Só viver não basta

Só viver não basta

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:04
vida cristãQuem deseja viver de verdade precisa, sem medo de errar, manter-se grave. Gravidade enraíza. Depois de muito rolar, necessitamos de um cantinho para criar limo. Sem tempo para esmerilhar as pontas afiadas que sobraram, devemos amaciá-las. Não basta destacar folhas no calendário. Copular, batizar os netos ou reclamar do temporal não significam viver. Só vivemos uma vez. Com algum cuidado, uma vez será suficiente.
 
Não adianta alucinar com desejos impossíveis. É inútil repetir pensamentos positivos – como um mantra - esperando que a vida se arredonde. Só quem abre mão de devaneios e finca os pés no chão do dia-a-dia tem chance de intuir sobre o mistério da vida. Ilusão sabota a vitalidade de existir.
 
Quem deseja viver de verdade precisa rodear-se de opiniões diversas– Na multidão dos conselheiros se encontra a sabedoria. Cofres guardam diamantes. Contudo, mal servem para descrever a segurança dos relacionamentos – além de asfixiar, os cofres não deixam entrar nenhuma percepção diferente. Alguém que duvida, critica e questiona gera contrapés complicados, mas interessantes. Se toda unanimidade é burra, a discordância alonga a fronteira da certeza. Divergir ameaça e promove, ao mesmo tempo, a renovação das ideias envelhecidas.
 
Quem deseja viver de verdade deve ser diligente na busca por elegância interior; sinônimo de polidez. A brutalidade é mais natural. Nossos ancestrais sobreviveram devido a violência. Ternura precisa ser provocada, nutrida. Garbo não acontece por acaso. E depois que alguma forma de candura se instala no espírito, ainda temos de vigiar. Elegância cobra mansidão na conversa, sinceridade no olhar e singeleza no gesto. Encontros que acontecem com tato terão, como recompensa, uma despedida lastimosa.
 
Quem deseja viver de verdade precisa arrepender-se. A frequência dos arrependimentos é bom sinal. Que ninguém, ao perscrutar minuciosamente a alma, se lastime de ter passado a vida na indolência. Para fazer a vida valer mesmo, prudência não pode asfixiar ousadia. Calos indicarão o tamanho da bravura de botar a mão na massa. Os cadarços, moídos pelo uso, revelarão os quilômetros das estradas percorridas. O medo das trevas não pode inibir centelhas de iluminarem histórias. Ninguém precisa temer a rejeição de ninguém. Ciscos jamais poderiam criticar palha. A divindade avisa: a minha misericórdia é para sempre. Por que apavorar-se, então, com sua propalada ira? Criados incompletos, homens e mulheres carecem do espaço pedagógico de errar. Se nós, que somos maus, celebramos os tropeços que ensinam nossos filhos a andar, quanto mais Deus. Ele não nos tolera, Deus se alegra com a nossa constituição.
 
Quem deseja viver de verdade precisa aliar virtude à coragem. O atrevimento do ímpio se tornou notório. Ousadia pode vir do desejo que brota da ambição – ser bem sucedido, triunfar, enriquecer. Os sem-caráter são intrépidos, sim. Não existe, portanto, grande mérito em celebrar a audácia. Denodo vale quando ladeia siso. Encarar perigo de peito aberto pode conduzir, tão somente, a mais ganância. Corajosos merecem perguntar se algum pragmatismo exacerbado os enfeitiça.
 
Quem deseja viver de verdade precisa saber chorar os seus mortos. Certos adeuses movem as entranhas. Como não há como evitar o sorvedouro que devora os queridos, convém ter braços longos para os adeuses. A angústia da morte ensina, como disse Kierkegaard: o que há de mais elevado. No luto, aprende-se o que não se atina onde há festa. Viver é calar, sem eufemismo, diante da morte: nulidade devastadora que abate órfão, viúva, pais e o amigo amputado do amigo.
 
Quem deseja viver de verdade precisa aprender a amar o crepúsculo, enamorar-se da lua e casar com a noite. Há delicadeza no findar do dia, sensibilidade na madrugada silenciosa e sutileza na alvorada.
 
Quem deseja viver de verdade precisa contentar-se: existem enigmas sem solução. As curvas do tempo levarão o porvir a um labirinto ainda mais complicado. O caminho da serpente sobre a pedra, que alucinou os antigos, perdura e insiste em deslumbrar. Ninguém explicará a contento a rota das andorinhas quando prenunciam o verão. Vive mesmo quem dá de ombros para as respostas exatas e não se afoba diante das argumentações absolutizadas. Os que vivem se arriscam em trilhas inéditas, sabem que o paraíso terreno não passa de sonho e jamais esperam desembarcar no porto da satisfação plena. Repetem, apenas: navegar é preciso.
 
Soli Deo Gloria
 
 
- Ricardo Gondim
 

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