Escolas indígenas reúnem 0,5% do total de alunos da educação básica

Escolas indígenas reúnem 0,5% do total de alunos da educação básica

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:51

A escola indígena Kaakupé (Atrás da Mata, em português), na aldeia guarani Kuriy (Pé de Pinheiro), está registrada no Ministério da Educação e na Secretaria de Educação de Santa Catarina. Tinha 8 alunos em 2010, segundo dados do Censo Escolar. Na prática, a escola funciona na sala de estar de uma antiga casa em que vivem três famílias indígenas.

Kaakupé é uma das 2.765 escolas indígenas do país, segundo o Censo Escolar 2010. Em 2010, o número de matrículas nessas instituições foi de cerca de 246 mil, 0,5% do total da educação básica. O país tem 460 mil índios em 225 aldeias, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai). A média de estudo entre eles era de 3,9 anos em 2009, de acordo com o IBGE.

A maioria dos alunos indígenas, 175 mil, está no ensino fundamental. Outros 22 mil fazem a educação infantil, 27 mil fazem o ensino médio, 21 mil fazem a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e mil fazem a educação profissional. Outros três mil fazem licenciaturas específicas para indígenas.

As instalações na escola são precárias, com uma lousa, quatro carteiras, um fogão e um computador. A merenda fica estocada em um canto do espaço junto com livros e DVDs didáticos. “Aqui não tem escola. Tem aula, professores. Eles falam que tem escola. É muito difícil”, diz o cacique José Benites, de 33 anos, que é um dos professores da aldeia. Uma escola de madeira custaria, no máximo, R$ 15 mil, segundo o cacique.

De acordo com regras estabelecidas pelo MEC e pelo Conselho Nacional da Educação, as escolas têm direito à estrutura, normas de funcionamento e ordenamento jurídico diferenciados. O ensino deve ser intercultural e bilíngue e deve levar em conta processos próprios de aprendizagem. Estados e municípios são responsáveis pelas instalações e pela execução das políticas públicas nas escolas. A escola Kaakupé é estadual.

O G1 visitou a escola em 28 de fevereiro. Uma viagem de cerca de uma hora e meia de carro a partir de Florianópolis leva à aldeia Kuriy, formada em 2007, e hoje habitada por 80 pessoas de 19 famílias. A área de 509 hectares (cerca de 5 km²) foi comprada por cerca de R$ 1,4 milhão após o pagamento de indenização pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) a quatro aldeias de Santa Catarina e quatro aldeias do Rio Grande do Sul pelo impacto da duplicação da rodovia BR-101 em acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Antes disso, os moradores de Kuriy viviam na aldeia Massiambu, um terreno de quatro hectares (40 mil m²) em Palhoça, município próximo a Biguaçu e a Florianópolis.

Como já fazia em Palhoça, Benites cobra um projeto de construção da escola na Secretaria de Educação e da Funai. “Tem muita má vontade. A gente sente e eu falo isso para eles. No Massiambu, falavam que a terra não era regularizada. Brigamos há dez anos por isso. Agora, alegam que a Funai ia fazer a escola. Agora, não vai fazer. Tem que fazer projeto. A responsabilidade é da gerência regional de educação”, diz Benites.

Segundo o cacique, a escola tem quatro professores registrados, incluindo ele, com salário de R$ 550, cada um. Pretende contratar um quinto educador. Sobre a diferença dos dados entre matriculados na escola nos registros do MEC, 8 alunos em 2010, contra o número fornecido por ele, 33 alunos, entre crianças e adultos, Benites diz ter dificuldade para efetivar as matrículas na Secretaria da Educação. “Levo documentos à secretaria. Deixo lá. Depois, perdem os documentos. Passam de um para o outro”, afirma.

A entrega da merenda também é incerta. Em 2010, chegou no máximo três ou quatro vezes, segundo o cacique. “Deveria vir por mês. No ano passado, chegou três ou quatro vezes. Eles falam que o acesso é difícil”, afirma. Cadernos, lápis, canetas e outros materiais necessários para as aulas ainda não chegaram neste ano. “Não tem como dar aula”, afirma o professor Sergio Moreira, de 24 anos.

Quando a repórter pede a Moreira para mostrar o que ensinaria a seus alunos do primeiro e do segundo ano do ensino fundamental se fosse dar aulas, quatro crianças que brincam dentro da casa onde funciona a escola se sentam em frente à ele e acompanham a explicação. Uma delas, Letícia, de 7 anos, que está no segundo ano, empunha um lápis com um pompom e pega um pedaço de papelão para escrever. As crianças se mostram animadas com a possibilidade de assistir a uma aula.

Sergio faz desenhos na lousa, sol, lua e estrelas, um gato, um cesto. Pergunta, em guarani, qual é o significado de cada imagem. As crianças respondem na mesma língua. “Até o terceiro ano as aulas são em guarani. Só depois, começamos a ter aulas nas duas línguas”, afirma. A matemática também é ensinada. “Usamos os próprios desenhos para pedir que contem quantos são”, diz Sergio, que vive na aldeia há cerca de um ano, vindo do município de Cacique Doble, no Rio Grande do Sul. Quando dá aulas, Sergio diz ensinar também histórias antigas, fábulas sobre o surgimento do povo guarani, danças e brincadeiras.

Durante as explicações de Sergio, Benites usa a internet em seu laptop. Diz que reclamará no mesmo dia à secretaria pela demora no envio do material didático. Há ainda um outro computador na sala, que é usado por outro rapaz. Uma jovem acompanha tudo de perto. Outros adultos, moradores da casa, cozinham em uma fogueira feita no chão ao lado da varanda, alheios ao que ocorre na sala. A fumaça invade o espaço. Só Benites e Sergio fazem questão de conversar em português. A comunicação entre os índios ocorre em guarani. “Eles entendem português, mas têm dificuldade para falar”, afirma Benites.

O cacique dá aulas para adultos no período noturno. O tio dele, Tião da Silva, de 57 anos, é um dos alunos. “É importante para assinar o nome”, diz Tião, que tem como principal atividade cuidar da mãe, de 97 anos, que, afirma ele, é quase cega. Neusa Benites da Silva, de 32 anos, é outra aluna de Benites. Mãe de três filhos, ela divide o tempo entre a casa, a cozinha, a plantação e o artesanato. Mora com o marido e outra família. Sobre os estudos, afirma apenas: “Gosto muito”. Um dos filhos dela estuda fora da aldeia. Outros dois são alunos da escola Kaakupé. Segundo Benites, das 25 crianças, 19 estão matriculadas. As outras ainda não têm idade para frequentar as aulas.

Outra aluna de Benites é a atual mulher dele, Luciana da Silva, de 33 anos, com quem adotou um garoto, que tem 6 anos agora, filho da irmã dela. Com outra mulher, o cacique tem uma filha de 14 anos, que mora em outra aldeia. Apesar de entender o português, Luciana não responde às perguntas da repórter e se mantém atrás do marido o máximo possível.

Diferenças de cultura

A educação na escola é considerada “muito estranha” pelos guarani, segundo Benites. Índios mais velhos são contrários à escola pelo medo da influência dos “não índios”, de acordo com o cacique. Os pais dele, no entanto, são exceção. Foram eles que o obrigaram a ir à escola. Na época, ele foi estudar fora da aldeia. No começo, não gostava. Aprendeu português e em 1997 passou a trabalhar como tradutor para alunos guaranis. Depois, tornou-se professor e junto veio o ativismo. Fez parte do Conselho Estadual Indígena, que hoje ele e outros líderes indígenas tentam colocar novamente em funcionamento.

Na escola Kaakupé, Benites não aceita a atuação de professores “não índios” e briga para que possam seguir suas próprias regras, como garante o MEC. O calendário, por exemplo, é diferente. Os guaranis contam os dias pela lua, mas não contam as horas, as semanas. Não têm feriados. As estações do ano são apenas o verão e o inverno. O ano letivo acaba em novembro. “O estado reclama. Sempre tem uma desculpa. Falam que o sistema não aceita, mas o sistema são as pessoas”, afirma.

As condições da escola são apenas um retrato das dificuldades enfrentadas pelos moradores da aldeia Kuriy. A população tem algumas plantações, de milho, batata doce, mandioca, para subsistência, mas sofre com a degradação do solo do local que habitam, um antigo sítio. “A terra”, como chamam, é cortada por rios e riachos. As mulheres fazem artesanato para vender nas cidades próximas. Das 19 famílias, 13 recebem Bolsa-Família, segundo Benites. Uma moradora da aldeia é agente de saúde e outro será contratado para participar de um projeto de saneamento básico.

O cacique reclama da falta de apoio, principalmente da Funai, que de acordo com ele, administra o dinheiro que restou do pagamento de indenização pelo impacto da duplicação da BR-101. Esperam ajuda para melhorar a plantação e para construir casas. “Para termos uma vida boa não há necessidade de dinheiro. Precisamos de terra, plantação, casa na mata, rio. Precisamos de apoio. Aqui não tem nada de apoio para começar a fazer a roça”, diz.

Na aldeia, há ao menos 13 casas, algumas que já existiam no antigo sítio e outras construídas pelos índios com barro, madeira e palha. Um galpão também é usado como moradia. Algumas famílias moram juntas. As casas estão longe umas das outras e, parte deles, têm duas construções, uma para dormir e outra para “fazer fogo”, onde cozinham e se aquecem.

Mistura

Os costumes tradicionais guaranis, como cozinhar em pequenas fogueiras feitas no chão, caçar, fumar cachimbo, entre outros, se misturam aos costumes dos “não índios”. Benites usou cimento para fortalecer sua casa, tem fogão a gás, TV. Há luz elétrica na aldeia, mas a água é puxada por mangueiras direto da nascente de rio próximo. As casas têm montes de roupas espalhados e há varais repletos de peças espalhados pelo entorno das casas. A comunicação é feita apenas pela internet. Telefones e rádios não funcionam na região da aldeia.

Há fossas apenas nas antigas construções da antiga propriedade. Além de cães e gatos, porcos do mato são criados como bichos de estimação dentro de casa. Enquanto as crianças têm olhares vivos e curiosos, os adultos, tanto homens como mulheres, parecem apáticos. O pai de Benites, Maurício, de 71 anos, é um deles. Sentado ao lado da atual mulher, bem mais jovem, espera o cozimento do feijão para comer com arroz. Ele confirma que obrigou o filho a estudar, mas ele mesmo não teve a mesma chance. “Não estudei. Passou”.

Apesar do empenho de Benites na educação, a principal preocupação da aldeia hoje é a alimentação. “A ideia inicial é não passar fome. Não passamos muita fome. Algumas vezes passamos fome. Já passamos algumas necessidades por não ter comida, mas o povo guarani é muito solidário. Se não tem alguma coisa, vai na minha casa. Se tem comida, todo mundo come. É assim que sobrevive”, afirma.

Secretaria da Educação

Tanto a Funai como a Secretaria da Educação de Santa Catarina admitem que a situação da aldeia e da escola é “precária”. A gerente regional do ensino fundamental da Secretaria da Educação de Santa Catarina, Julia Siqueira da Rocha, afirmou que a entrega da merenda passará a ser efetiva a cada 15 dias após o carnaval. Disse que a entrega em 2010 foi feita em uma aldeia próxima à Kuriy, segundo acordo firmado entre a secretaria e as aldeias, mas o mesmo não deu certo por problemas entre os indígenas.

Julia não soube dizer por que o material didático completo não foi entregue na aldeia. A gerente afirmou que a construção da escola é responsabilidade da Funai pelo programa de apoio às aldeias atingidas pela duplicação da BR-101. “A situação da escola é irregular e precária”, disse.

De acordo com Julia, 11 crianças e 16 adultos estão matriculados na escola Kaakupé. Sobre a documentação dos índios, disse não ter informações sobre extravios dentro da secretaria. “O que há é falta de documentos”, afirmou.

Funai

O coordenador regional do Litoral Sul da Funai, João Alberto Ferrareze, admitiu que a situação na aldeia é “precária”. “Não tem assistência efetiva”, disse. Confirmou ainda que as cestas básicas entregues são insuficientes para a alimentação na aldeia.

Segundo Ferrareze, está prevista a construção de 15 casas na aldeia Kuriy, de um centro comunitário e de uma escola e há estudo para construção de posto de saúde pelo programa de indenização pela duplicação da BR-101. Disse que a previsão é que tudo ocorra neste ano. “A previsão é de andamento bem grande”, afirmou.

Ferrareze disse que houve muitos problemas na efetivação do programa desde 2007, como o cancelamento de contrato com uma empresa para a construção de casas. Afirmou ainda que há previsão de início de parcerias com a Secretaria de Agricultura de Santa Catarina para projetos de criação de galinhas e peixes, além de plantação de milho e feijão. Há outros projetos para proteção da terra, recuperação de açudes, proteção da fauna e da flora e plantio de plantas nativas. “A Funai não tem pessoal, mas tem recursos”, disse.

Também há planos para cadastro de famílias para acesso a benefícios sociais, como aposentadorias, entre outros, e projeto para acordo com prefeituras para pontos de venda de artesanato. Disse que hoje há cidades, como Florianópolis, Camboriu e Itapema, que permitem a atuação das índias nos municípios.

A antropóloga da Coordenação Geral de Gestão Ambiental da Funai, Maria Janete Albuquerque Carvalho, afirmou, por e-mail, que a aldeia recebe apoio às atividades produtivas, que garante sementes e insumos. Sobre o programa de infra-estrutura, que prevê construções, disse que "tiveram início e estão tendo continuidade, entretanto, enfrentamos problemas técnicos e jurídicos para a sua total execução".

Por Fernanda Nogueira

Este conteúdo foi útil para você?

Sua avaliação é importante para entregarmos a melhor notícia

Siga-nos

Mais do Guiame

O Guiame utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência acordo com a nossa Politica de privacidade e, ao continuar navegando você concorda com essas condições