A exposição na Galeria Nacional de Bulawayo tornou-se uma cena de crime: as obras de arte foram banidas e o artista foi acusado de insultar o presidente Robert Mugabe.
As imagens que mostravam representações gráficas das atrocidades cometidas na primeira fase do regime autoritário do presidente Mugabe, que já está no poder há 30 anos, foram cobertas com páginas amareladas de um jornal controlado pelo Estado.
No entanto, os esforços do governo para enterrar a história tiveram efeito contrário e despertaram a população para as lembranças do Gukurahundi, nome dado no Zimbábue ao massacre e tortura de milhares de civis na região de Matabeleland, 25 anos atrás. "Podem suprimir as mostras de arte, as peças teatrais e os livros, mas nunca apagarão o Gukurahundi dos corações das pessoas. É indelével", afirma Pathisa Nyathi, que é historiadora e mora na capital da província.
Enquanto um novo período eleitoral se aproxima, uma pesquisa recente revela que 70% dos zimbabuanos têm medo de serem vítimas de violência ou intimidação política, como aconteceu com milhares de pessoas nas eleições de 2008.
No entanto, uma proporção igual quer que a votação aconteça de qualquer maneira, o que evidencia o profundo desejo por democracia e a vontade de muitos de não reeleger Mugabe, ainda que com grande risco pessoal, dizem os analistas. Em poucos lugares estes sentimentos sobre a violência na vida pública são tão intensos como aqui. Nos últimos meses, o governo _ através de inconsistências ou provocações deliberadas _ resolveu piorar as coisas.
Antes da Copa do Mundo na África do Sul, em junho do ano passado, um ministro do partido de Mugabe, o ZANU-PF, convidou a equipe de futebol da Coreia do Norte para ficar baseada em Bulawayo até o início dos jogos. O gesto incitou protestos ferozes, pois foi a Coreia do Norte que treinou e equipou a infame Quinta Brigada, que os historiadores estimam ter matado pelo menos 10 mil civis da minoria Ndebele, entre 1983 e 1987.
"Para nós, isso abriu feridas muito antigas", conta Thabitha Khumalo, membro do Parlamento, sobre a decisão de trazer a equipe nortecoreana para o centro de Ndebele. "Estamos sendo lembrados da dor mais terrível. Como ousam fazer isso? Nossos entes queridos ainda estão enterrados em buracos, poços e covas rasas", diz ela.
Khumalo foi entrevistada quando o convite ainda estava pendente, no ano passado. Ela chorou enquanto relembrava o dia que destruiu sua família: 12 de fevereiro de 1983.
Ela tinha 12 anos quando os soldados da Quinta Brigada chegaram ao seu vilarejo e colocaram sua família numa fileira. Um soldado cortou a barriga de uma tia que estava grávida com uma baioneta e puxou o bebê para fora. Ela conta que sua avó foi forçada a moer o feto em um pilão normalmente usado para fazer farinha. Seu pai foi obrigado a estuprar a própria mãe. Seus tios foram mortos a tiro.
Protestos anti-Coreia do Norte
As lembranças intensificaram os protestos e fizeram com que a equipe da Coreia do Norte desistisse de ficar no Zimbábue. Mas os sentimentos ainda estavam inflamados meses depois, quando o governo ergueu uma enorme estátua de bronze de Joshua Nkomo _ um herói da libertação, que era Ndebele e rival de Mugabe _ que, por incrível que pareça, foi feito na Coreia do Norte.
Em setembro, curvando-se ao clamor público (e aos protestos da família de Nkomo, a qual considerava o pedestal muito pequeno), a estátua foi retirada de uma praça importante em Bulawayo e levada para um terreno baldio atrás do Museu de História Natural. Dentro do museu há um retrato de Mugabe, vigoroso, elegante e de óculos além do seu tamanho. Um enorme crocodilo empalhado, com dentes longos e afiados, decora uma galeria junto ao brasão de sua família. A placa indica que a média de vida do crocodilo passa dos 80 anos. Mugabe faz 87 em fevereiro.
Mugabe assinou um pacto com o presidente da Coreia do Norte, Kim Il Sung, para treinar seu exército, poucos meses após o país se tornar independente e acabar com o governo de minoria branca, que dominou até 1980. Mugabe batizou a brigada de Gukurahundi, que significa "as primeiras chuvas que limpam os vestígios de milho antes da primavera". Ele disse que era necessário reprimir a violenta dissidência interna, mas os historiadores afirmam que foi uma tática para atacar a base política de seu adversário e impor um regime de partido único.
O assessor de imprensa de Mugabe, George Charamba, disse que o presidente considerava o Gukurahundi "um momento de loucura". Mas quando foi questionado se Mugabe havia pedido desculpas pelo que aconteceu, Charamba ficou irritado. "Você não pode chamar isso de um momento de loucura sem criticar o seu próprio passado ", disse ele.
"Espero que as pessoas não estejam querendo humilhar o presidente. Espero que elas permitam que ele continue a curar esta nação. Para nós, isso é o mais importante. Nosso sentimento de amargura e nosso senso de recompensa podem não ser exatamente o que foi visto em Nuremberg".
O centro de Bulawayo tem o ritmo lento de uma cidade agrícola, mas as feridas psicológicas do Gukurahundi se escondem sob a superfície plácida. Na Galeria Nacional, a imponente escadaria que conduz à exposição sobre o Gukurahundi está bloqueada por um cartaz que diz "Proibida a Entrada". Mas os quadros desconcertantes, pendurados nas paredes saturadas com tinta de um vermelho cor de sangue, ainda podem ser vislumbrados da galeria acima, por entre as grades das varandas que circundam o piso.
Voti Tebe, diretor da Galeria Nacional, diz que permitiu ao artista Owen Maseko criar uma exposição sobre o Gukurahundi como forma de contribuir para a reconciliação. Não havia recursos, porém Maseko resolveu fazê-lo mesmo assim. Ele era apenas um menino na época do Gukurahundi, mas se recorda dos ruídos das sirenes e helicópteros. "As lembranças estão vivas e as vítimas também. É algo que não podemos esquecer", afirma ele. Em uma grande pintura de três paineis, uma fileira de faces é mostrada, com as bocas abertas em gritos sem palavras. Em outra, mulheres e crianças choram lágrimas de sangue. Três corpos de papel machê, um deles pendurado de cabeça para baixo, preenchem uma moldura. Por todo o museu há imagens ameaçadoras de um homem de óculos enormes: Mugabe.
Um dia depois de sua inauguração no ano passado, a exposição foi encerrada. Maseko foi preso e, em seguida, liberado sob fiança. O caso será julgado pela Suprema Corte. Ele é acusado de insultar o presidente e de falsidade ideológica contra o governo e pode ser condenado a até 20 anos de prisão.
David Coltart, um político de Bulawayo que é Ministro da Cultura, disse que alertou outros ministros que processar Maseko poderia transformá-lo em uma celebridade e inflamar as divisões políticas. Coltart, que faz oposição ao governo de Mugabe, apelou diretamente ao Ministro da Defesa Emmerson Mnangagwa, que já participava do governo na época do Gukurahundi.
"Somente quando as nações enfrentam o passado, na sua realidade, não como uma ficção tendenciosa, elas podem começar a lidar com ele", disse Coltart em uma palestra realizada na galeria durante a mostra de Maseko. Ele considerou o Gukurahundi "um politicídio, senão um genocídio'.
O dramaturgo Cont Mhlanga conhece o preço da liberdade de expressão. Sua peça "The Good President" foi proibida no dia da estreia, em 2007, quando o teatro foi invadido pela polícia.
A personagem principal da peça é uma avó que mente aos seus netos sobre a morte do pai. Ele foi enterrado vivo durante o Gukurahundi, mas as crianças, sem saber da verdade, se transformam em beneficiários do governo de Mugabe. Um deles é um policial abusivo; o outro, destinatário de uma fazenda tomada pelo Estado. Segundo Mhlanga, o nome da peça faz referência à tendência dos líderes africanos de descrever Mugabe como um bom presidente. "Este homem tem sangue em suas mãos", afirma ele.
Mhlanga diz que sente como se alguém tivesse colocado fita adesiva em sua boca, mas insiste que a tarefa mais importante dos artistas do Zimbábue é expressar o que o povo tem medo de falar. "Vivemos em uma sociedade na qual tememos até mesmo nossas sombras. Para criar espaços democráticos numa sociedade como a nossa, temos que aprender a lidar com o medo", defende ele.
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