Olho o passado com lascas de nostalgia e pontas de melancolia. Caminhos que jamais ousei trilhar hoje me parecem fáceis. O amor que soneguei por exigir coragem volta a desafiar. Aventuras que nasceram de narcisismos e falsas onipotências reclamam explicações – como justifico para mim mesmo tanto delírio? Um espinho de tristeza espeta o meu coração: noto que já tive tempo para jogar fora. Não, não pretendo reconstruir o que jaz nas cavernas do passado. Desisto de qualquer tentativa de ressuscitar o que já se aquietou debaixo do lajeado da decepção.
Para refazer meu compromisso com a vida, preciso abandonar a idolatria do humanismo. Já não idealizo bravatas ideológicas. Toda instituição convive com a semente de sua própria inutilidade. As revoluções são utópicas, os revolucionários, ambíguos. Também, não me prostro diante do altar niilista. Descreio da capacidade humana de se erguer, puxando os próprios cadarços. Meu existencialismo assume a minha fragilidade. Toda a certeza que alardeio está traspassada pela suspeita. Até a minha religião está maculada pelo desapontamento.
Para refazer meu compromisso com a vida, preciso me desfazer das grandes narrativas. Meu desejo de converter o mundo, agora sei, nasceu de uma cultura eurocêntrica, colonialista, carregada de empáfia. Desconfio de projetos globais. Me inquieta a incoerência que separa discurso e prática nas cruzadas, nos jihads, na militância partidária. Deixo de lado os que tentam nos reduzir ao racionalismo iluminista. Nossos sentimentos, tão cheios de altos e baixos, igualmente, nos definem. Crio cisma tanto com militantes ateus como com soldados da cruz. Rio por dentro sempre que ouço um ufanismo institucional; é meu jeito de sobreviver ao triunfalismo que me deu alento e me machucou. Despeço os titãs que abriguei na alma, e que me deixavam com a sensação de ser deus.
Para refazer meu compromisso com a vida, preciso desistir de tentar levar a ferro e fogo o que considero imprescindível. Devo fazer as pazes com os meus erros. Difícil admitir: alguns me fizeram bem. Meus erros me deixaram cioso da força da maldade. Me construí como uma equação, com sinais negativos e positivos. Admito: inúmeras boas intenções me prejudicaram. Minha vida aconteceu na mistura de sombras e luzes. Se amigos me entristeceram, desconhecidos me acolheram. Estranhei pessoas queridas e fui leniente com o estrangeiro. Na maioria das vezes, rechacei o diferente sem sequer conhecê-lo. Houve momentos em que planejei e empaquei. Surpreendentemente, a vida deu certo sem que eu planejasse. Paguei caro por ser indolente e, incrível, às vezes foi bom deixar o inadiável para o dia seguinte.
Para refazer meu compromisso com a vida, preciso me manter leve como a pluma que escapa da asa do cisne, denso como o ruço da madrugada, escuro como a noite sem lua e transparente como o Caribe. Pretendo rearrumar a minha oratória. Ainda hei de aprender a não despejar clichês. Ao discursar, almejo enfatizar a ternura e não a força do argumento. Anseio saber entrecortar as minhas frases com longas pausas, como fazem os poetas da nostalgia. Anelo me manter brando diante do odioso como a avó que consola a neta. Quero aprender, com os monges, a separar um lugar para a solitude.
Para refazer meu compromisso com a vida, preciso envelhecer sem zanga. Devo ritualizar os raros instantes de meu futuro breve. Quero celebrar cada manhã como uma ressurreição. Prometo aguardar o pôr-do-sol como a grávida espera pelo primeiro choro do filho.
Refaço o meu compromisso com a vida. Desejo estar plácido como um lago entre duas montanhas no dia da minha morte. Espero fechar os olhos sem qualquer nesga de frustração e encarar o meu sábado final com um sorriso maroto, sorriso de quem partiu dizendo: valeu viver.
Soli Deo Gloria
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