Os bons samaritanos dos mares

Os bons samaritanos dos mares

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:05

Quando o navio Africa Mercy aportou em Monróvia, capital da Libéria, não chamou a atenção de quase ninguém. Afinal, aquele porto da costa ocidental africana é dos mais movimentados do planeta, graças às baixas tarifas de navegação cobradas pelo governo local. Empresas de transporte naval e armadores de diversas nacionalidades registram seus navios com a bandeira liberiana, o que proporciona enorme economia em taxas. Mas o Africa Mercy não foi até lá em busca de negócios. Sua missão é outra – resgatar a saúde e a auto-estima de gente que, de outra maneira, jamais teria acesso a serviços tão sofisticados quanto os oferecidos pelo navio-hospital. Ligado à organização evangélica Mercy Ships (“Navios de misericórdia”), o Africa é parte de um grandioso projeto humanitário que, ao longo dos últimos 25 anos, realizou mais de 30 mil cirurgias e outros 200 mil atendimentos clínicos em nada menos que 70 países. Para muitas dessas pessoas, sua presença representou a diferença entre a vida e a morte.

O alvo da ação quase sempre são pessoas que vivem no limiar da miséria, vitimadas pela doença e pelo preconceito. Como Aminita, conhecida como “Bruxa de Freetown” devido ao seu terrível aspecto. Com a face desfigurada por uma lesão, ela teria destino semelhante ao de outra liberiana, Beatrice, 40 anos de idade, cuja aparição era tão chocante que nem os motoristas de táxi aceitavam transportá-la. Já Angelle, moradora da zona rural do país, era alvo de discriminação devido ao tumor de 3 quilos que carregava na face. Sem tratamento, o mal avançava, comprometendo a respiração e a alimentação, com risco para sua vida. Ela era até considerada amaldiçoada. A complexa cirurgia facial necessária para o tratamento de deformações como estas e a restauração da face de suas vítimas quase nunca está disponível na rede de saúde de nações pobres como a Libéria. Então, o jeito era conformar-se com o sofrimento atroz.

Pois é justamente para salvar pessoas como Aminita, Angelle e Beatrice – que, operadas por missionários da Mercy Ships, hoje levam vida normal – que o navio Africa Mercy faz agora sua viagem inaugural. Atualmente, ele está na Libéria para um programa que deve durar dez meses e prevê, além da realização de cirurgias faciais para extração de tumores e correção de fendas de palato e lábio leporino, uma série de atendimentos que incluem operações de hérnia, catarata e outras com grande possibilidade de cura se realizadas em tempo hábil. Mas para populações inteiras de países africanos, asiáticos ou latino-americanos, uma simples consulta médica costuma ser luxo inacessível. “A situação mais difícil com a qual nós lidamos é ver o sofrimento humano em situações para as quais existe solução”, lamenta o cirurgião Gary Par ker, da equipe do Africa Mercy. Ele é parte de um grupo multinacional que envolve voluntários e funcionários da missão. São médicos, enfermeiros, dentistas, auxiliares, técnicos e tripulantes que viajam de porto em porto, de país em país, anunciando o Evangelho da maneira mais prática e eficiente que existe: o socorro ao próximo em nome de Jesus.

Frota missionária

Tem sido assim desde 7 de julho de 1982, quando o Anastasis, navio italiano construído 30 anos antes e restaurado pela Mercy Ships, foi lançado ao mar. Ligado à agência missionária internacional Jovens com uma Missão (Jocum), a embarcação foi adaptada como hospital flutuante com a missão de levar os melhores profissionais de saúde e tratamentos disponíveis, gratuitamente, às áreas mais desassistidas do mundo. Era a realização do sonho do missionário Don Stephens, que juntamente com sua mulher, Deyon, e um grupo da Jocum, trabalhava como voluntário nesta área. “Mercy Ships tem como foco a população carente e suas necessidades”, diz Stephens. Na verdade, a idéia original de um navio-hospital filantrópico data de cinco décadas atrás. De 1960 a 1974, o SS Hope, da Marinha americana, visitou 11 portos de países em desenvolvimento, oferecendo cuidados médicos a pessoas que não tinham qualquer acesso a serviços de saúde.

O Projeto Hope (do inglês Health opportunities for people everywhere, ou “oportunidades de saúde para pessoas em todos os lugares”) logo tornou-se fonte de inspiração para Stephens e outros líderes da Jocum. Assim como o Anastasis serviu ao redor do mundo, nos 25 anos seguintes Mercy Shipsexpandiu sua frota, adicionando o Island Mercy, que atuou na Ásia, e o Caribbean Mercy, para atender os países da América Central e Caribe. Em 1999, Mercy Ships adquiriu a Dronning Ingrid, uma balsa dinamarquesa que, reformada ao custo de 62 milhões de dólares, transformou-se no Africa Mercy, o maior navio-hospital não-governamental do mundo. Ele tem 6 centros cirúrgicos e 484 leitos. Em 2003, Mercy Ships desligou-se da Jocum e, atualmente trabalha de maneira independente.

Os integrantes da missão originam-se de mais de 40 nações, inclusive do Brasil (ver quadro na pág. 47). Eles trabalham juntamente com centenas de voluntários que servem durante qualquer período de tempo, variando de duas semanas a dois anos, de acordo com a disponibilidade de cada um. Parker, o cirurgião, diz que a rotina a bordo do navio é um “estudo de vida simples”. Ele e a mulher, Susan, diretora de Desenvolvimento dos funcionários, criaram seus dois filhos em uma cabine do Anastasis, onde viveram por 11 anos até que a missão resolveu aposentar a embarcação porque seus custos de manutenção ficaram altos demais. “Nós vivemos em locações desafiadoras. Como mulheres, nossa liberdade é muitas vezes cerceada”, conta Susan. “Não é sempre fácil. O maior benefício é saber que outras 400 pessoas à sua volta têm os mesmos objetivos. Por isso, é preciso investir nos relacionamentos – nós comemos, nos divertimos, louvamos a Deus, vivemos, trabalhamos e enfrentamos os desafios e alegrias juntos.”

O oftalmologista neozelandês Neil Murray conta que muitas vezes é preciso recorrer a intérpretes locais para poder consultar alguns pacientes. Em Gana, por exemplo, além do inglês, língua oficial, há outros 70 dialetos tribais. Ali, a ajuda de voluntários cristãos como Peter Bonney, pastor da United Church of God, uma congregação próxima à cidade de Nungua, é fundamental. Nas visitas do navio ao país, Bonney, que é fluente nos dialetos tanti, twi, ga e ashanti, é o elo entre médicos e os pacientes, que representam diversas etnias. Segundo Murray, cerca da metade dos deficientes visuais do mundo perderam a visão, ou parte dela, em decorrência de catarata, moléstia comum com o avanço da idade. “A cirurgia de catarata hoje é simples, mas as pessoas muitas vezes passam a vida toda sem ter uma chance”, conta Murray. Satisfeito, o médico conta que, nas jornadas a bordo do navio-hospital, já realizou cirurgias em pacientes acima dos 100 anos de idade.

Chamado

O trabalho a bordo do navio-hospital é intenso e desgastante. Por isso mesmo, a equipe precisa ser relembrada freqüentemente de seu chamado especial. Nas horas livres, são realizados cultos e encontros de grupos para discipulado e estudos bíblicos. A enfermeira australiana Fiona Fraser usa o exemplo da vida de Davi para falar sobre a preparação que cada um precisa ter. “De pastor de ovelhas, ele chegou a rei de Israel. Quando a hora é certa e você está pronto, Deus envia”, enfatiza. “E ele sabe onde achar cada um.” Tertius Vener e sua mulher Trudi, sul-africanos, têm buscado seguir esse chamado à risca. Cirurgião plástico, Tertius conta que recebeu do Senhor a orientação para dirigir sua vocação profissional ao cuidado com pessoas pobres, gente que não lhe poderia pagar um centavo. Desde então, serviu por dez anos a bordo do Anastasis, onde realizou nada menos que 12 viagens internacionais.

Quem se dispõe a este tipo de trabalho precisa estar disposto a envolver-se totalmente com a obra. Na opinião de Don Stephens, nos dias de hoje as pessoas precisam não apenas ouvir as boas novas, mas vê-las sendo anunciadas na prática. “O Evangelho tem dois componentes – fazer e, ao mesmo tempo, ensinar”, diz. Além do ministério realizado a bordo dos navios-hospitais, Mercy Ships também atua no desenvolvimento de outros projetos. Um dos mais recentes é o Operation New Steps (“Operação Novos Passos”), voltado à reabilitação de vítimas de minas terrestres. Países como Angola e Afeganistão, que recentemente estiveram envolvidos em sangrentas guerras, ainda possuem milhões de artefatos do gênero em seu subsolo. Estima-se que as minas mataram, feriram e mutilaram cerca de 30 mil crianças nas últimas décadas. Novos Passos começou como um contêiner equipado para produzir próteses de pés e pernas em até 24 horas. Hoje, a instituição tem uma sede central e também atende pacientes vítimas de poliomielite.

De acordo com Stephens, os custos de Mercy Ships são mantidos no nível mínimo, uma vez que cada missionário levanta seu próprio sustento. Além disso, grandes corporações doam à entidade milhões de dólares em equipamentos e medicamentos, todos os anos. O resultado disso tudo, como se costuma dizer, é que não tem preço. Após a cirurgia de Angelle, a liberiana que tinha as feições desfiguradas, as pessoas com quem convivia tiveram até dificuldade em reconhecê-la. Ela até ganhou outra nova cédula de identidade, com foto de seu novo rosto. E a gratidão de quem é ajudado comove os voluntários. Um paciente, que tinha enormes cicatrizes no rosto e seqüelas de queimaduras por ácido, escreveu agradecendo ao especialista que o operou: “Que Deus, o Todo-Poderoso, abençoe a você e sua família, pois você me devolveu a esperança que perdi após o acidente que sofri.”

Embora a natureza do trabalho seja explicitamente missionária, nenhum paciente é constrangido a converter-se à fé cristã. Mas todos recebem literatura, Bíblias e são convidados a assistir filmes evangelísticos enquanto aguardam atendimento. Don Stephens gosta de contar a história de um juiz muçulmano que assistiu o filme Jesus enquanto os médicos do navio operavam seu filho Alcini. Antes da cirurgia, perguntou: “Eu preciso me tornar cristão para que vocês operem meu filho?” A equipe respondeu que não. Não foi possível salvar a visão do menino, que perdeu um dos olhos. Mas os médicos lhe deram de presente três próteses oculares, de diferentes tamanhos, para serem usadas conforme seu crescimento. Muito contente, o pai recebeu de bom grado o Novo Testamento que lhe foi oferecido e confessou a Stephens: “Não me tornei cristão. Mas estou lendo o Novo Testamento e orando no nome de Jesus, só para garantir.” E fez uma declaração que resume bem os efeitos do trabalho da missão Mercy Ships: “Eu nunca tinha ouvido sobre o amor de Deus”.

Por Deann Alford

(Tradução: Karen Bomilcar. Redação e adaptação: Carlos Fernandes)

“Privilégio grande”

Entre a tripulação multinacional do navio Africa Mercy, CRISTIANISMO HOJE encontrou o brasileiro Carlos Eduardo Ferrante do Amaral, 30 anos, paranaense de Telêmaco Borba. Evangélico, ele freqüenta a Igreja Irmãos Menonitas em Curitiba. Dono de sólida formação profissional – é engenheiro eletrônico e mestre em engenharia biomédica –, Amaral está prestes a concluir doutorado pela Universidade de Munique, na Alemanha. Do navio, fundeado no porto de Monróvia (Libéria), ele falou sobre seu trabalho e a rotina a bordo:

CRISTIANISMO HOJE – Como tem sido a atual viagem à África?

CARLOS AMARAL – Eu me identifico bastante com o povo daqui, que demonstra grande simpatia pelo Brasil – especialmente, pelo nosso futebol. Além disso, existem muitas similaridades com a nossa cultura. Estamos há seis meses ancorados em Monróvia. Trabalhamos em média oito horas por dia. Minha função é fazer a instalação e manutenção dos equipamentos médicos do navio. Parte do nosso tempo livre é gasto visitando os pacientes do navio, orfanatos, hospitais e lares de deficientes na cidade. A Libéria possui varias praias que nos ajudam a descontrair durante os fins de semana. Além disso, temos muitas atividades religiosas no navio, como grupos familiares, cultos e visitas a igrejas locais.

Desde quando o senhor integra a equipe de Mercy Ships e como foi seu ingresso na organização?

Estou trabalhando com Mercy Ships há oito meses como técnico biomédico. Ouvi falar sobre Mercy Ships durante meu curso na Escola de Treinamento e Discipulado da Jocum, há sete anos. Porém, meu primeiro contato com esta instituição foi em 2004, durante meus estudos na Alemanha, país onde o primeiro navio, o Anastasis, estava ancorado.

Como representante de um país do Terceiro Mundo, o que significa para o senhor levar assistência médica a populações ainda mais pobres e desassistidas do que a brasileira?

Trabalhei com assistência social também no Brasil. Apesar das grandes necessidades do nosso país, a Libéria encontra-se em situação muito inferior. Aqui, o desemprego é de aproximadamente 80% e a renda per capita não passa de US$ 1 por dia. Não existe um sistema de saúde estruturado e o número limitado de médicos dificulta o tratamento de muitas doenças. Veja o exemplo dos tumores de face – mesmo benignos, tornam-se grandes deformidades faciais e podem levar à morte. Para mim, é um privilégio grande servir a este povo com as cirurgias oferecidas pelo nosso navio.(C.F.)

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