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Especialista defende 'autoridade externa' no Haiti pós-terremoto

Especialista defende 'autoridade externa' no Haiti pós-terremoto

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 3:27

A recuperação do Haiti passa pela criação de uma instância internacional com poderes para decidir como será usado o dinheiro dos doadores e fiscalizar sua aplicação, na opinião do ex-consultor da ONU para o país caribenho Paul Collier.

Professor de Oxford, Collier ajudou a elaborar o projeto de recuperação econômica do país, que em 2008 foi seriamente afetado por furacões. "Generosidade, sim. Ingenuidade, não", disse Collier, em entrevista à BBC Brasil.

Segundo ele, a participação de "figuras de prestígio" nesse processo pode ainda ajudar a "disciplinar" os vários organismos internacionais que intensificaram sua presença no Haiti, após a tragédia.

Ele cita o ex-presidente americano Bill Clinton e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como "ótimas opções".

A seguir, os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil - Em seus artigos o senhor considera o Haiti um "estado falido há anos". O que há de tão errado com o Haiti?

Paul Collier - Claro que estamos falando de um assunto complexo, com implicações históricas. Minha avaliação, porém, é de que o principal problema é de governança, acima de tudo. É certo que alguns passos importantes foram dados nos últimos anos. A estabilidade promovida pelas tropas de paz criou uma janela de oportunidade. Mas ainda assim, o que vemos no Haiti é um clientelismo político. E as pessoas no poder se beneficiam do status quo. Mas veja bem, essa não é uma situação incomum. Essa é a história de vários países africanos.

BBC Brasil - O senhor sugere, então, algum tipo de interferência internacional?

Collier - A interferência mais difícil já foi feita, com a atuação das tropas de paz das Nações Unidas, sobretudo com o trabalho do Brasil. Mas é preciso ir além. A comunidade internacional precisa ter uma participação mais pró-ativa na questão haitiana. Vou dar um exemplo: diversos países e instituições estão se preparando para transferir uma grande quantidade de dinheiro ao Haiti. Mas ao derramarmos dinheiro em um sistema corrupto, corremos o risco de fortalecer essa corrupção, que é o coração do problema. A comunidade internacional precisa combinar generosidade, fornecendo dinheiro, com um senso de realidade apropriado. Em outras palavras, a provisão de dinheiro precisa vir acompanhada por uma fiscalização efetiva de como essa ajuda está sendo usada. Generosidade, sim. Ingenuidade, não.

BBC Brasil - Mas fiscalização e intervenção são coisas diferentes, não?

Collier - Não digo intervenção, mas uma maior participação internacional é, sim, bem-vinda. Ninguém está falando de uma autoridade externa sem a participação dos haitianos. Estamos falando de co-liderança, de uma co-autoridade entre haitianos e figuras internacionais. Clinton (ex-presidente dos Estados Unidos) e Lula seriam ótimos nomes. Esse tipo de autoridade conjunta é importante não apenas para acompanhar os projetos e o uso do dinheiro, como também pode ajudar a disciplinar os diferentes atores internacionais envolvidos na questão haitiana. Essas várias organizações precisam de uma autoridade externa, dizendo a eles o que fazer. E para isso você precisa de figuras de prestígio, como Clinton ou Lula, que em breve deixará a Presidência.

BBC Brasil - Essa não é uma ideia delicada, sobretudo em uma região com lembranças de golpes de Estado?

Collier - Antes de mais nada, é preciso lembrar que existem 600 mil pessoas desabrigadas. É uma situação desesperadora e que exige ações rápidas. Em segundo lugar, essa autoridade externa seria temporária, algo que funcione até que o Estado haitiano possa andar com os próprios pés, o que levaria cerca de dois ou três anos. Alguma organização internacional, como as Nações Unidas ou a Organização dos Estados Americanos (OEA), pode servir de suporte à ideia. Estamos falando de um projeto que pode fazer uma diferença decisiva na vida de dezenas de milhares de pessoas, que estão vivendo em situações desesperadoras.

BBC Brasil - O senhor acha que o perfil da força de paz da ONU, a Minustah, merece ser modificado em função do terremoto?

Collier - A ideia de uma autoridade conjunta, com o governo haitiano e organismos internacionais, representaria uma mudança no processo decisório, o que poderia trazer alguma mudança também às forças de paz. Essa autoridade teria papel decisivo nas decisões de como gastar o dinheiro, de quais e quantos prédios reconstruir e por aí vai. Por trás de cada decisão, até das mais simples, existiria uma mudança em como as decisões são implementadas. O fato é que não podemos deixar as coisas como estão e como sempre foram no passado.

BBC Brasil - Há quem veja na tragédia haitiana uma oportunidade para o Brasil. Como o senhor vê isso?

Collier - Essa é, sim, uma oportunidade para o Brasil. O país pode não apenas demonstrar sua liderança regional, como também fazer a diferença na vida de milhares de pessoas. Não existe conflito nisso. Um país pode fazer bem para ele próprio e também para os haitianos. Na verdade, esse tipo de coincidência entre interesse pessoal e benevolência é do que precisamos. Essas duas coisas combinadas é que ajudam a sustentar as ações. Não espero que todo mundo seja santo. Precisamos buscar oportunidades como essa, em que todos podem se beneficiar.

BBC Brasil - O Haiti enfrentou, recentemente, outras tragédias naturais, como os furacões de 2008. Que lições é possível tirar daquele processo de recuperação?

Collier - Uma grande lição é a rapidez. Quando o governo haitiano trouxe uma resposta aos furacões de 2008 já estávamos em abril de 2009. Todo o esforço, toda a energia reunida logo após a catástrofe, já estavam perdidos. Podemos dizer que a resposta internacional foi inadequada ao problema. Voltando ao terremoto, alguns dos principais países estão planejando uma cúpula para o próximo mês que será vital. Se passarmos de março, as intenções vão se dissipar, vão ser desviadas para outras crises, no Afeganistão, Irã etc. E aí sim, se perdermos o momento, teremos um problema sério.

BBC Brasil - É muito comum vermos comparações entre Haiti e países da África. Algum caso africano pode servir de inspiração?

Collier - Ruanda, por exemplo, é uma história incrível. Na verdade, essa comparação foi feita pelo próprio Clinton, recentemente. Ruanda conseguiu se erguer em apenas 16 anos, depois do genocídio de 1994 (estima-se que 800 mil pessoas tenham morrido no período de três meses). E o caso do Haiti é muito mais fácil que o de Ruanda. Em dois aspectos-chave: um deles é de que o Haiti fica maravilhosamente localizado, próximo dos grandes mercados do mundo, enquanto Ruanda está presa territorialmente, sem acesso à costa. A outra diferença, claro, é que por mais que um terremoto possa ser terrível, é muito mais fácil reconstruir um país depois de um desastre natural do que de uma catástrofe gerada pelo homem como o genocídio de Ruanda.

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