igreja”. Ao se fazer isso, verifica-se que o texto, então, perde completamente o sentido. É uma teoria que não se sustenta com o mínimo escrutínio das Escrituras.

A Teologia da Substituição é a grande responsável por grande parte do ódio dirigido aos judeus ao longo dos séculos, gerando feridas profundas e danos irreversíveis como ocorreu com as Cruzadas. Esses movimentos por combatentes que se nomeavam "soldados de Cristo”, ocorridos entre os séculos XI e XIII, da Europa para a Terra Santa, buscavam dominar esta à força, matando, em seu percurso, milhares de judeus.

Os tentáculos dessa infame teologia também são vistos na tenebrosa Inquisição que visava combater as heresias praticadas em sua grande parte por judeus. Entre os séculos XIII e XIX, levou dezenas de milhares à incineração em praças públicas, onde as vítimas eram queimadas vivas em ato de máxima penitência — um espetáculo sinistro e dantesco. E seus algozes cuidavam estar prestando um serviço a Deus!

Em pleno século XX, as sementes de ódio da Teologia da Substituição prosseguiram dando seus malditos frutos no episódio mais bárbaro e hediondo da História, em que o pecado mortal de nascer judeu levou ao genocídio de seis milhões de pessoas, incluindo nessa cifra um milhão e meio de crianças. Infelizmente, em nosso presente século, essa teologia continua a infectar muitas mentes mundo afora.

Voltando a Paulo, judeu e apóstolo da Igreja gentílica, Israel jamais foi substituído pela Igreja, mas é justamente a raiz que sustenta esta Igreja. O cristianismo nunca foi uma árvore autônoma e isolada, mas tem suas raízes no judaísmo, tendo sido enxertado por Deus na Oliveira Natural que é e sempre foi Israel.

[1] Christine Shepardson, Anti-Judaism and Christian Orthodoxy. Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 2008, p.65.

[2] Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. II: From Constantine the Great to Gregory the Great A.D. 311-600. New York: Charles Scribner, 1867, p. 405.

Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br

* O conteúdo do texto acima é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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