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Precariedade de condições favorece ocorrência de estupros no Haiti

Precariedade de condições favorece ocorrência de estupros no Haiti

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:23

A mulher de 22 anos, usando um vestido azul que havia colocado após sua libertação, falou com uma voz sussurrante.

Talvez a pior parte da experiência, disse ela, tenha sido o lugar que seus sequestradores escolheram prendê-la. Eles a terem raptado era algo aterrorizante. Eles a terem estuprado, repetidamente, era horrendo demais para absorver por enquanto.

Mas ocultá-la nas ruínas de uma casa? Fazê-la se arrastar no chão, por baixo de paredes derrubadas, para entrar numa casa destruída onde eles a esconderam num buraco de destroços? Aquilo foi tortura, disse ela.

"Como eu não havia dormido sob nenhum teto desde o terremoto, fiquei tão assustada que não podia respirar", contou a mulher, Rose, pedindo que seu nome completo não fosse divulgado.

Os sequestradores de Rose disseram a seu cunhado, que entregou o resgate de aproximadamente dois mil dólares, que a matariam caso ela falasse. A jovem não pretendia fazer isso. Porém, investigadores da polícia apareceram na casa da família, no bairro Delmas 33, logo após sua libertação, e um repórter do "New York Times" apareceu na cena – posteriormente acompanhando Rose a uma clínica para mulheres, a pedido da família.

Estar presente enquanto Rose e sua família lutavam com o horror de seu sofrimento ofereceu um vislumbre, em primeira mão, da vulnerabilidade que muitos haitianos, especialmente as mulheres, sentem atualmente. Dormindo em acampamentos, nas ruas ou em jardins, muitos se veem à mercê não só dos elementos naturais, mas daqueles que se aproveitam da miséria alheia.

Aqui, os casos de estupro não registrados são tantos que as estatísticas contam apenas uma parte da história. Mas os números existentes, sejam da polícia ou de grupos de mulheres, indicam que a violência contra mulheres se expandiu nos meses após o terremoto de 12 de janeiro. Os sequestros são raros, mas eles também cresceram, e "a ameaça é constante", afirmou Antoine Lerbours, porta-voz da polícia nacional haitiana.

Malya Villard, diretor da Kofaviv, uma organização rural que apoia vítimas de estupros, disse que a presença de milhares de prisioneiros – que escaparam durante o terremoto – agrava um ambiente onde insegurança e desespero alimentam um ao outro.

"Esse é um clima ideal para o estupro", disse Villard.

Ela afirmou que os 25 funcionários da Kofaviv, trabalhando em Porto Príncipe, haviam atendido 264 vítimas desde o terremoto, o triplo do número de um período equivalente no ano passado. O número de prisões por estupro é menor – 169 no país até maio –, mas mais prisões foram feitas nos últimos meses do que no mesmo período no ano passado.

Desde o terremoto, grupos de ajuda internacional expressaram preocupação sobre a violência contra mulheres, especialmente nos acampamentos sob sua supervisão. Iluminação fraca ou inexistente, banheiros sem trancas, chuveiros adjacentes para homens e mulheres e proteção policial inadequada já se mostraram problemas.

Recentemente, a segurança melhorou em oito grandes campos, com postos policiais e patrulhas conjuntas entre forças locais e das Nações Unidas; cerca de 100 policiais femininas de Bangladesh chegaram no fim do mês passado, para lidar com violências baseadas em gênero em três desses campos. Existem, porém, cerca de 1.200 acampamentos espalhados pelo Haiti, e os destruídos bairros desta cidade também estão basicamente deixados a sua própria defesa.

Rose e seus parentes haviam voltado recentemente a suas propriedades, quando o dono do terreno onde eles acampavam os ameaçou de despejo. Suas casas foram marcadas com um selo amarelo pelos inspetores, significando danificadas, porém consertáveis. Rose e seus parentes dormem do lado de fora, com dificuldade. Eles temiam os "jovens criminosos com óculos escuros da máfia", disse o primo de Rose, mesmo antes do rapto da jovem.

Em 10 de maio, no começo da noite, Rose, uma linda jovem que está aprendendo a trabalhar em salões de beleza, saiu para comprar biscoitos na rua. Um policial que ela conhecia acenou para que ela entrasse em seu carro, contou. Ela entrou. Em seguida apareceram dois jovens, ordenando que o policial saísse do carro, roubando sua arma e levando Rose embora com o carro.

Os homens a jogaram no banco traseiro e fizeram com que deitasse olhando para baixo. Ela não sabe a que bairro foi levada; era um lugar deserto e cheio de destroços, com muitas casas destruídas. Quando ela se negou a entrar em uma delas, eles bateram na jovem e a forçaram a se espremer através da entrada destruída. Então, a empurraram a um espaço minúsculo embaixo de um teto caído.

"Fiquei muda de tanto medo", contou. "Só gritei quando eles me estupraram. Doeu muito".

Agarrando a própria pélvis enquanto falava, Rose afirmou que os homens se revezaram, estuprando-a sete vezes.

"Talvez oito", corrigiu ela, fechando os olhos.

O policial apareceu na casa de Rose na manhã seguinte a seu sequestro, para dizer à família o que havia ocorrido.

"Ele esperou a noite toda, enquanto ficamos acordados em completo terror", afirmou seu cunhado. "Ele estava procurando por seu carro. Nós dissemos: ‘E Rose?’ Ele respondeu: ‘Vamos procurar por ela, mas, você sabe, antes vocês serão procurados por eles’".

Os sequestradores usaram o celular de Rose para fazer a ligação. Eles colocaram em viva-voz e bateram nela várias vezes, para que a família pudesse ouvir seus gritos de dor.

"Eles exigiram 50 mil dólares americanos", disse o tio, um vendedor. "Isso é loucura. Não tenho nem 10 gurdes em meu nome. Mas eles disseram: ‘Não adianta irem a um padre de vodu. Ele não pode ajudar vocês. Não adianta falar com o Obama. Ele também não pode ajudar. Apenas nos deem o dinheiro, ou matamos a garota’".

Ao longo dos dias seguintes, a família conseguiu levantar US$ 2 mil em gurdes, a moeda haitiana, com vizinhos. O primo de Rose deveria deixar o dinheiro num local determinado. Ele o fez numa tarde de domingo. Às três da tarde, na segunda-feira, Rose foi vendada e colocada na traseira de uma moto-táxi. Quando chegou, ela desabou em posição fetal na porta de sua casa e bateu fracamente.

Algumas horas depois chegaram os investigadores da polícia, talvez alertados por vizinhos. Os membros da família, velhos e jovens, cercavam Rose enquanto ela respondia perguntas em tom monótono. Ocasionalmente eles espreitavam a rua pelas fendas nas paredes, com medo de que os sequestradores estivessem observando.

Rose já havia tomado um banho e trocado de roupas, o que ela não sabia ter anulado uma série de evidências. Mas a polícia nem mesmo levantou a questão, segundo sua família.

Quando os policiais foram embora, Rose foi de carro a uma clínica próxima dos Médicos Sem Fronteiras, encolhendo-se em dor com os solavancos das péssimas ruas. Na tenda da clínica, ela foi instruída a sentar-se num banco de madeira.

Outra jovem, magra e ereta, entrou na sala de espera e disse a uma enfermeira que precisava ver um ginecologista.

"Infecção?", perguntou a enfermeira. "Caso de estupro", respondeu a jovem, num francês arrastado. Ela havia sido convidada para um "círculo literário" numa cidade de tendas na noite anterior, disse ela. "Nenhum livro foi discutido", explicou.

As duas vítimas se sentaram lado a lado, olhando fixamente à frente. A enfermeira disse que a clínica, uma entre muitos centros de saúde na cidade, havia atendido cerca de 60 vítimas em maio.

Quando Rose foi chamada à tenda de exames, ela tropeçou, abatida pela fome. A enfermeira lhe entregou dois pacotes de bolachas. Rose disse: "Não tenho dinheiro para pagar isso". A enfermeira disse que eram de graça. Rose ofereceu um dos pacotes a um repórter do "Times", que declinou e a deixou para um exame privado.

Rose foi liberada com uma grande quantidade de preservativos e caixas de pílulas: antibióticos para doenças sexualmente transmissíveis, tratamento anti-HIV, pílulas para vaginite e analgésicos.

Enquanto ela saía, seu tio – a quem Rose chama de Papa – a observava de longe, as lágrimas escorrendo pelo rosto.

"Linda criança, ah, linda criança", disse ele. "Olhe em meus olhos e saberá como eu me sinto. Quando tudo isto irá terminar? Já não sofremos o suficiente?"

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