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Israelenses e palestinos celebram escritores, mas cada um do seu lado

Israelenses e palestinos celebram escritores, mas cada um do seu lado

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 3:24

Há momentos, nesta cidade dividida e cruel, em que céticos se tornam crentes. A noite de 6 de maio - os muros antigos acesos, o ar carregado de madressilva e jasmim - foi um desses momentos. Distintos autores estrangeiros e talentosos músicos locais se lançaram em uma celebração da literatura, música e companheirismo internacional.

Porém, embora esta seja uma cidade de pedras, também é uma cidade de espelhos. Não houve apenas uma festa naquela noite, mas duas, uma israelense e uma palestina - e ambas se ignoravam.

O Festival Palestino de Literatura e o Festival Internacional de Escritores de Israel ocorreram naquela semana sem consciência ou reconhecimento um do outro. Os dois eventos se encerraram em 6 de maio com leituras e músicas. Ambos se trataram da beleza das palavras, mas nem um nem outro pôde evitar a amargura da realidade.

''Todos aqui são obcecados em restaurar alguma parte do passado'', observou Amos Oz, o escritor mais celebrado de Israel, durante o festival israelense. ''Muitos vieram para Jerusalém, não para construir e ser reconstruído, mas para crucificar ou ser crucificado''.

Mesmo assim, as relações de poder não são igualitárias aqui e não houve escapatória, em ambas as conferências, do sofrimento causado aos palestinos por parte das forças policiais israelenses, embora tenha havido nuances de interpretação.

''Fiquei indignada'', disse Nancy Kricorian, romancista e poeta da cidade de Nova York que visitou Jerusalém pela primeira vez por causa do festival palestino e enfrentou postos de controle militar e a barreira de separação.

A questão que pairava no ar em ambos os festivais foi como a leitura de bons livros poderia fazer a diferença. Nir Baram, jovem escritor israelense que se pronunciou na abertura do festival israelense, forneceu uma resposta.

''Kafka disse que um livro deveria servir como um machado para o mar congelado dentro de nós'', ele disse. ''Há muitas coisas sobre as quais não falamos'', e incluiu entre elas ''o confisco sistemático dos direitos de não-judeus em Israel e seus territórios''. Baram disse que os israelenses tinham parado de perceber isso, da mesma forma como as pessoas que moram perto do mar acabam sem ouvir as ondas. Seus comentários causaram agitação entre vários membros do governo que estavam na plateia.

Os escritores do evento palestino não sabiam nada do discurso de Baram, mas teriam se interessado. Eles passaram a semana percorrendo a Cisjordânia, indo de universidades a centros culturais, e receberam uma dose dos postos de controle israelenses e da frustração palestina, que incluiu cinco horas na fronteira entre a Jordânia e a Cisjordânia enquanto autoridades israelenses interrogavam as pessoas com nomes árabes.

No dia 5 de maio, em Ramallah, no jardim de uma casa antiga usada pelo falecido poeta palestino Mahmoud Darwish, Kricorian leu trechos de seu romance ''Zabelle'', baseado nas sofridas experiências de sua avó armênia nas mãos dos turcos. A leitura falou de deslocamento e sofrimento, temas dolorosamente familiares para a plateia. Outro escritor, Mahmoud Shuqeir, palestino, causou grande risada quando contou uma história sua em que Michael Jackson, Naomi Campbell e Donald Rumsfeld são trazidos como convidados para Ramallah. Resumo da história: seu tio acaba como prisioneiro na Baía de Guantánamo.

Os israelenses não puderam ouvir essa história. Mas, na noite anterior, em Jerusalém, em uma pensão municipal para escritores e artistas conhecida como Mishkenot Sha’ananim, o autor israelense David Grossman e o romancista americano Paul Auster conversaram no palco sobre suas rotinas como escritores, sua amizade e seus medos.

Foi uma conversa brilhante cobrindo, entre outras coisas, o prazer surpreendente de narrar um romance na voz de uma mulher e a dor de dizer adeus aos personagens depois que uma obra é terminada. ''É como ser um casal'', disse Grossman sobre viver com seus próprios personagens inventados. ''Um muda o outro''.

Auster, acompanhado no festival por sua mulher, a autora Siri Hustvedt, concordou. Ele falou da pausa atual em sua vida, pois finalizou recentemente um romance, mas ainda não começou o próximo. A conversa logo virou o que os israelenses chamam de ''hamatzav'', ''situação''.

Auster esteve aqui pela última vez no começo de 1997 e ficou chocado com o clima mais sombrio que encontrou agora. Treze anos atrás, a paz entre Israel e seus vizinhos parecia uma probabilidade real. Mas não hoje, ele disse. Apesar da presença na cidade de George J. Mitchell, enviado ao Oriente Médio do governo de Obama, hoje as coisas parecem piores. Israel, ele disse, teme sua própria sobrevivência.

Novamente, parecia que os dois grupos de escritores poderiam se beneficiar de ouvir as reflexões uns dos outros. Os festivais deveriam se reunir? Será que Jonathan Safran Foer e Nicole Krauss, A. B. Yehoshua e Daniel Mendelsohn, todos palestrantes em Israel, deveriam se unir a Geoff Dyer, Victoria Brittain e Raja Shehadeh, os escritores do outro lado?

Sim, disse Anthony David, biógrafo americano e professor do Bard Honors College of Al Quds University, em Jerusalém Ocidental. ''É ridículo ter escritores do mundo todo na mesma cidade sem se encontrarem uns aos outros'', ele disse, enquanto esperava o início de uma leitura em Ramallah. ''A mentalidade de boicote aqui entre os palestinos está tão incrustada que as pessoas são ameaçadas por se encontrar com pessoas do lado israelense. Construir redes é a única forma de minar forças nefandas'.

Mas Ahdaf Soueif, autora egípcio-britânica que organiza o festival palestino, discorda. ''Acho que os palestinos muitas vezes são vistos como acessório ou o lado oposto da moeda'', ela disse. ''A Palestina é uma entidade em seu próprio direito e merece seu próprio festival. Se chegar o dia em que Jerusalém for uma capital compartilhada, então podemos considerar a possibilidade''.

Um de seus escritores convidados, Adam Foulds, que fez uma leitura no festival de seu poema narrativo ''Broken Words'', afirmou entender.

Foulds, que é judeu britânico, passou um ano em um kibbutz em Israel, 17 anos atrás, e nunca esteve nas cidades palestinas da Cisjordânia, até o festival. Ele ficou surpreso com o que encontrou.

''Ouvimos tanta coisa sobre ódio, o clima violento'', ele disse, ''mas encontrei uma linguagem de paz, liberdade e justiça. O festival é o reconhecimento da vida independente do povo palestino. Ultrapassar a barreira invisível do medo na verdade me encheu de esperança. Encontrei um humanismo profundo do outro lado''.

Por Ethan Bronner, do New york times

Foto: New York Times

Tradução: Gabriela d'Ávila

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