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Governo da Mauritânia envia sábios religiosos para conversar com terroristas da Al Qaeda presos

Governo da Mauritânia envia sábios religiosos para conversar com terroristas da Al Qaeda presos

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:27

Ver o interior da prisão de Lahsar em Nuakchot, capital da Mauritânia, é uma missão impossível. O centro de detenção que abriga 60 presos da Al Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI), o grupo terrorista que sequestrou três cooperantes da ajuda espanhola, está blindado por centenas de homens armados e rodeado por um impressionante cordão de pilares de pedra que impedem que os "irmãos" salafistas ainda livres e ocultos nos bairros da periferia lancem um carro-bomba.

Ninguém baixou a guarda, o edifício de barro continua de pé no centro da cidade, tão imponente quanto antes, protegido à direita e à esquerda pelos quartéis da polícia e da alfândega, mas há duas semanas se abriu uma porta e um grupo de sábios religiosos (imames) entram e saem diariamente, envoltos em suas elegantes túnicas.

Os oito imames que compõem o Conselho Islâmico da Mauritânia, órgão que depende do Ministério de Assuntos Religiosos, caminham até uma grande tenda onde os esperam os fanáticos que semearam o temor neste país de 3,3 milhões de habitantes, que tem um dos índices de pobreza mais altos do planeta. Mohamed el Hassen Ould Dudu, um sábio religioso mauritano que conseguiu afastar da jihad alguns jovens na Arábia Saudita, atua como mestre-de-cerimônias. Seu último sucesso como mediador foi tirar da prisão vários ricos empresários mauritanos que não pagavam impostos, coisa que não haviam conseguido nem Muammar Khadafi, o presidente líbio, nem o rei do Catar, dois de seus principais defensores.

O encontro com os terroristas foi bendito e patrocinado pelo general Mohamed Ould Abdel Aziz, presidente da Mauritânia, e seu objetivo parece mais difícil de conseguir do que derrubar os muros da prisão de Lahsar: conduzir os jihadistas para o "caminho reto" e afastá-los da violência. Algo a que não parecem dispostos os dirigentes mais duros desse coletivo de presos representados pelo barbudo Kadim Ould Saman, de 31 anos.

Saman participou do primeiro encontro com uma camiseta desenhada por ele mesmo em sua cela, com as iniciais da Al Qaeda no Magreb Islâmico em seu peito: "Este é meu único símbolo e bandeira", declarou, desafiante, aos imames. Estava rodeado por seus escudeiros Maroof Ould Haiba, de 30 anos; Sidi Ould Sidina, de 22, e outros seguidores, o clã dos duros entre os presos islâmicos da Al Qaeda, sujeitos frios e implacáveis que enfrentam penas de morte, mas parecem não ter medo e rejeitam a assistência de advogados.

Saman e sua corte de barbudos mauritanos são uma fiel representação do que é hoje a Al Qaeda no Magreb Islâmico. O grupo terrorista aliado de Osama bin Laden na África, que retém os cooperantes espanhóis há dois meses, se alimenta de militantes de sete nacionalidades e se oculta com a habilidade de uma serpente pelo imenso deserto do Sahel, uma vasta região que se estende do oceano Atlântico até o mar Vermelho, terra de ninguém onde as tropas dos frágeis governos da região africana não se atrevem a mostrar o nariz.

O desafio inicial de Saman, ex-poeta transformado em terrorista, foi uma premonição de que a iniciativa inédita de falar com os presos no cárcere mauritano seria uma tarefa complicada. Na última terça-feira, Saman deu um passo que muitos observadores de dentro e fora da Mauritânia esperavam. O terrorista divulgou um comunicado em que anunciou sua decisão de interromper o diálogo e ameaçou não ir tomar o chá mauritano na tenda erguida para os encontros. Saman queixa-se de que os imames enviados pelo presidente até suas celas não querem falar do que eles consideram importante.

"Temos três perguntas que eles se negam a responder. Se o governo não impõe a xariá (lei islâmica), é um governo muçulmano ou não? A jihad é obrigatória para os muçulmanos? Como podemos viver como muçulmanos se nosso governo não é islâmico?", explica o dirigente terrorista. "Este diálogo é uma maquiagem do governo, um teatro fabricado entre os religiosos do governo e seus serviços secretos", critica.

Saman está sendo fiel ao perfil duro e provocador fabricado por ele e pelos mensageiros com que conta dentro e fora da prisão de Lahsar. Uma imagem que serve de gancho para recrutar outros jovens desocupados que perambulam pelas ruas e bairros sem asfalto de Nuakchot, rapazes desempregados que não podem entrar na universidade, que passam as horas mortas olhando para as estrelas e se perguntam o que podem fazer sem nenhum meio em um país onde há tanto que fazer. Jovens desarraigados que se transformam em presas fáceis para os recrutadores da Al Qaeda.

Em um dos encontros na tenda carcerária, o imame Andem Ould Tah perguntou a Saman por que não respeitava seu presidente se, além do mais, os dois são da mesma tribo. As tribos na Mauritânia têm um enorme peso social e político. "Você precisa respeitá-lo, porque além de presidente é seu primo", espetou o religioso, segundo relatou um dos participantes do encontro. E o terrorista respondeu: "Não reconheço essa bandeira, nem esse presidente, nem o governo. Meu governo é o governo islâmico, e meus primos, os irmãos islâmicos".

Esse é o estilo desafiador do ícone da Al Qaeda na Mauritânia. "Eles estão e se sentem mais fortes que nunca. Seu pessoal detém os sequestrados e o governo lhes envia imames para falar de diálogo e reconciliação", afirma um agente da inteligência espanhola.

Como se pode mudar tanto em tão pouco tempo? Como Saman pôde se transformar no responsável pelo principal grupo da Al Qaeda na Mauritânia?, perguntam-se alguns jovens que há anos jogavam com ele seu bairro, uma zona onde antes não havia barbudos nem mulheres ocultas. O terrorista que dirige as conversas com os religiosos enviados pelo governo era há poucos anos um famoso poeta que recitava versos na televisão, nos quais falava de paz, e compunha canções para artistas. Sua entrada no Jamaat Tablight, um movimento radical que prega a paz, foi sua primeira aproximação do fundamentalismo. Trocou sua roupa ocidental pelas túnicas e deixou crescer a barba, mas ainda parecia um rapaz tranquilo. "Ajudava os jovens e os preparava para casar-se", afirma Ahmed, um jovem mauritano. Em 2003 caiu em uma batida contra os Irmãos Muçulmanos, organização em que militava, e foi libertado por falta de provas. Seu desaparecimento do bairro coincidiu com sua entrada nas fileiras das quatro brigadas que integram a AQMI, grupo terrorista dirigido por ex-salafistas argelinos, uma mistura explosiva de traficantes, ladrões e terroristas.

Saman foi detido com outros sete jovens e acusado de ter participado de um cursinho terrorista no norte do Mali, na mesma área onde se suspeita que estejam os sequestrados Alicia Gómez, Roque Pascual e Albert Vilalta. Aquela foi sua primeira visita à prisão de Lahsar, de onde escapou disfarçado com uma burqa que lhe entregou um de seus visitantes. Um carro o aguardava na porta da prisão e nenhum guarda descobriu que aqueles passos desajeitados não eram de uma mulher. De seu esconderijo no Senegal, lançava apelos através da TV Al Jazira e entrava e saía do país à vontade. Seus ataques o transformaram em uma lenda, e foi a peça predileta dos 15 mil homens do exército mauritano.

Saman tentou sequestrar o cônsul alemão no centro de Nuakchot, roubou uma caixa-forte no porto, atacou a embaixada de Israel. Turistas e militares eram seu alvo primordial, até que foi detido no centro da cidade depois de um prolongado tiroteio, no qual morreram dois de seus guarda-costas. Sem a ajuda de agentes da inteligência francesa que detectaram suas ligações telefônicas, hoje continuaria livre.

A meia hora da prisão de Lahsar, um pequeno bairro de casas humildes representa a estampa mais real da implantação da Al Qaeda na Mauritânia. Na rua de Dar Nhim (casa do paraíso), as mulheres se vestem de preto e cobrem os rostos com a burca, traje que nunca fora visto neste país. Quase todos os homens exibem longas barbas e estão proibidos de fumar e beber. Alguns moradores confessam que Maroof Ould Haiba, um dos presos da Al Qaeda que participam com Saman das conversas com os imames, impôs a xariá em seu território mais familiar. Houve queixas, mas no final sua lei prevaleceu. O que Maroof chama de "lei de Deus", uma lei que lhes permitiu assassinar no Natal um casal francês e seus dois filhos, arrebentar a tiros um cooperante americano que resistiu a ser sequestrado no centro de Nuakchot ou raptar os três espanhóis.

Maroof, assim como Saman, tem uma longa história de delitos e cultivou uma imagem de dirigente e vítima. Seu irmão foi detido quando tentava ajudá-lo a fugir da prisão, adoeceu na mesma e morreu no hospital. A família acusou os funcionários de maus-tratos e associações de direitos humanos defenderam o caso. Maroof gaba-se diante dos familiares e amigos. Assim como Saman, às vezes tem acesso a telefones celulares e afirma estar em contato com os chefes da Al Qaeda que se escondem no deserto. Bravata ou realidade? A prisão de Lahsar, apesar de sua arrogante segurança, tem brechas escandalosas, como o vídeo que Saman fez chegar à rede de televisão Al Jazira, no qual aparece pendurado no teto e seu rosto retorcido sob uma bota militar, em uma suposta ou real sessão de tortura.

Agora os imames enviados pelo presidente mauritano dialogam com sujeitos como Saman ou Maroof, com jihadistas como Sidi Ould Sidina, um jovem de 22 anos que confessa a seus íntimos que não é uma pessoa, mas uma máquina de matar. "Eu não sou uma pessoa, eu sou uma arma... Disparo quando me ordenam."

Um funcionário mauritano que pede o anonimato explica assim a iniciativa: "Falou-se com os terroristas na Argélia e na Líbia. Por que não o faremos nós? Enviamos nossos religiosos para falar com os islâmicos que se dizem religiosos. Quem tem razão, vocês ou nós? O objetivo final é que renunciem à violência. Temos de testá-lo. Tenho certeza de que no final serão libertados".

Quarenta presos da Al Qaeda sem crimes de sangue se afastaram de Saman e afirmam que ele não os representa. O diálogo continua. "Não vamos pedir perdão", afirmou o jihadista de sua cela. A prisão de Lahsar pode se transformar na encruzilhada final da partida contra o relógio que se trava para salvar a vida dos sequestrados espanhóis.

Traduzido por: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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