Evangélicos Costumizados

Evangélicos Costumizados

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:24

Rap de Jesus

Até hoje a Renascer continua sendo uma referência para trabalhos com jovens e tribos urbanas. Não por acaso, saíram de lá muitos indivíduos que hoje estão à frente de suas próprias igrejas. É o caso do pastor Anderson Dias Barbosa, que lidera a Comunidade Crescendo na Graça. Ela possui cerca de 400 fiéis distribuídos em três igrejas, todas na periferia de São Paulo.

Ele conta que o diferencial da igreja é seu foco "200.000% hip hop". Anderson tem o nome artístico de DJ Pastor. É conhecido na cena hip hop nacional e já fez som "em muitos bailes do mundão" - "mundão" é o mundo fora das evangélicas. Hoje seus bailes e eventos só tocam música gospel e chegam a reunir 7 mil pessoas. Além da música, eles contêm outros elementos associados à cultura de rua, como street dance, grafite, oficinas de basquete, pista de skate e por aí vai. Assim como acontece na Igreja das Américas, esses eventos são abertos aos não-crentes, e a vestimenta é livre - grande parte dos presentes vem no estilo rapper, com bermudão, camisão, correntão e bonezinho.

Em certo momento, o pastor pede a palavra. "Digo que tudo que estamos fazendo ali é para glorificar o nome de Jesus, um homem que teve a coragem de sair do Céu e vir para a Terra e que foi culpado por crimes que não cometeu. Também falo em Martin Luther King, que tinha o sonho de ver o homem livre pela palavra de Deus." Os sermões misturam conteúdo bíblico com gíria da periferia. Ouve-se "pô, mano, Deus se preocupa com você, truta", "cê tá mais ligado na correria da quebrada que na sua família" ou "cê só vai dar valor pros seus quando segurar na alça de um caixão?".

O DJ DE HIP HOP

Aos 8 anos, o garoto Anderson entrou numa igreja evangélica e encontrou o que estava procurando. Logo trouxe os pais e o restante da família. "Desde os 9 anos eu sabia que seria pastor e que um dia teria uma comunidade para liderar." Mas tamanha vocação sofreu um desvio aos 17, quando saiu para conhecer o "mundão". "Moro na periferia, então saí para curtir a cena do rap." A paixão pela música virou profissão, e ele se tornou um DJ bem-sucedido. Aos 19, atraído pelo trabalho com jovens desenvolvido pela Igreja Renascer, retomou os valores evangélicos. Para combinar o trabalho e a vocação, focou-se na música religiosa. "Fui o primeiro a fazer bailes blacks onde só toca música gospel", lembra o hoje pastor. A luta pela divulgação do hip hop chegou a lhe angariar prêmio e até um programa de TV a cabo. "Jesus se vestia como o costume da época e usava cabelo comprido. Eu também procuro me vestir de forma natural. Isso me ajuda a me aproximar das pessoas e evangelizá-las." 

Essa combinação de música e pregação resultou na conversão de Mola, 32, há quatro anos. Ex-membro do PCC, ele prefere não revelar seu nome verdadeiro. "Eu não teria sido atraído por uma igreja tradicional, cheia de regras, em que o pastor olha você como um errado que não tem jeito. Aqui eu posso vir do meu jeito e sei que o pastor me vê como um igual. Não é nem que a igreja me atraiu, ele que foi me buscar e me mostrou que eu tinha um caminho aqui", diz. Para Anderson, os pastores das igrejas tradicionais estão mais preocupados em colocar nas suas igrejas gente com nível cultural e poder aquisitivo elevado. "Não querem cuidar dessas pessoas machucadas. Vamos direto evangelizar em presídios, Febems, favelas", diz.

Assim como Rahal, Anderson acha que as igrejas tradicionais não estão preparadas para lidar com o público que escolheu. E diz que sua iniciativa desperta resistências no meio evangélico. "Aqui ainda impera o tradicionalismo. Nos eventos, volta e meia eu prego sem camisa. Me visto com bermuda e cordão, minha igreja tem mesa de bilhar, tabela de basquete, aula de jiu-jitsu. Tem gente que acha que isso não é certo. Sei que sou muito criticado. Mas o importante é ganhar almas. Nosso fruto é esse. Temos aqui pessoas que eram criminosos, delinqüentes, homossexuais e hoje são convertidos."

A referência a uma mudança na orientação sexual não deve surpreender. Mesmo pastores com visual e comportamento descolado, como Silas e Anderson, têm um discurso tradicional quando o assunto é sexualidade. "Não subo no púlpito e digo que alguém deve fazer isso ou não fazer aquilo. Só repito o que a Bíblia diz. Nunca obriguei namorados que vivam juntos a se casar; eles decidem a partir da pregação", diz Anderson. "Já fui visitado por muitos homossexuais e os acolhi muito bem. Mas o homem foi feito para a mulher", afirma Rahal. Todos condenam também as drogas e o consumo de álcool. "Embora a Bíblia dê a entender que Jesus bebia", pondera o pastor gótico.

Para Campos, da Metodista, esse equilíbrio delicado entre liberdade e interdição é parte da dinâmica dessas igrejas. "Se eles tiverem um discurso muito radical nas proibições, não conseguem atrair as pessoas que têm em vista. Mas acreditam que o jovem que está cansado de uma vida permissiva precisa de alguém que lhe diga não." Quem está dentro do movimento evangélico, porém, interpreta o crescimento das igrejas e congregações voltadas para públicos específicos de forma um pouco diferente.  

Como uma onda no mar: nos cultos da igreja Bola de Neve, do apóstolo Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, o púlpito é formado por uma prancha de surf, e a trilha sonora do culto pode ser no ritmo do reggae.

Um dos principais nomes desse movimento é o apóstolo Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, que fundou em 2000 a igreja Bola de Neve. Rinaldo praticava surf, e trouxe elementos como pranchas decorando o púlpito e o reggae nas celebrações. Isso valeu a alcunha de "igreja dos surfistas", embora o próprio Rinaldo diga que, "se houver 2 mil surfistas entre os nossos 10 mil membros que vivem em São Paulo, é muito". Para ele, quando os sociólogos falam em segmentação "estão explicando, em linguagem técnica, o desejo de Deus de se chegar às pessoas de uma maneira mais humana". Ele diz que na Bola de Neve há trabalhos desenvolvidos especificamente com artistas, empresários, lutadores de boxe e de jiu-jitsu. "Unindo pessoas a partir de um interesse comum, podemos falar das coisas de Deus que podem ser aplicadas às suas áreas de atuação."

Rinaldo contesta, porém, ferramentas marqueteiras nas igrejas. "Vemos essa aproximação como algo natural, não planejado. Se um jogador de futebol vira pastor, ele tem mais afinidade com boleiros. Foi o que aconteceu comigo. Eu praticava surf e, quando eu aceitei o meu chamado [para fundar a igreja], naturalmente as pessoas que se aproximaram eram aquelas com quem eu convivia." Rinaldo é formado em publicidade e propaganda e pós-graduado em marketing, mas, "assim que recebi meu chamado, joguei fora todos os livros. A igreja não pode ser guiada por padrões seculares".

O ESPORTISTA

Rinaldo Seixas nasceu em família batista, mas durante a adolescência afastou-se da igreja e conheceu os hábitos dos "jovens seculares", como a prática do surf e o consumo de drogas. Aos 20 anos, uma combinação de hepatite C e overdose de cocaína derrubou-o da prancha. Pediu a Deus que o salvasse e, depois do episódio, se batizou na igreja batista. Depois foi para a igreja Renascer, onde começou a realizar um trabalho focado no público jovem. "Entendi que o que a minha geração precisa não é de maconha, cocaína ou balada de segunda a segunda, mas sim de uma experiência pessoal com o Criador", diz. Em 1999, criou a Bola de Neve. Os primeiros encontros se deram no auditório de uma fábrica de pranchas de surf. "Vi que os jovens achavam que, para se aproximar de Jesus, tinham que abandonar o esporte e mudar seus costumes. Mas isso é o pensamento de alguns segmentos radicais do protestantismo. Não é nada disso, a mudança só precisa ser interior." 

Mas as mudanças no cenário religioso brasileiro e nas igrejas evangélicas são só parte da explicação. Para o antropólogo Dias Duarte, é preciso levar em conta as mudanças de valores sociais nos últimos 30 anos. "Uma das causas desse fenômeno está no individualismo moderno. Antigamente as pessoas definiam suas identidades a partir da família ou classe social. Hoje isso não ocorre, as pessoas estão desconectadas. Então elas sentem a necessidade de escolher um grupo para aderir - e aderir com intensidade", diz.

"Se a pessoa se identifica como gótica e descobre que existe uma igreja de gótico, é para lá que ela vai", diz o sociólogo Mansur. "Numa missa católica ou num centro espírita é comum não conhecer a maior parte dos presentes. Já nessas igrejas para públicos específicos o pastor tende a saber quem é cada um, existem vínculos mais fortes", complementa Duarte. "É mais fácil um surfista evangelizar outro surfista do que evangelizar um policial." Pois, na hora de receber o chamado, quem chama é tão importante quanto quem recebe.

Por: Pablo Nogueira e Emiliano Urbim

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