“Realidade Desejada” é a nova febre entre os adolescentes e pais buscam ajuda psiquiátrica

Especialista explica que o fenômeno se popularizou durante a pandemia e que foi uma “válvula de escape” para muitos.

Fonte: Guiame, Cris BeloniAtualizado: sexta-feira, 1 de outubro de 2021 às 13:09
O aplicativo chinês para smartphone TikTok, de compartilhamento de vídeo, tem sido cada vez mais popular entre os adolescentes. (Foto: AFP/Getty)
O aplicativo chinês para smartphone TikTok, de compartilhamento de vídeo, tem sido cada vez mais popular entre os adolescentes. (Foto: AFP/Getty)

No meio cristão, é comum ouvir que os jovens “estão se perdendo no mundo”, mas o mundo parece ter se tornado pequeno demais para eles. Por isso, decidiram criar “novos mundos” imaginários. Eles querem um mundo onde tudo é possível, então estão acessando a “Realidade Desejada”.

Originalmente conhecida como DR (Desired Reality) a técnica de meditação guiada ou “projeção astral” permite aos “viajantes” ir para lugares fantasiosos, viver uma realidade alternativa ou simplesmente ir para um mundo paralelo.

O acesso a uma área mais perspectiva do que racional, porém, tem levado alguns pais ao desespero. Ao ver o “escapismo” dos filhos e perceber que estão inacessíveis na vida real, alguns pais estão recorrendo a psicólogos e psiquiatras.

Realidade desejada no TikTok

De acordo com a psicóloga Lia Temple Honório, formada em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, terapeuta familiar e especialista em traumas, a DR popularizou-se entre os adolescentes por meio do TikTok. 

“Essa turma está se utilizando de um processo de auto-hipnose que altera o estado de consciência, na tentativa de acessar realidades por eles mesmos criadas”, explicou ao Guiame.

A psicóloga conta que nem todos conseguem e, além disso, não há como garantir que os relatos daqueles que testemunham transitar em outras realidades são fidedignos. 

“Mas de toda forma, estamos falando de um exercício que se propõe a promover uma alteração da consciência e que merece atenção e cuidados por parte dos pais. Precisamos falar sobre esse assunto e debater de modo não alarmista, mas consciente sobre a necessidade dos pais de se aproximarem dos seus filhos e conversarem sobre os riscos desse processo”, alertou. 

“Minha filha parecia um robô”

A mãe de uma menina de 12 anos, do Rio de Janeiro, que preferiu não se identificar, compartilhou com o Guiame que a filha começou a se distanciar do contexto familiar, inclusive dos passeios e das conversas. “Ela ficou muito calada e isso sinalizava que as coisas não estavam bem”, lembrou.

Há quase 1 ano, a menina apresentou dificuldades nas tarefas escolares e uma certa rebeldia. “Eu não via isso como algo psicológico, porque eu achava que minha filha tendo uma família bem estruturada, a mãe presente e um pai exemplar, ela não teria motivos para questões emocionais”, disse.

Depois de uma reunião com os professores, a mãe percebeu que o contexto era mais complicado do que imaginava. “Ela já estava numa tristeza profunda, com olheiras e usando capuz preto. Ela nunca chorava e parecia um robô”, contou.

A mãe, que é psicopedagoga e trabalha como coordenadora de uma escola, teve conhecimento da DR através de uma amiga. “Foi quando as peças começaram a se encaixar”, comentou. 


Adolescente no celular. (Foto: iStock)

Um dia, a mãe percebeu que a filha havia se cortado com um canivete e foi quando recorreu a tratamento psicológico e psiquiátrico. A menina já falou em tirar a própria vida para viver somente na Realidade Desejada. “Ela disse que não gosta da escola, então acessa o mundo paralelo no horário de aula”, continuou a mãe.

Com a terapia, ela conseguiu detalhes sobre o imaginário da filha. “Na outra realidade ela tem o cabelo curto e azul e tem poderes nas pernas. Agora ela quer cortar o cabelo, pintar de azul e fazer taekwondo. Disse que quanto mais treinar nessa realidade, mais real será a Realidade Desejada”, revelou e comentou que a filha gosta muito de animes e que se inspira neles.

Atualmente, a mãe percebeu alguma melhora na filha, mas ainda continua no processo. “Eu ainda não tenho uma fala de solução, só uma fala de esperança e perseverança. Ainda espero a cura e a resposta”, ela disse.

É importante ressaltar que, entre as regras ditadas para acessar a DR, está a proibição de “contar aos pais”, já que eles “não compreenderiam o acesso à outra dimensão”. Entre os cenários mais desejados estão o mundo dos animes e o Castelo de Hogwarts, do filme Harry Porter. 


Castelo de Hogwarts. (Foto: Reprodução/Pinterest)

A febre da Realidade Desejada

Uma professora de música conta que está percebendo seus alunos estranhos e que a DR está virando uma febre entre os adolescentes. “Um dia, vi minha filha colocando um papel embaixo do travesseiro e fiquei curiosa”, contou ao mencionar o script que a filha usaria para acessar a DR pela primeira vez. 

“Pedi para ela não fazer nada até que eu tivesse tempo de pesquisar sobre aquilo.  Na mesma noite eu descobri a tal DR e desde então tenho observado meus alunos na escola”, compartilhou ao Guiame.

Segundo Lia, a DR nada mais é do que uma tentativa de regulação emocional. “O acesso a uma fantasia onde o adolescente se percebe como o personagem principal da história”, explicou.

“No ‘lugar desejado’ ele se sente uma pessoa importante, decide seu 'script’, pode fazer todas as escolhas e ainda criar suas próprias regras”, continuou. “Você consegue imaginar o quão tentador é para um adolescente que está experimentando uma onda natural de incertezas conseguir ir para um lugar onde se sente absolutamente seguro?”, mencionou.

De acordo com a psicóloga, existem válvulas de escape saudáveis, e outras disfuncionais. “Por exemplo, diante de uma situação estressante a pessoa pode escolher correr (exercitar-se) ou comer (de modo compensatório)”, especificou.


A Realidade Desejada ensina o adolescente a buscar uma nova identidade. (Imagem Anime/Pinterest)

A pandemia colaborou para os distúrbios mentais

“É preciso levar em conta que esse movimento se popularizou num contexto global importante de pandemia, no qual as relações sociais de grupo, tão importantes para a saúde mental do adolescente, foram intensamente prejudicadas”, disse Lia.

“Confinados por muitas horas numa realidade solitária e virtual, os adolescentes se viram diante da possibilidade de ingressarem em um mundo onde as relações são escolhidas e controladas — meu script, minha realidade”, citou. 

Ela explica ainda que os adolescentes estão em processo de intensa transformação e isso pode causar angústia e levantar questões do tipo — Quem eu sou? Do que eu gosto? Quem me aceita? Quem eu admiro? — E as redes sociais se propõem a conectar pessoas, grupos, ideologias e é, de certa forma, um exercício de identidade e pertencimento.

“Ao postar uma foto, por exemplo, o adolescente terá um retorno, positivo ou negativo”, relacionou. “Muitos se decepcionam com os resultados e a realidade, então, se torna indesejada. Experimentar sentimentos de rejeição, frustração, insegurança nos afetos e no grupo, pode ser sobremodo ameaçador. E nesse sentido, ter uma válvula de escape é um modo de promover uma auto-regulação emocional, muitas vezes necessária”, disse.

“É um assunto ainda novo para nós, profissionais da saúde mental, e entendo que precisamos estudar e entender bem esse fenômeno para ajudar nossos adolescentes de um modo equilibrado, consciente e eficaz”, ela resumiu.


A mudança da realidade por meio de scripts tem sido um escape para adolescentes. (Ilustração de Ollie Smith)

Consequências detectadas até agora

A psicóloga fala das consequências e como podem ser variadas. Elas são relatadas em sites escritos pelos próprios adolescentes que praticam a DR — fadiga, cansaço, tontura e sono. 

“Além disso, há episódios de dissociação da consciência, pesadelos, alucinações (começam a ver personagens da DR na realidade presente), sentem-se flutuando, formigamento no corpo, vontade excessiva de chorar, apatia social intensa, entre outros sintomas”, destacou Lia.

Existe também o perigo do adolescente decidir ficar na realidade desejada e, para isso, “ele pode tentar tirar a própria vida”, conforme comentou a mãe da menina de 12 anos que foi entrevistada pelo Guiame

O que realmente está acontecendo? O que está faltando para os adolescentes do século atual e o que está por trás de tanta insatisfação com a realidade em que vivem? De acordo com Lia, há várias questões em jogo. “Existe a questão fisiológica e social do adolescente e o contexto histórico que estamos vivendo”, concluiu.

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