A Suprema Corte do Paquistão determinou na terça-feira (25) a absolvição de um cristão idoso que passou 23 anos no corredor da morte por uma acusação de blasfêmia.
A corte reconheceu que pessoas com transtornos mentais não podem ser consideradas penalmente responsáveis por esse tipo de crime, segundo informou seu advogado, Rana Abdul Hameed.
Anwar Kenneth, de 72 anos, foi acusado de blasfêmia após ter enviado uma carta a líderes religiosos e diplomatas afirmando sua fé cristã e rejeitando a profecia de Maomé – o que foi interpretado como blasfêmia sob a controversa Seção 295-C da lei paquistanesa.
“É lamentável que um idoso tenha permanecido em várias prisões por mais de duas décadas, apesar de sua condição de saúde mental”, disse Hameed, ao Christian Daily International-Morning Star News.
“A decisão da Suprema Corte de absolvê-lo em vista de sua doença mental, embora após um atraso prolongado, ajudará a destacar a situação de dezenas de outros prisioneiros por blasfêmia que também sofrem de problemas de saúde mental, embora seus casos estejam pendentes há anos.”
Hameed parabenizou os juízes da Suprema Corte pela coragem de tomar a decisão correta, mesmo diante da intensa pressão exercida por advogados ligados a diversos grupos islâmicos, entre eles o influente Fórum de Advogados Khatm-e-Nabbuwat (Finalidade da Profecia).
"Esses advogados e clérigos causaram um rebuliço no tribunal assim que os juízes anunciaram a ordem de absolvição", disse Hameed. "A absolvição de Kenneth é um grande revés para eles, pois terá impacto em todos os casos de blasfêmia de natureza semelhante."
Ele acrescentou que a decisão completa da Suprema Corte deverá ser publicada nos próximos dois ou três dias, o que permitirá a libertação de Kenneth da prisão.
Sentença de morte
Ex-dirigente sênior do Departamento de Pesca do Punjab, Kenneth foi condenado à morte por um tribunal de primeira instância em Lahore, em julho de 2002, após ter enviado, no ano anterior, uma carta afirmando que os não muçulmanos rejeitavam a profecia de Maomé.
A mensagem foi endereçada a estudiosos islâmicos, líderes de Estados muçulmanos, diplomatas estrangeiros no Paquistão, ao secretário-geral da ONU e a teólogos cristãos.
Ele foi enquadrado na Seção 295-C dos controversos estatutos de blasfêmia do Paquistão, que impõem a pena de morte obrigatória para quem insultar o profeta do Islã.
Mesmo diante de uma possível sentença capital, o cristão se recusou a contar com a defesa de um advogado, afirmando que Deus seria seu único conselheiro.
Em 2014, o Tribunal Superior de Lahore manteve a sentença de morte contra Kenneth, apesar de um parecer de uma junta médica do governo alertar para sua instabilidade mental.
Ao apelar à Suprema Corte, o advogado Hameed defendeu que a rejeição da profecia de Maomé por parte de não muçulmanos não poderia, por si só, ser classificada como blasfêmia.
“Embora o islamismo seja uma das três religiões abraâmicas e os muçulmanos acreditem em todos os profetas, incluindo Jesus Cristo, cristãos e judeus não acreditam no profeta Maomé”, afirmou Hameed. “Em sua carta aberta, Kenneth apenas declarou que sua fé cristã não endossa o islamismo. Ele não usou nenhuma linguagem depreciativa em relação ao profeta Maomé que justificasse uma condenação por blasfêmia.”
Representação legal
O recurso de Kenneth contra a decisão do tribunal superior se arrastou por anos. Em 12 de março de 2024, a Suprema Corte solicitou pareceres do Conselho de Ideologia Islâmica (CII) – principal órgão religioso muçulmano do país – e de duas instituições cristãs, o Conselho da Igreja do Paquistão e o Conselho da Igreja Unida de Islamabad, para avaliar se o conteúdo que manteve o cristão no corredor da morte por mais de duas décadas poderia ser classificado, de fato, como blasfêmia.
Em janeiro de 2023, um colegiado de três juízes da Suprema Corte reconheceu a urgência de garantir representação legal para Kenneth e requisitou ao Conselho da Ordem dos Advogados do Paquistão a nomeação de um defensor, após cinco advogados públicos se recusarem a assumir o caso.
Hameed – conhecido por atuar com êxito em casos de falsas acusações de blasfêmia – aceitou representar o cristão, contando com o apoio da organização de direitos humanos Jubilee Campaign Netherlands.
Familiares de Kenneth já haviam contado à repórter que ele trabalhava como vice-diretor no departamento de pesca quando foi preso.
Fé cristã
Segundo eles, Kenneth era um homem instruído e profundamente interessado em sua fé cristã.
“Meu irmão era um estudioso da Bíblia e frequentemente se envolvia em discussões acadêmicas com seus amigos muçulmanos e líderes religiosos”, disse Reshma Bibi, irmã mais velha de Kenneth, de 83 anos, ao Christian Daily International-Morning Star News em março de 2024.
“Ele também comunicava suas ideias e valores religiosos por meio de cartas, mas nunca desrespeitou nenhuma personalidade sagrada. Foi uma dessas cartas que foi usada para silenciá-lo.”
Nos últimos anos, o Paquistão tem registrado um aumento alarmante nos ataques contra pessoas suspeitas de blasfêmia.
Acusações – ou até mesmo rumores – têm provocado tumultos violentos liderados por multidões muçulmanas, frequentemente culminando em assassinatos.
Legislação condenável
Em 2024, uma entidade de defesa dos direitos humanos documentou um recorde de 344 novos casos de blasfêmia, evidenciando o uso crescente e abusivo de uma legislação que já é alvo de amplas condenações internacionais.
Dos 344 novos casos de blasfêmia, 70% dos acusados eram muçulmanos, 6% eram cristãos, 9% hindus e 14% ahmadis, de acordo com o relatório anual do Human Rights Observer emitido pelo Center for Social Justice (CSJ).
“A flagrante utilização das leis de blasfêmia como arma continuou a permitir perseguição, intolerância religiosa e violações generalizadas dos direitos humanos”, afirmou o relatório.
De acordo com o relatório, pelo menos 2.793 pessoas foram formal ou informalmente acusadas de blasfêmia no Paquistão nos últimos 38 anos, de 1987 a 2024.
O relatório afirma que pelo menos 104 pessoas foram mortas extrajudicialmente após alegações de blasfêmia entre 1994 e 2024.
O Paquistão, com mais de 96% de muçulmanos, ficou em oitavo lugar na Lista Mundial de Observação de 2025 da Portas Abertas dos lugares mais difíceis para ser cristão.
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