A fome tem um rosto

A fome tem um rosto

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:04

Na frente da bolsa de doações estavam chocolates de Papai Noel, muito tempo depois do Natal ter acabado. A próxima a surgir era uma lata de sopa Campbell, três anos depois da validade ter expirado. Uma coleção de pacotes de café de hotel, e depois doces de Halloween em uma bolsa de “doçura-ou-travessura”, um pote de cerejas e uma lata amassada de leite condensado.

Eu estava fazendo meu dia de voluntariado mensal numa organização que possui um depósito de alimentos para serem doados aos necessitados, localizada em uma igreja de um subúrbio rico de Chicago. Enquanto eu esperava nossos clientes chegarem, eu separei as doações e as estoquei nas prateleiras. No que passavam bolsas e bolsas, caixas e caixas – e eu jogava no lixo o que as pessoas achavam “o bastante para os famintos” – eu me senti cada vez mais irritada. E também envergonhada.

Eu costumava pensar que essas coisas eram o bastante, também.

Essas entidades assistenciais de alimentos são geralmente o suporte principal para refugiados, desempregados, mães solteiras, inválidos ou doentes mentais, e até mesmo para aposentados com baixa renda. Com o aprofundamento da crise econômica, essa clientela está mudando. Organizações que distribuem alimentos perceberam um aumento médio de 30 por cento em pedidos emergenciais de alimentos em 2008, de acordo com Ross Fraser, diretor de assessoria de imprensa do Feeding América. Os 657 milhões de dólares de renda em doações proverem mais de mil toneladas através de 205 bancos de alimentos, que servem a 63 mil distribuidoras de alimentos, e estima que isso serviu a 25 milhões de pessoas com risco de passar fome. Entre esses, 9 milhões eram crianças e quase 3 milhões, idosos.

Desses que usam as doações de alimentos, 36 por cento vivem em casas onde pelo menos uma pessoa está empregada. As instituições de caridade estão observando mais os trabalhadores que não podem fazer refeições com baixos salários, disse Fraser, e também a classe média que trabalha em industrias pesadas como o setor de construção. Alguns estados, como New Hampshire, Florida, Massachusetts, e Ohio, tiveram grande necessidade de usar as entidades distribuidoras de alimentos, e a porcentagem poderá crescer.

“Se a economia continuar a declinar, a situação vai piorar”, disse Fraser. “Muitos americanos vivem de salário em salário. Eles estão a um salário da catástrofe”.

Entendendo a fome

Quando eu me voluntariei pela primeira vez em uma entidade assistencial há quatro anos atrás, senti uma vaga culpa pela fome mundial, trazida pelas manchetes de jornal sobre crianças morrendo na África por desnutrição. Eu ia crescendo -  quando eu fui exortada a pensar nas crianças em miséria da China e limpei o meu prato - e descobri que algumas pessoas não tinham o suficiente para comer. Na minha família, a preparação de uma boa comida era uma maneira de demonstrar amor, por isso o conhecimento de que algumas pessoas passavam fome me assombrava mais do que uma simples forma lógica. O meu voluntariado se assemelhou como uma salvação para a minha consciência.

A instituição de caridade onde eu sou voluntária é sustentada por 17 igrejas da minha cidade – protestantes e católicos trabalham juntos – como também escolas, empresas, e particulares. No ano passado, a instituição agendou cerca de 3.500 atendimentos com famílias locais para conseguirem alimentos. Os clientes devem provar que moram em Glen Ellyn ou em comunidades vizinhas, mas não precisam mostrar provas de sua carência. Eles podem fazer seis visitas ao ano e não mais que uma por mês. Cestas básicas também estão abertas para pessoas que chegam ao local à procura de alimentos.

O cliente escolhe, primeiro, a partir de uma pilha de alimentos (carne, queijo, ovos e leite) que são empacotados pelos voluntários. Enquanto eles esperam sua parte ser empacotada, os clientes recebem uma bolsa para pegar outros alimentos para complementar suas necessidades básicas. Eu comecei como empacotadora, depois virei uma seletora, ajudando os clientes, um por um, a escolherem outros alimentos das prateleiras.

Durante um turno de duas horas, eu ajudo cerca de oito pessoas. Cada cliente é tão diferente quanto as amostras em um caleidoscópio: aposentados, doentes mentais, mães solteiras, jovens falidos em tempos difíceis. Muitos são imigrantes que não falam inglês: uma mulher vietinamita com filhos, uma família refugiada do Sudão, uma velhinha da Ucrânia. Quando eles são confrontados com tantos itens para doação eles ficam confusos. Mesmo com um intérprete, eles têm dificuldades de ultrapassar a barreira culinária cultural. Se você sempre comprou em um mercado frutas frescas para sua família, como você vai aceitar um purê de batatas instantâneo? Pasta para hambúrguer? Massa de pão?

Nem todas as pessoas são agradecidas. Alguns clientes nervosos por causa de sua situação, evitam olhar nos olhos, escolhem os alimentos o mais rápido possível, e vão embora falando apenas umas poucas palavras. Outros lançam sua frustração sobre os voluntários. Uma mulher me repreendeu por causa de minha saia curta (era verão e estávamos suando). Outra me perturbou para deixá-la ultrapassar a linha de limite de sua cesta, recusando um não como resposta até o supervisor intervir. Alguns tomam vantagem, colocado em suas cestas os itens mais caros das prateleiras ao mesmo tempo em que dizem que “outras despensas de alimentos têm uma seleção muito melhor que a sua”.

“Quem está aqui para julgar quem realmente está com fome?”, disse Susan Papierski diretora assistente do Glen Ellyn, confessando que ela também fica desencorajada às vezes. “Tem pessoas que realmente precisam dos nossos serviços, eu olho para ela e digo, é por isso que eu estou aqui”.

Se você se voluntariar para se sentir bem consigo mesmo, você vai trabalhar por alguns turnos e logo vai desistir. Altos ideais se despedaçam como uma janela de vidro atingida por pedras. Alguns dias eu questiono, “será que essas entidades assistenciais realmente ajudam?”.

Ela me lembra que a fome nem sempre é óbvia. “Ela pode parecer comigo ou com você, pode ser seu vizinho e você nunca soube disso”. O que ajuda, disse a diretora, é ouvir doadores que um dia foram clientes refazerem seu caminho e ajudar a sustentar a instituição.

Quando estou sem coragem eu também penso nas crianças. Como Fraser do Feeding América me disse, “As crianças não são responsáveis por suas circunstâncias”. Ele citou um dito popular em sua organização: “uma criança com fome não pode aprender; ela se torna um adulto que não pode vencer”. Assegurar que ninguém passará fome tem um sentido não apenas moral, mas também prático e econômico.

São os clientes cheios de gratidão e as histórias de sucesso que se fixam na minha mente:

Uma mãe aposentada cujo filho foi estudar em Harvard com bolsa integral. Uma mãe de família de baixa renda que me agradeceu e disse “Deus te abençoe” mais vezes que eu podia contar dentro de 15 minutos.   A criança e o idoso da Itália que fizeram piadas e riram da minha tentativa de falar algumas palavras em italiano enquanto eu separava macarrão e feijão. A mãe de uma família de refugiados que demonstrou um claro alívio enquanto ela enchia sua cesta de arroz, feijão e vegetais. Naquele mês ela iria alimentar sua família. Seu sorriso dizia “obrigado” em qualquer linguagem. Observando os rostos

Enquanto a minha entidade assistencial muda para ir ao encontro das necessidades dos seus clientes, eu mudo também. Agora quando eu dôo alimento, eu penso duas vezes no que vai entrar na minha bolsa. Arroz, óleo de cozinha, caldo de galinha. Macarrão e creme de alho. Feijão em lata. Molho de tomate. Eu lembro das palavras de Jesus em Mateus 25.35: Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me.

Apesar de ter uma pequena noção sobre “a fome”, eu vejo uma mulher muçulmana com um filho de 4 anos, tímido, de cabelos pretos, com o olhar mais luminoso que eu já vi. A mulher asiática perversamente ofendida não pode trabalhar mas se mantém alegre e sorridente. O profissional mal vestido, mas que mantém sua dignidade.

Eu penso em duas garotas loiras, de seis e oito anos. Eu consegui saber o nome delas ao elogiá-las. Depois, desconfiadas, elas me contaram quais suas matérias favoritas na escola, eu penso nelas deixando a despensa de alimentos, sentando para jantar, e comendo até ficarem cheias. Eu penso na mãe delas, exausta, empacotando o lancha para o dia seguinte. Eu penso nessas garotas crescendo, saudáveis e fortes.

Agora quando eu penso na fome, eu nem olho para as manchetes, mas para as rostos. Tudo isso tem feito a diferença.

Por Cindy Crosby

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