A palavra presidenta existe na língua portuguesa desde 1872. E desde 1925 ela consta como verbete do dicionário Caldas Aulete, revela, com exclusividade para o iG , um estudo feito pelas lexicógrafas Marina Baird Ferreira e Renata de Cássia Menezes da Silva, da equipe do dicionário Aurélio . Mas quase um século depois de ser dicionarizado, o substantivo feminino de presidente ainda causa estranhamento e leva muitos leitores do iG , que adota o uso do termo, a questionar sua correção ortográfica.
O principal argumento contra o uso de presidenta se baseia no fato de que na língua portuguesa existem os particípios ativos como derivativos verbais. Assim, quem ataca é atacante e não atacanta, mesmo em uma partida de futebol feminino. Dessa forma, o particípio ativo do verbo ser, que é ente, também não permitiria a flexão de gênero. Ela se daria apenas pelo artigo feminino que antecede a palavra.
Portanto, a forma correta, segundo essa teoria, seria sempre a presidente, como é a estudante ou a gerente. Não existe estudanta porque ninguém reivindicou, diz o linguista Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília. Mas à presidenta, por ser um cargo único e muito importante, é mais do que justo que seja dado este direito.
De acordo com as lexicógrafas Marina Baird Ferreira e Renata de Cássia Menezes da Silva, a origem de presidenta prende-se, é claro, ao vocábulo presidente, mas não por flexão e, sim, por derivação. Houve a substituição da vogal temática (-e) pela desinência formadora do feminino em português (-a). Fato que se deu por analogia com inúmeras outras palavras da língua, como chefa e governanta, escreveram elas no estudo publicado agora pelo iG .
Para elas, não se trata de exceção, mas de uma possibilidade reconhecida pela história da língua. Tal processo é possível no nosso idioma desde sempre, como se vê no substantivo feminino infanta, registrado na língua desde o século 13, diz o parecer das lexicógrafas.
Para o professor da Universidade de Campinas Sirio Possenti a discussão é absurda. Você tem um dicionário bom aí? Então, pronto, responde à reportagem. Segundo ele, os termos correção e aceitabilidade não são universais, pois envolvem cultura ou política. É correto? Pelos critérios das gramáticas e dos dicionários, sim. Mas é curioso que os que apelam para gramáticas para criticar os livro não aceitam as gramáticas quando abonam presidenta, diz.
Possenti se refere à polêmica causada por um livro utilizado em 4.236 escolas públicas do País que considera como válida a expressão nós pega o peixe . Se outras palavras que ganharam o feminino por derivação, como mestra, monja, governanta e infanta não causam a mesma estranheza, qual o problema com a palavra presidenta?
A primeira resistência de muitas pessoas está na sonoridade. Como até hoje foi uma palavra pouco pronunciada, presidenta enfrenta uma barreira natural a ser superada pelo costume. Na Argentina, Cristina Kirchner prefere ser chamada de presidenta ou ainda chefa de Estado. No site da Casa Rosada, sede da Presidência argentina, ela é sempre tratada como presidenta.
Mas lá, talvez por já ter tido outra presidenta, a palavra não suscita o mesmo debate: praticamente todos os veículos de comunicação a adotam, mesmo os jornais de oposição, como o Clarin, chamam Cristina Kirchner de presidenta. Os argumentos contrários (à palavra presidenta) podem vir da sua conotação política ou feminista, diz o professor Possenti. Se se tratar de problemas de ouvido, há duas soluções: ler mais ou ir ao otorrinolaringologista.
De fato, menos de um ano depois do discurso da vitória de Dilma Rousseff , quando ela se anunciou publicamente como presidenta eleita, gerando a primeira onda de debates sobre o tema , a palavra começa a cair na rotina. Entre os políticos, poucos são os que não usam a presidenta (ou pelo menos não a usam ocasionalmente). A grande maioria o faz de forma natural, como o governador de Pernambuco Eduardo Campos (PSB). Mas outros dão a ela um sentido irônico, como um cacique do PMDB, descontente com Dilma, que se refere a ela como essa presidenta. No mesmo PMDB, tanto o vice-presidente Michel Temer como o presidente do Senado, José Sarney, integram a lista dos que hesitam entre presidente e presidenta. Sarney já levou até bronca da senadora Marta Suplicy (PT-SP), primeira vice-presidenta do Senado. Em fevereiro, Sarney chamou Dilma de presidente e Marta pediu para corrigi-lo. "Pela ordem! É presidenta", disse em plenário. Já o vice-presidente Temer chama Dilma de presidenta quando se lembra, segundo seus assessores. Na maioria das vezes, contudo, diz presidente.
Sou contra o uso, embora ache legítimo, porque tem um sentido político, não partidário com o governo, mas em relação à posição feminista, diz o professor de linguística da Universidade Federal do Paraná Bruno Dallari. Dallari acrescenta que considera ruim quando presidenta é usado de forma isolada, apenas para tratar de Dilma Rousseff. Se a flexão fosse atribuída a todas as funções com a mesma terminação, como assistenta ou gerenta, seria uma reforma maior, afirma.
Provavelmente a língua portuguesa não sofrerá tamanha reforma. Mas a popularização da palavra presidenta e o seu significado político estão vencendo outras barreiras.
No PSDB, maior partido de oposição ao governo federal, a deputada estadual de São Paulo Maria Lúcia Amary defende o uso do gênero feminino. Presidenta da Comissão de Constituição de Justiça da Assembleia Legislativa, Maria Lúcia diz que o uso de presidenta é uma forma de as mulheres ocuparem mais espaço na política, com maior visibilidade.
A tucana não acredita que o tratamento presidenta signifique alinhamento com o governo Dilma. Desde que a presidenta Dilma foi eleita, existe uma tendência a forçar esse tratamento. Eu gosto da expressão pela questão da luta pelo gênero feminino. A briga partidária fica em segundo lugar, afirma. Das 15 comissões da Alesp, apenas a CCJ tem uma mulher na presidência.
As pessoas que são contra o termo presidenta estão defendendo um machismo ou colocando partidarismo em uma questão linguística, afirma o linguista Marcos Bagno, da Universidade de Brasília.
Pioneirismo
A chegada de mulheres ao poder nas últimas décadas resultou não apenas na adoção do gênero feminino para a descrição de cargos públicos, como também em adaptações de protocolo e cerimonial. As mudanças ocorreram, por exemplo, quando Luiza Erundina (PSB-SP) tornou-se a primeira mulher a comandar a Prefeitura de São Paulo, em 1988. O mesmo aconteceu nove anos antes no Senado. Em 1979, a amazonense Eunice Michiles foi a primeira senadora eleita no Brasil.
A senadora Lídice da Mata (PSB-BA), que atuou como deputada na Constituinte entre 1987 e 1988, lembra que na época não havia, no plenário, banheiro privativo para as parlamentares, mas apenas para os parlamentares. Em seu site, a senadora relata o preconceito que enfrentou. Nós chegamos num Congresso que não tinha sequer banheiro feminino. O plenário só tinha banheiro de homem, um banheiro único porque a presença da mulher era tão minúscula que não se fazia necessário esse tipo de equipamento.
O iG concorda com os linguistas que entendem o português como uma língua viva, capaz de incorporar novas expressões de acordo com as transformações da sociedade. Além disso, em todas as cerimônias públicas, a ordem do cerimonial é tratar Dilma como presidenta. Adotar a presidente levaria o leitor a ver duas formas de tratamento quando o iG transmitisse eventos oficiais ou publicasse algum discurso presidencial com referência ao termo. Por isso, as reportagens se referem a Dilma Rousseff como presidenta.
Mas o uso diário do termo que há 139 anos consta da língua portuguesa e há mais de oito décadas faz parte da norma culta não implica qualquer alinhamento partidário. Da mesma forma que os veículos que preferem usar a presidente não estão fazendo campanha contra Dilma, adotar o termo presidenta não significa ser oficialista.
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