
A Bíblia narra que o rei Davi se fez de maluco para safar-se de uma situação perigosa – mordeu a moldura de uma porta e babou, alucinado, querendo enganar um inimigo. Eu também tenho vez por outra o ímpeto de fugir dos padrões da normalidade. Diante da injustiça, dos desmando e, principalmente, da indiferença, quero me deixar tomar por uma indignação insana. Um idealismo pueril me possui e quero cuspir marimbondos, chutar o pau da barraca, gritar impropérios, esmurrar ponta de faca.
Assaltam-me surtos de raiva diante do emburrecimento televisivo, do analfabetismo político e da alienação religiosa. Inconformado com a sordidez da estrutura política, quase chego a surtar quando noto prevaricação com o dinheiro público, sempre a beneficiar os mesmos.
Leio o jornal todo dia e muitas vezes perco a paz. As notícias me chegam filtradas ideologicamente e a imprensa chapa branca (ou de qualquer cor) plastifica a crueza histórica para que o povo não se rebele contra a desigualdade social. É ruim notar como as notícias do cotidiano são distorcidas para satisfazer o viés conservador dos ricos proprietários dos meios de comunicação. O descaso com os doentes, que agonizam nos corredores dos hospitais, fica amenizado pelo contraponto bem mais enfático, que afirma: avanços estão sendo feitos; tenhamos paciência. A morte de crianças em UTIs mal aparelhadas não pode ser tolerada em nome da paciência. Revolta notar que falta quem denuncie não apenas os acidentes nas estradas de péssima qualidade, mas a riqueza desproporcional das construtoras e empreiteiras que “acertam o preço” da obra. No pânico da insegurança pública, a condição medieval das penitenciárias e das cadeias superlotadas parece justa.
Todavia, as decepções se acumulam e transbordam para além da política. Dá vontade de assumir um desatino profético ao notar como a religião vai se comportando, descaradamente, com uma instituição alienante. Quero escarnecer dos discursos religiosos carolas que não passam de encenação, e desmascarar a desfaçatez de hipócritas que esbravejam uma santidade inumana. Os eventos espetaculares em nome de Deus entristecem. Se a injustiça social gera escombros emocionais, a religiosidade midiática devasta.
Na nulidade dos que movimentam as massas, renasce o anseio de expor certas igrejas como empresas – elas não se envergonham de propor uma espiritualidade instrumental. Seria pecado calar diante dos novos cambistas que agem desavergonhadamente como empresários, tratando Deus como produto. Existe sim um cristianismo entorpecido pela magia de um poder que o Apocalipse chama de Babilônia – que comercializa ilusão como esperança, alucinação como fé, beligerância como coragem e a alma de homens e mulheres como bugiganga. Não dá para calar diante da oferta do milagre como trampolim de ascensão social; e sequer aceitar que bênção continue oferecida como solução mágica para os problemas da vida; ou admitir que Deus seja proclamado como mero apanágio, que promove casamento, valida divórcio, cura caroço inexistente, faz passar no vestibular e resolve causa na justiça.
Se a religiosidade televisiva soa tão competente, vale questionar mesmo em devaneio: por que ela não resolve os “grandes” problemas que afligem a humanidade? Por que os milagreiros de plantão não trazem uma paz duradoura aos morros do Rio de Janeiro? Será que algum evangelista de renome conseguiria diminuir, com suas afirmações peremptórias, os latrocínios que castigam São Paulo? Se os neo-apóstolos pentecostais têm o poder espiritual que propalam, não deveriam, no mínimo, desbaratar a prostituição infantil que infesta as rodovias brasileiras?
Sei, de nada adiantaria perder o equilíbrio emocional. Não resolve enrubescer os olhos. É preciso agir. Decido, portanto, dedicar o resto da energia que me resta, apoiando os que não hesitam em lutar por um mundo mais justo, mais solidário e mais sensível. Desejo que meus gestos e pregação tenham convocatória de mobilizar cristãos, católicos e protestantes, para começarmos a adensar o Reino de Deus na terra. Reconheço: de nada vale propalar que o futuro chegará melhor se permitirmos que o presente – o aqui e o agora – continue péssimo.
Soli Deo Gloria
-Ricardo Gondim